maio 29, 2013

"Os sentidos do lulismo, de André Singer", em resenha de Bruno Cava (Quadrado dos Loucos)

PICICA: "O livro tem a qualidade de não padecer do banzo pós-Lula. Contra os catastróficos do “quanto pior, melhor”, André lembra Tocqueville, que enxergava as condições revolucionários nos períodos de prosperidade. Com um final honestamente aberto e prospectivo, o ex-porta voz da presidência não renega o trabalho do lulismo, cujas contradições e paradoxos não deixa de sublinhar. O governo Lula plantou a perplexidade no seio da esquerda. Contradição, por sinal, que aparece no tom do livro, registro de muitos impasses e limites do próprio objeto que analisa. Se a leveza e os afetos alegres são grandes qualidades, o defeito aparece quando intervém outro afeto, negativo, que ao longo do texto vai deixando marcas." 

Os sentidos do lulismo, de André Singer
Resenha de SINGER, André. Os sentidos do lulismo; reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.



O livro tem a qualidade de não padecer do banzo pós-Lula. Contra os catastróficos do “quanto pior, melhor”, André lembra Tocqueville, que enxergava as condições revolucionários nos períodos de prosperidade. Com um final honestamente aberto e prospectivo, o ex-porta voz da presidência não renega o trabalho do lulismo, cujas contradições e paradoxos não deixa de sublinhar. O governo Lula plantou a perplexidade no seio da esquerda. Contradição, por sinal, que aparece no tom do livro, registro de muitos impasses e limites do próprio objeto que analisa. Se a leveza e os afetos alegres são grandes qualidades, o defeito aparece quando intervém outro afeto, negativo, que ao longo do texto vai deixando marcas.

Embora tão perto do calor da experiência do governo Lula, com sua dose de leninismo e do bom Maquiavel, André não escapa da influência da Lua do Butantã: suas teorias malsãs assombradas por moinhos satânicos, ornitorrincos inexplicáveis, avessos conspiratórios e o esplendor irreversível do estado de exceção. André não coaduna, nas conclusões, com essas teorias, mas elas estão por perto nas análises, quase à espreita de um vacilo.

Fala-se na síntese paradoxal das duas almas do PT, aquela combativa e militante, com forte teor anticapitalista, dos anos 1980-90, esta apaziguada e burocrática, controversamente socialista, dos anos 2000-10. Não dá pra negar alguma nostalgia do antigo PT, do que ele chama “espírito de Sion”. Sem, no entanto, deprimir-se meditabundo de tempos que realmente não voltarão. André também reconhece os méritos da nova alma, do “espírito do Anhembi”, como condição indissociável da construção e dos méritos do lulismo.

Para o autor, o lulismo nasce do encontro de Lula com o “subproletariado”. Este se compõe dos despossuídos e deserdados, daqueles na faixa mais desfavorecida de renda, acesso e direitos. Uma camada com dificuldades crônicas para se organizar, composta de grossa gente vivendo exclusivamente no presente, vulnerável às intempéries da economia e da política, em suma, imersa na “lei da sobrevivência”. O lulismo emerge quando essa fatia significativa da população brasileira encontra no programa de Lula uma grande oportunidade para mudar de vida. O encontro se dá ao redor das políticas sociais massificadas, especialmente a transferência de renda, assumidas como prioridade do governo.

Se, antes do governo Lula, era mobilizado por promessas populistas da direita, por aqueles que de uma forma ou de outra poderiam negociar alentos; o subproletariado resolveu aderir em massa ao projeto lulista. O governo Lula concretizou, dessa forma, a sonhada manobra do PT de enraizar-se nos grotões, favelas e periferias, revertendo a rejeição histórica e conquistando hegemonia inclusive no Nordeste, na terra por excelência dos coronéis. Deu-lhe uma sustentação inédita a qualquer outra força organizada de esquerda da história do Brasil, suportando-o inclusive nos períodos mais críticos de bombardeio pela grande imprensa, como no caso do “mensalão”.

