PICICA: "Nos últimos 10 ou 15 anos no Brasil, ocorreram profundas
transformações na sociedade. Menos que abolir a desigualdade, o racismo e
o intolerável do noticiário, essas transformações deslocaram os
conflitos e as contradições, mudaram as coordenadas de tempo e espaço
não só da exploração e do racismo, mas também das lutas e organizações
políticas. O país finalmente se integrou, a pleno emprego, no
capitalismo mundial, ao mesmo tempo em que pôde conscrever, em massa, a
população ao mercado de trabalho e de consumo. Se a tarefa materialista
exige um mergulho no presente para daí, de suas dinâmicas reais de luta e
criação, antecipar as potencialidades de ruptura – e nesse sentido,
antecipar um futuro que rompa com o “tempo homogêneo e linear” (Walter
Benjamin), isto é, com o progresso e o desenvolvimentismo da estrutura
de poder, da estrutura da história do poder – essa tarefa
demanda também copesquisar onde já se engendram novas recusas
moleculares, insatisfações coletivas, êxodos e alternativas latentes.
Antecipar a ruptura pode significar, então, aperceber-se das tendências
de crise, sondá-las onde rangem mais, onde doem mais, onde as forças
vivas são espremidas, se debatem, se combinam e se miscigenam, para
coagular culturas de resistências e frentes de criação: digamos, na
crise dos transportes, da saúde, da cultura, da universidade, do
partido, na crise do modelo de cidade, em tudo isso que não acabou nem
vai acabar tão cedo, mas no interior do que pulsam tendências
conflitivas, franjas de recomposição e criatividade insurgente. Essas
tendências, – se é possível agrupá-las, mediante um laborioso trabalho
de organização e pesquisa, para fins de potenciação da luta, – passam
pela raça, pela classe, pelo gênero, pela sexualidade, enfim, por todas
as minorias que, em sua condição de devir minoritário, são escolhidas
como alvo preferencial da violência da normalidade. É onde dói mais, e
da dor também se produz o conhecimento, e se gera um amor na luta e pela
luta."
Do esgotamento à repetição do 15-M
Foi em 2011 que tudo recomeçou. Vimos e participamos de ações globais inspiradas, primeiro de tudo, pelas imagens da Al-Jazeera, youtube e blogues, retratando grandes enxames de revoltados pelas ruas e praças da Tunísia, Egito e vários outros países árabes. A primavera árabe atravessou o Mediterrâneo na direção norte, refazendo o percurso da “nova ciência” na Idade Média, contagiando o verão europeu com o 15 de Maio e, a seguir, no outono do Occupy em centenas de cidades da América do Norte. Com revoltas em Londres, Portugal, Grécia, Israel, da Praça Tahrir à Puerta del Sol à Zuccotti Park, foi um ano em que o medo passou pro lado de lá. Pessoas no mundo inteiro, do Brasil à China, voltaram a acreditar na transformação do sistema estatal-capitalista, para o horror das classes dominantes.
Hoje, mais de dois anos depois, é preciso reconhecer que esse movimento perdeu o ímpeto, reduzindo-se muitas vezes a grupelhos autocentrados, incapazes de olhar além do próprio umbigo. Apaixonaram-se por si mesmos, formalizaram-se, como se os protestos tivessem nascido do nada, de sua própria lâmpada pessoal, sem memória, em vez de perceber a transmissão de impulso de e para outros tumultos, movimentos e agitações. Em muitos casos, descontextualizaram-se.
Uma das causas dessa lenta, porém nítida exaustão, estava embrionária na continuação europeia das revoluções árabes. Estas rejeitavam a modernidade colonial, uma tecnologia de poder eminentemente eurocêntrica. Revoltavam-se contra ditaduras bancadas pelas potências ocidentais, apoiadas sobre uma ordem biopolítica racista. Essa ordem encabeçada por Mubarak, Ben Ali e outros ditadores desqualificava os próprios cidadãos, especialmente os pobres, segundo diversos graus de “atraso”, ao passo que se exibia internacionalmente como governos modernizantes e plenamente integradas ao mercado mundial. As famílias dirigentes vestiam grifes e estudavam na mais vetusta academia europeia, importando a mais avançada política econômica.
Diante dessa modernidade, os insurrectos do norte da África exprimiam, sobretudo, um caráter de luta anticolonial. Sua luta também foi contra uma modernização que não passa da nacionalização da classe dominante, sob o velho pacto de um capital apátrido, na esteira de um progresso que perpetua o trabalho subordinado e precário, enquanto a maioria permanece na mesma condição subalterna, discriminada e sistematicamente violentada. Se, por um lado, isso trouxe a carga de uma recusa radical, de uma ação direta que nada aceitava senão a deposição dos governantes; por outro, carreou para dentro do incêndio revolucionário todos os paradoxos e contradições históricas da luta anticolonial. Isto é, trouxeram no bojo um componente tendencialmente teocrático coabitando com a esquerda de matiz islâmico, ativistas liberais com comunistas, patriarcalismo com feminismo, além do que sindicalistas tradicionais e ligas camponesas junto do mais antenado ativismo de internet. Em consequência, essas revoluções ainda estão em aberto.
