maio 24, 2013

"A reunião na escola e o protagonismo materno", por Lays Moreira Ito

PICICA: "Saí de lá me perguntando em que momento deixamos de construir o nosso conhecimento, a nossa prática em relação à criação e educação das nossas crianças e passamos a seguir quase que cegamente a orientação de “especialistas”. Saí me perguntando o quanto nós, mães, pais e cuidadores assumimos o discurso da incompetência crônica que diversos especialistas em diversas áreas nos incutem. Para os obstetras — a maioria deles — somos incompetentes para parir. Para muitos pediatras e a indústria alimentícia, somos incompetentes para amamentar e nutrir. Para psicólogos, escolas e especialistas em educação, somos incompetentes para educar e instruir. E a cada afirmação de incompetência, vem o oferecimento de um pacote mágico que vai garantir a felicidade, saúde e sucesso de nossas crianças. A preços quase nunca módicos."


A reunião na escola e o protagonismo materno

Texto de Lays Moreira Ito.

O convite que veio na agenda da minha filha era claro: eu estava sendo convidada para uma noite de “troca de experiências e resgate de relações pessoais”. Assim estava sendo descrito o programa adotado pela escola onde minha filha estuda, elaborado por um dos nomes em destaque no campo da autoajuda.

Lá fui eu para a reunião. Distribuídos na quadra, dezenas de pais e mães aguardavam o início da palestra do programa, adotado pela escola, segundo as palavras de abertura ditas por um dos donos: “para melhorar as relações pessoais entre pais e alunos e formar pessoas melhores e mais felizes” (e com custos devidamente acrescidos na já salgada taxa de material didático, diga-se de passagem). Começou a palestra, que no fim resumiu-se a uma repetição de conceitos já altamente encontrados nos livros de autoajuda direcionados para mães, pais e cuidadores: tempo de qualidade com os filhos, acompanhar a vida escolar, elogiar, responsabilizar. Com direito à música de fundo e apresentação .ppt de fotos bonitinhas ao final.

livros de auto-ajuda

Reconheço que algumas, senão várias, das recomendações da “especialista” mandada pelo programa são válidas. Classificaria mesmo como bons conselhos. Mas o que vivi naquela noite, cercada de mães, pais e cuidadores, estava muito longe do que eu reconheceria como uma “troca de experiências”. Muito menos de “resgate de relações pessoais” (a não ser que uma palestra normativa e unilateral se enquadre na definição). Na verdade, a coisa toda me deixou com um gosto amargo na boca e uma enorme inquietação no peito.

Saí de lá me perguntando em que momento deixamos de construir o nosso conhecimento, a nossa prática em relação à criação e educação das nossas crianças e passamos a seguir quase que cegamente a orientação de “especialistas”. Saí me perguntando o quanto nós, mães, pais e cuidadores assumimos o discurso da incompetência crônica que diversos especialistas em diversas áreas nos incutem. Para os obstetras — a maioria deles — somos incompetentes para parir. Para muitos pediatras e a indústria alimentícia, somos incompetentes para amamentar e nutrir. Para psicólogos, escolas e especialistas em educação, somos incompetentes para educar e instruir. E a cada afirmação de incompetência, vem o oferecimento de um pacote mágico que vai garantir a felicidade, saúde e sucesso de nossas crianças. A preços quase nunca módicos.

Fui criada vendo minha mãe conversar com minha tia pelo muro e com minha avó pela janela que dava para o fundo de nosso quintal. Era uma troca de experiências constante, diária, nervosa, muitas vezes marcada por conflitos, mas que no final construía a forma de maternar e cuidar de cada uma daquelas mulheres. Era uma construção coletiva sobre maternagem, onde cada uma delas era protagonista, tanto de seu fazer quanto da construção desse fazer. Hoje, em um cenário de crescente individualização, não apenas das pessoas, mas também dos espaços (saudade das pracinhas, campinhos, calçadas onde as mães se reuniam enquanto a gente brincava), saem as parentes, as amigas e as vizinhas. Entram os especialistas.

E entram apoiados no discurso do conhecimento científico, apresentado como sendo uma verdade absoluta e incontestável, de forma que não haja questionamentos sobre sua validade. Ora, longe de mim não reconhecer a validade de uma série de informações científicas (não fosse isso, eu não teria optado pela amamentação prolongada, por exemplo) que vieram desmentir velhos mitos e reformular velhas práticas. Entretanto, a ciência está longe de ser uma verdade absoluta, os conhecimentos produzidos por ela estão longe de ser consenso; a ciência é mais método de construir conhecimento (que pode ser contestado ou mesmo refutado) do que verdade absoluta. E, não poderia ser utilizada como forma de impor métodos, padrões, regras únicas para algo tão diverso e complexo quanto formar um outro ser humano. Porque, apesar de todas as promessas de sucesso e felicidade vendidas em pacotes atraentes, não há fórmula única, não há receita, não há poção mágica. Porque cada filho, cada ser humano é único em suas particularidades, em seus sucessos e suas dificuldades. Cada criança a nosso cuidado é uma reinvenção do cuidar, do educar, do nutrir, por ser cada criança um universo inteiro em si mesma.

E no final, o que me sobrou daquela noite foi a sensação, quase uma certeza, de que é um dos papeis do feminismo, ou melhor, uma das lutas do feminismo, recuperar o protagonismo da mãe, do pai e dos demais cuidadores sobre as decisões tomadas em relação às crianças sob seus cuidados. Foi o que aconteceu comigo ao me descobrir, me assumir como feminista, como uma mãe feminista. Reconheci a construção social do papel de mãe e a pressão social para que se assuma o padrão da mãe “comercial de margarina”, embora a atuação materna na sociedade tenha se alterado. 

O feminismo me mostrou a questão da retirada da autonomia feminina em diversos aspectos, inclusive no exercício da maternagem, quando me confronta com o padrão de perfeição imposto. E ao reconhecer esta relação, percebi que não precisava ser perfeita, que não precisava me submeter às verdades de especialistas. Que podia — e devia — construir e buscar minhas próprias verdades, que não podia e nem devia assumir toda a responsabilidade pela criação e educação de minha filha, dado que este não é um papel inerentemente feminino, mas coletivo, de toda a sociedade e de todos os personagens envolvidos: mãe, pai e cuidadores. Descobri que eu podia ver os pacotes prontos e dizer não, não quero. Não, não serve para mim.

Não se trata de negar o conhecimento alheio, de rejeitar tudo o que vem do outro, mas justamente de resgatar a importância do conhecimento construído através da experiência e empoderar a mãe, o pai e os demais cuidadores para que eles possam analisar o que é transmitido e reformular de acordo com suas necessidades, suas experiências e seu contexto. Aceitar, reformular ou até mesmo refutar o que é transmitido, desconstruindo o discurso da incompetência crônica e se assumindo como sujeitos ativos da criação de seus filhos e filhas.

Penso, defendo, acredito que a retomada dos espaços coletivos entre mães, pais e cuidadores seja fundamental para que estes personagens retomem o protagonismo que lhes é de direito. Ainda que sejam espaços virtuais, como os blogs, listas de discussão, murais de internet (embora lamente que muitas pessoas ainda estejam excluídas destes espaços), mas que sejam espaços de troca e construção mútua de conhecimento, para que o pensamento único e normativo não tenha mais tanto espaço. Nem os pacotes prontos de felicidade e sucesso.

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FemMaterna

Somos mães e feministas, buscando educar noss@s filh@s de maneira libertária. Buscamos construir com eles um mundo que acolha a diversidade e que questione desigualdades, preconceitos e estereótipos.


Fonte: Blogueiras Feministas

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