De 2002 a 2006, o núcleo de apoio a Lula migra das classes médias urbanas para o subproletariado, enquanto as primeiras vazam parcialmente para o PSDB. O fenômeno se confirmou, além do personalismo, com a eleição de Dilma, em 2010. A formação do lulismo determinou um ciclo político longo, um substantivo realinhamento eleitoral. As políticas sociais de Lula se tornam o terreno irrenunciável da arena política, por onde passam a caminhar todos os partidos e candidatos, magnetizando até a oposição. Se, tradicionalmente, a direita mobilizava o subproletariado para chantagear a esquerda, quase com um poder moderador de veto, agora a direita se vê forçada a convergir no programa lulista.

O efeito principal do lulismo, rapidamente percebido, foi espessar o mercado interno. Com a priorização das políticas sociais, grande parcela da população se integrou no mercado de trabalho e consumo. A trava máxima do subdesenvolvimento — a miséria — começou a ser superada, desbloqueando um enorme potencial produtivo, o que viria a garantir a passagem relativamente tranquila do Brasil pela crise do capitalismo de 2008-09. Com as múltiplas políticas, o subproletariado deixou de ser o “aglomerado inorgânico e heterogêneo, sem estruturação econômica” (Caio Prado Jr.), para afinal participar da vida produtiva do país e, assim, galgar status social.

A que custo?

Para Singer, neste ponto banhado pelas emanações da Lua do Butantã, ao custo principal do esvaziamento do conteúdo anticapitalista, com o consequente esvaziamento da luta entre esquerda e direita. Dessa equação, resultou um “reformismo fraco”, sem incomodar o grande capital, ou mesmo favorecendo. Ao invés do conflito que um “reformismo forte” solicitaria, Lula prefere a posição arbitral, mediando as classes. Compromete-se, em decorrência, o espírito de Sion, o PT de luta.

Desde a campanha de 2002, Lula tratou de forjar uma imagem ordeira, de “paz e amor”. O livro explica que o subproletariado, no fundo, nunca se pautou pela radicalidade nem se cativou por ideias anticapitalistas. Nos anos 1980, hostilizava greves a ponto de apoiar o envio de tropas militares para reprimi-las. A condição vulnerável dessa classe a induz a prezar pela sensação de segurança, que a ordem e a autoridade podem propiciar. Seguindo esse raciocínio, André não hesita em atribuir ao subproletariado um conservadorismo histórico, alimentado por de séculos de colonialismo, ditadura e exclusão.

Contudo, diferentemente de parte dos críticos ao lulismo, para o autor a sociedade brasileira não se desmobilizou nesse processo. Muito menos se despolitizou. É que a lógica do conflito, agora, se dá entre ricos e pobres, e não mais na chave proletariado x capital. E, aqui, novamente o autor segue a tese da regressão política do lulismo em relação ao “espírito de Sion”, ao estado da luta de algumas décadas antes.

André reivindica realizar “análise de classe”. Por que isso seria importante? Por um lado, porque é uma análise assentada na constituição de um sujeito que intervém na realidade. É exigência de quem deseja transformar a realidade, o que depende da ação de um sujeito em constante organização. A análise de classe permite não apenas interpretar a conjuntura histórica, mas antecipar-lhe pontos de ruptura e pesquisar pelas tendências transformadoras, que esse sujeito porta. Por outro lado, costuma ser uma boa ferramenta para a prática, uma vez que a classe em questão só se manifesta na luta (de classe). O sujeito que age como classe está em luta, então a análise, quando bem determinada, não deixa de ser uma pesquisa nas lutas e das lutas.

Bom, mas é mesmo Os sentidos do lulismo uma “análise de classe”?

Eu penso que, até aonde se proponha a ir, essa análise seja alusivamente correta mas politicamente insuficiente. Não há dúvida que o lulismo contribuiu para a integração do capitalismo no Brasil. Ainda que em condição precária e informal, eles passaram a batalhar por futuro. Mais capacitados para trabalhar e consumir, os integrantes do subproletariado engrossaram os circuitos de valorização do capital, canalizando os fluxos de trabalho aos vertedouros de mais-valor: os bancos, os fundos, os credores, as grandes empresas. A expressão “mercado interno” não é outra coisa que não o fortalecimento da economia “desde baixo”.