Na vertente europeia, de maio em diante, a pauta anticolonial foi para segundo plano. Os imigrantes não foram os protagonistas dos movimentos, ainda que estivessem presentes em algum grau. Talvez por serem mais vulneráveis, por viverem constrangidos pela condição de deportabilidade. Mas, talvez, ou talvez as duas coisas, porque a “nova política” anunciada e praticada pelo 15-M não se deixara atravessar o suficiente pela contestação do racismo, da islamofobia, do fato que o regime de trabalho no velho continente se modula ao redor da raça. Direita e esquerda se unem num consenso que não representa, antes de qualquer outro, o imigrante. Ora, o precariado europeu não tem só idade, mas também gênero, raça, nacionalidade e religião. O sujeito das lutas está encarnado, ou não é. Esse déficit prático-discursivo do 15-M deu um tom ambíguo à bandeira “apartidária” e “sem líderes” que os manifestantes se obcecaram em brandir, e à verdadeira obsessão pelas formas pelas formas. Com esse foco, o conjunto de mobilizações não pôde fazer frente, na corrida mais longa, à tentativa francamente direitosa de reunificação de valores da Europa, centrada no racismo anti-imigrante, seja ele abertamente odiento, ouy quando camuflado de protecionismo. Por isso, ainda, é possível que as principais forças organizadas deste período pós-15M, seus parentes próximos, – como o Partido do Futuro na Espanha, ou o “Cinco Estrelas” na Itália – tampouco alcancem a radicalização da recusa das revoluções árabes, com o risco de flertar com o velho e anódino discurso da coalizão nacional contra os corruptos, os “maus políticos” e os especuladores malignos (geralmente judeus). Esses movimentos também estão em aberto, ainda que haja razões para maior ceticismo.
Nas Américas, a seu turno, o ano de 2011 parece encerrado. O movimento Occupy se dispersou em pequenos núcleos, incapazes de conectar-se ao movimento real de revoltas e recusas. Falhou, acima de tudo, em representar, ainda que de alguma maneira nova e impensada, os 99%. Não conseguiu colher a insatisfação difusa ante o biopoder capitalista, para afirmar uma alternativa à altura dos desafios. O que era difuso não condensou em nenhum movimento constituinte. Isto não aconteceu, como os detratores insistem, por causa da falta de pautas concretas de reivindicação — mas por causa de deficiências na composição dos sujeitos de luta, para conjugar esforços e energias de muitas pautas encarnadas além das acampadas. Perdeu força. Como consequência, a crise econômica dos subprimes vai ficando para trás, numa reacomodação geral segundo uma ordem ainda mais desigual e injusta do que antes. O trabalho de fechamento do ciclo de lutas prossegue com a reposição de um capitalismo baseado na guerra patriótica, na lógica do inimigo (interno e externo) e na precarização generalizada dos serviços, direitos e bens comuns para a maior parte da população.
Finalmente, no Brasil, a maior limitação das pequenas, porém audíveis explosões de autonomia, alegria e revolta, — igualmente brotadas na esteira das revoluções árabes, do 15-M e do Occupy, — consistiu na incapacidade de conjugar-se com a memória de lutas do subcontinente. O descontexto aqui foi maior. E sem revisionismo, sem negar a força daquela vibração. Apesar da incompreensão, da rápida desqualificação pela esquerda mais tradicional, os acampamentos urbanos resgataram um clima de otimismo revolucionário, num arejamento necessário às lutas e à militância. Mas não proliferaram enquanto prática e discurso alternativos, ficando numa crítica negativa do capitalismo, o que é insuficiente. Nesse sentido, a versão paulista das ocupas se destaca positivamente, tendo galgado duração a ponto de integrar algumas mobilizações nos anos seguintes. Em geral, o grande problema, arrisco, esteve na dificuldade de as ocupas comporem com forças políticas organizadas, além da ideia da ação direta e enfrentamentos mais prementes (e absolutamente importantes). Não reuniram as energias necessárias para participar de um levante transversal, uma composição realmente inovadora dentro de nossa realidade social e racial. Talvez por uma deficiência de copesquisa generosa com movimentos, nunca de “teoria”, que aliás não faltou. Essas energias antes são organizadas diretamente nas bases materiais, no interior da composição social e racial, num país atravessado pelo colonialismo de seus processos e elites – e não a partir da mera democratização procedimental ou inovação de formas.
