maio 08, 2013

"É possível uma psicologia “evangélica”?", por Marcio Miotto

PICICA: " Se um psicólogo é um pretenso cientista mas se subjuga a interesses de uma fé particular, não estaria com isso anulando todas as outras fés, comprometendo a própria tentativa de isenção e relativizando a própria ciência?"

É possível uma psicologia “evangélica”?

O apelo a uma autoridade "religiosa" regulando a prática psicológica demonstra falta de informação sobre as relações entre religião e ciência (psicologia). Coloca-se arbitrariamente no mesmo lugar dois universos de questões essencialmente diferentes, cujo único princípio de encontro é a própria arbitrariedade.


– Apóstolo Paulo por Valentin de Boulogne ou Nicolas Tournier, século XVI -

Diversos “leigos” em psicologia – e alguns psicólogos – enunciam nas comunidades virtuais, na vida diária e curiosamente às vezes até no poder legislativo uma pergunta frequente: quais são as relações entre psicologia e religião? Jesus Cristo seria um “psicólogo”? Um psicólogo basta para sanar problemas ou ir à Igreja seria mais eficaz? Como corrigir nossos “males” do “espírito”? Enfim, como já saiu um best-seller por aí, Jesus seria o “maior psicólogo que já existiu”? Por vezes essas perguntas se condensam inclusive em abordagens “psicológicas”, carregando o radical “psi” nos mais variados nomes: psicologia “evangélica”, “cristã”, “teológica”, “pastoral”, “psicoteologia”… A que se deve tal mistura, se a ciência não a aceita e a religião nunca precisou dela?

Mistura entre Ciência e Fé

Primeiro fator a notar: as relações entre psicologia e religião devem ser semelhantes às relações entre ciência e fé. Ninguém contesta, por exemplo, que certos tipos de problemas competem ao médico – e só a ele – medicar. Quando alguém próximo fica doente, rezamos pelo ente querido, mas nem por isso deixamos de levá-lo ao médico (seria irracional pensar que medicina e reza, domínios de esferas bem distintas, atrapalhariam um ao outro, não?). O mesmo deve ocorrer em psicologia: dentro do universo das chamadas “doenças mentais”, alguém com quadro de sofrimento psíquico deve ser encaminhado ao psicólogo. Isso não exclui a oração dos fiéis. Mas apenas a oração não garante de saída melhora alguma (e a existência e sucesso da medicina moderna estão aí para o provar).
Não é difícil encontrar em alguns contextos (e é importante não generalizar) pessoas com sofrimento psíquico ou algum quadro de transtorno mental relatando sobre suas idas a determinados cultos. Nesse contexto, não são raros relatos semelhantes ao seguinte: um indivíduo toma remédios fortes com prescrição controlada. A interrupção brusca do medicamento pode causar efeitos colaterais ou mesmo agravar sintomas. Mas em certos lugares, quando começa a participar no culto, o indivíduo recebe a informação de que o remédio é inútil ou insuficiente. Os temas variam, mas giram em torno da recomendação de que a participação pura e simples no culto garante o milagre. Quanto mais fervorosa a participação, maior seria a garantia. Confiando no “milagre” o indivíduo adere ao culto, com uma expectativa de cura tão maior quanto retornam cada vez mais os efeitos fisiológicos anteriores ao uso do remédio. Nesses cultos, a promessa do “milagre” opera em via contrária ao uso dos remédios, e mesmo requer a ausência deles para que o dito milagre se afirme com maior autenticidade – mesmo que a “cura” nunca chegue ou dure pouco tempo (não sendo milagre algum), outro elemento muito comum nos relatos.

As práticas desses cultos deixam algo claro: há uma mistura, feita por determinadas correntes religiosas, entre religião e psicologia, entre o que compete ao padre ou pastor e o que compete ao psicólogo. Como se a psicologia fosse secundária e subsumida a interesses religiosos. Ou em outras palavras, como se o psicólogo se resumisse a uma espécie de agente religioso que ignoraria a própria ciência ou a colocaria explicitamente a serviço da religião.

Certos setores religiosos chegam a levar essa mistura a práticas errôneas, mal fundamentadas e consideradas anti-éticas. Um exemplo atual é uma “corrente” de psicólogos e/ou religiosos auto-intitulados “psicólogos evangélicos”. Alguns deles inclusive receberam reprovação pública do Conselho Federal de Psicologia (CFP), por prometerem uma terapia para os indivíduos supostamente “deixarem a homossexualidade”. O que esses “psicólogos evangélicos” fazem ao propor isso? Sob temas não muito distantes do que foi enunciado acima, eles também subjugam a ciência à fé. Misturam psicologia e religião, fazendo com que o psicólogo se transforme numa espécie de subalterno de propósitos religiosos sectários. Isso por si só contraria qualquer ideal de ciência (grosso modo uma ciência se apoia em dados factuais e pretende ser livre de simples crenças), e mesmo é um preconceito contra outras religiões. Se um psicólogo é um pretenso cientista mas se subjuga a interesses de uma fé particular, não estaria com isso anulando todas as outras fés, comprometendo a própria tentativa de isenção e relativizando a própria ciência?

Marcio Miotto

 

Professor de filosofia das ciências humanas (UFF-RPS).

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