O problema dessa análise, no entanto, está em fazê-la apenas pelo lado das condições objetivas. Quer dizer, a análise reconhece a integração do subproletariado na modernização à brasileira, mas não se desenvolvem as contradições internas ao processo. Não se vê o outro lado, o que nessa integração transforma a própria modernização. André se restringe a sentenciar que o subproletariado deseja adaptar-se ao funcionamento existente, para assim ascender socialmente e jogar o “jogo”. Assim, ele pode e quer desaparecer como subproletariado. O que, à primeira vista, parece coincidir com a tese marxista de que a missão histórica do proletariado é abolir-se enquanto classe, é na verdade o seu oposto. O proletariado deseja abolir-se porque deseja destruir a sociedade de classes. E não porque pretende integrá-la acriticamente, como se pudesse existir uma sociedade de classes só com burgueses (a utopia liberal, geralmente cínica).

Disso, fica claro que o “subproletariado” não é uma classe, do ponto de vista da luta de classe. Faltam delinear-lhe as condições subjetivas. Falta explicar o que, no seio do “subproletariado”, resiste à dominação classista e formula, desde baixo, uma alternativa constituinte. Quais são as condições subjetivas do lulismo? Que não sejam a alienação e passivação das massas: o que seria reproduzir a velha visada reacionária sobre um povão ignaro. Seguindo Marx, poderia ser formulada a pergunta sobre a subjetividade do lulismo: como ver a nova composição social do ponto de vista das forças produtivas, e não somente das relações de produção? Noutras palavras, o que há de criação e afirmação de outro mundo, de uma sociedade sem exploração e violência, por dentro da nova classe que vem nas bases do lulismo? O que compõe as forças vivas e produtivas do lulismo, sua própria composição de classe? O que ela produz de diferente, que o lulismo potencia?

Essas perguntas sequer são colocadas. André se limita a postular uma espécie de anticlasse, o “subproletariado”, cujo desenho tende a um conservadorismo intrínseco. Vale provocar: o subproletariado que, uma vez reconhecido, quer se integrar acriticamente à sociedade existente, não se parece com a figura do mestiço? Pela via transversa, o subproletariado não seria o mestiço de parte da literatura da formação do Brasil que, uma vez elevado pela modernização emancipadora à condição de cidadão, perde a cor, i.e., se embranquece? Embranquece: adquirindo os valores, os sentidos de futuro e os protocolos de convivência do colonizador branco, tornando-se ele. Em vez de acordar do sono colonial, o lulismo só propiciaria um reforço da ordem dominante, aprofundando-a e estendendo-a. Com isso, o desejo dos pobres acaba reduzido a uma procura passiva por segurança e pertencimento, ignorando-se todo o desejo por não só viver em condições objetivas melhores, mas viver (n)outra sociedade, (n)outro Brasil.

A classe trabalhadora e seus rituais de esquerda, de fato, viraram suco. O que nos deveria alegrar. Não há nada a lamentar aí, se pensarmos que o projeto intrínseco do proletariado é mesmo dissolver-se. O caso é, sem nostalgia, pegar a geleia geral do kitsch e, das massas, produzir o biscoito fino. Disso já prefigurava a geração tropicalista, quando devastava criticamente a modernização à brasileira, antes mesmo dela se concretizar com tanta amplitude. Como queria Oswald, na descida antropofágica: é preciso sondar as forças sociais em estado ativado, no que derivam dos grandes marcos civilizatórios da própria modernidade. É pesquisar na estrutura produtiva do presente, os pés no chão, onde está a nova classe, o novo trabalhador e, em consequência, a nova esquerda. A esquerda não faliu: mudou.

André tem a consciência que o lulismo é mais do que uma solução arbitral do alto, a serviço das elites, perversamente traidora da tradição das lutas, com efeitos e resultados meramente objetivos. Seu livro não é catastrófico, e ele faz concessões aos interlocutores. As contradições podem ser lidas como ambivalências, assim como nos paradoxos habitam enigmas cuja análise deve ser continuada e desenvolvida. A abertura e a alegria com que encerra o livro dão prova da generosidade de quem não consegue se divorciar da experiência vívida do lulismo. Muitos a compartilham.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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