Nos últimos 10 ou 15 anos no Brasil, ocorreram profundas transformações na sociedade. Menos que abolir a desigualdade, o racismo e o intolerável do noticiário, essas transformações deslocaram os conflitos e as contradições, mudaram as coordenadas de tempo e espaço não só da exploração e do racismo, mas também das lutas e organizações políticas. O país finalmente se integrou, a pleno emprego, no capitalismo mundial, ao mesmo tempo em que pôde conscrever, em massa, a população ao mercado de trabalho e de consumo. Se a tarefa materialista exige um mergulho no presente para daí, de suas dinâmicas reais de luta e criação, antecipar as potencialidades de ruptura – e nesse sentido, antecipar um futuro que rompa com o “tempo homogêneo e linear” (Walter Benjamin), isto é, com o progresso e o desenvolvimentismo da estrutura de poder, da estrutura da história do poder – essa tarefa demanda também copesquisar onde já se engendram novas recusas moleculares, insatisfações coletivas, êxodos e alternativas latentes. Antecipar a ruptura pode significar, então, aperceber-se das tendências de crise, sondá-las onde rangem mais, onde doem mais, onde as forças vivas são espremidas, se debatem, se combinam e se miscigenam, para coagular culturas de resistências e frentes de criação: digamos, na crise dos transportes, da saúde, da cultura, da universidade, do partido, na crise do modelo de cidade, em tudo isso que não acabou nem vai acabar tão cedo, mas no interior do que pulsam tendências conflitivas, franjas de recomposição e criatividade insurgente. Essas tendências, – se é possível agrupá-las, mediante um laborioso trabalho de organização e pesquisa, para fins de potenciação da luta, – passam pela raça, pela classe, pelo gênero, pela sexualidade, enfim, por todas as minorias que, em sua condição de devir minoritário, são escolhidas como alvo preferencial da violência da normalidade. É onde dói mais, e da dor também se produz o conhecimento, e se gera um amor na luta e pela luta.
O caso é que, apesar de alguns “novistas” do 15-M ou Occupy, não basta propor mais um discurso do fim: fim da política velha, das ideologias, das formas obsoletas de representação. Isso converge num “novismo” que morre antes de respirar, e que no fundo muitas vezes serve para conferir um ar radical-chic, uma vontade-de-diferenciação, em vez de diferença transformadora. Um vício talvez muito recorrente nos “novos movimentos”. O “novo” não é premissa de um processo político, mas sua conclusão, o resultado de um conflito, um estado de luta. Como escreveu Giuseppe Cocco, em recente artigo ao Le Monde Diplomatique, o discurso do fim corre o risco de decair em mais um apelo pós-moderno, quando as verdades apaixonadas e produtivas da crise, o seu cerne classista, sexista e racista, acabam sendo jogados de escanteio, em nome de alguma acomodação de síntese, de um “amor maior”: outra ideologia escamoteadora para propiciar novos negócios, empreendedorismo, sustentabilidade, terapia de grupo com pretensão emancipadora, ecologia sem conflito, circuitos de parasitismo cultural etc.
Um desafio para a repetição potente do 15-M, para uma reiteração revolucionária da revolução, passa pela retomada de linhas minoritárias do ciclo de luta. Passa por ativar o que de potente ficou silenciado, não foi aproveitado, — por uma diferenciação em relação ao próprio 15-M, o Occupy e as expressões locais das ocupas. Isso pode ser retomado desde o caráter anticolonial e antirracista das revoluções árabes — que, por sinal, incide sobre o momento de modernização colonial-capitalista do Brasil atual (e sem passar pela mediação do 15-M ou do Occupy, num eixo Sul-Sul). Mas também, pela ancoragem dos processos junto às transformações brasileiras dos últimos 10 ou 15 anos, que não foram só negativas. Se, por um lado, sofisticou a dominação e se ampliou o alcance e a profundidade do capitalismo por aqui; por outro, multiplicaram-se as crises internas a esse processo necessariamente contraditório (como ensina Marx). Se os apologetas do Brasil Maior celebram que a formação nacional finalmente se concluiu, devemos reformular a pergunta, em vez de assumir uma pauta exclusivamente negativa. Os neo-nacionalistas concluíram que o Brasil deu certo. Nós não deveríamos insistir em perguntar por que não deu certo. Melhor problema seria perguntar: onde está o erro do Brasil certo? Como esse erro pode ser desenvolvido, como pode ser retransformado, na prática, até que o certo e o errado não tenham mais vez? Até que o “Brasil errado” tenha vez?
Como também escreveu Cocco, a verdadeira inovação do último período foi a “mobilização produtiva dos pobres”. Quer dizer, a emergência avassaladora de redes, núcleos e coletivos altamente produtivos, com uma autonomia crescente, um círculo virtuoso imediatamente pensante, cultural, político e social, exprimindo a subversão e a recusa radical da raça, do gênero, da sexualidade, de todos aqueles que se apropriam das estruturas e mediações do “novo Brasil” para fazer diferente à matriz colonial-capitalista. Essa emergência remodela a própria ideia de esquerda, luta e política – não é ainda outro “novismo”, mas uma antecipação crítica em meio ao intolerável do presente. E é aí que a insatisfação difusa contra o sistema capitalista e estatal pode ganhar corpo. E, no final das contas, é o corpo aquilo que rompe, aquilo que resiste contra a polícia. E é com corpos — e não formas, e não discursos e não estruturas, e não “redes sociais”, — que se faz uma revolução.
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PS. Usei aqui o insight de Cristiano Fagundes sobre a necessidade de uma crítica pós-colonialista do 15-M e dos “novos movimentos” europeus, norte-americanos e brasileiros.
Imagem: Gravura da Cabanagem (1840, Belém)
Fonte: Quadrado dos Loucos
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