PICICA: "Na passagem de 2007
para 2008, estourava a maior crise econômica desde 1929, de proporções
verdadeiramente globais: um após o outro, os maiores bancos e
financeiras dos Estados Unidos e Europa foram declarando falência até
que, temendo a derrocada completa do sistema econômico-financeiro
imperial, os governos das grandes potências resolveram assumir o
prejuízo e passaram a injetar capital (“liquidez”) em bancos e empresas a
fim de resgatar sua credibilidade perante o mercado e reerguer suas
marcas e patrimônios. Em questão de semanas, mais de 500 trilhões de
dólares (mais de dez vezes o PIB mundial) foram queimados para que o 1%
mais rico da população mundial pudesse continuar a reinar sobre o
planeta.
A conta
infinitamente salgada, como não poderia deixar de ser, foi rateada entre
os habitantes dos países cujos governos disseram ‘sim’ ao Estado
Imperial e supranacional ligado às finanças e à nata da burocracia dos
organismos internacionais, e num efeito em cascata, hoje se abate sobre
as populações de outros países também – dentre os quais o Brasil. A
bolha imobiliária se tornava, a partir de então e quase que por decreto,
crise da dívida soberana a ser rateada entre os cidadãos, pobres ou
ricos, conscientes [da manobra] ou não."
Rio, redes e ruas
21/05/2013
Por Pedro Mendes
Por Pedro Mendes, UniNômade .
O Império Ataca!
Na passagem de 2007
para 2008, estourava a maior crise econômica desde 1929, de proporções
verdadeiramente globais: um após o outro, os maiores bancos e
financeiras dos Estados Unidos e Europa foram declarando falência até
que, temendo a derrocada completa do sistema econômico-financeiro
imperial, os governos das grandes potências resolveram assumir o
prejuízo e passaram a injetar capital (“liquidez”) em bancos e empresas a
fim de resgatar sua credibilidade perante o mercado e reerguer suas
marcas e patrimônios. Em questão de semanas, mais de 500 trilhões de
dólares (mais de dez vezes o PIB mundial) foram queimados para que o 1%
mais rico da população mundial pudesse continuar a reinar sobre o
planeta.
A conta
infinitamente salgada, como não poderia deixar de ser, foi rateada entre
os habitantes dos países cujos governos disseram ‘sim’ ao Estado
Imperial e supranacional ligado às finanças e à nata da burocracia dos
organismos internacionais, e num efeito em cascata, hoje se abate sobre
as populações de outros países também – dentre os quais o Brasil. A
bolha imobiliária se tornava, a partir de então e quase que por decreto,
crise da dívida soberana a ser rateada entre os cidadãos, pobres ou
ricos, conscientes [da manobra] ou não.
Mais ou menos no
mesmo período, no Rio de Janeiro, Eduardo Paes era eleito para o seu
primeiro mandato de quatro anos como Prefeito da cidade – mandato que
viria a ser renovado em 2012 – com o apoio formal do então Presidente
Lula e do PT nacional, ainda que no segundo turno das eleições. Temendo
perder o ‘palanque’ no terceiro maior colégio eleitoral do país (os dois
primeiros, SP e MG, já haviam pendido para os tucanos), o Partido dos
Trabalhadores não hesitou em se aliar a um candidato que, apenas alguns
anos antes e diante de pequenas inovações introduzidas pelo Governo Lula
– como o Bolsa Família e a Política de Cotas nas Universidades –
promoveu um verdadeiro linchamento midiático que por pouco não resultou
no impeachment do primeiro governo de esquerda eleito na história do
país.
Tomada em conjunto, a
operação executada pelo Prefeito consiste em, considerando a cidade
como uma empresa e procurando extrair dela o máximo de lucro para ele e
seus associados, intervir continuamente nos fluxos urbanos (mobilidade,
eventos, ocupação do espaço público, turismo, comércio) para melhor
dirigi-los. Ao tomar o controle destes fluxos, seja por meio da
normatização arbitrária das atividades exercidas ou por meio direto do
Choque de Ordem, e sempre se valendo da violência (nada) pacificadora
das UPPs, o Prefeito e sua trupe passam então a orientá-los de forma que
eles melhor se adequem às iniciativas das empresas que atuam na cidade.
Neste sentido, o choque de gestão que o Prefeito eleito viria a aplicar
na cidade, nos moldes daqueles desenvolvidos pelos partidos de direita
(Demo-PFL e PSDB) da qual ele se origina, baseia-se largamente na
retomada das políticas de remoção sempre louvadas pelas classes média e
alta cariocas; na repressão aos movimentos sociais e a toda e qualquer
manifestação de dissenso ante as políticas adotadas; pela implantação,
em parceria com o governo do Estado, de uma política de pacificação que
recorre ao genocídio e à intimidação de uma parcela da população como
elementos cotidianos de ‘controle’, política da qual faz parte o Choque
de Ordem; e pela multiplicação de Parcerias Público-Privadas cujo
objetivo explícito é saquear o comum metropolitano de uma cidade toda
ela produzida por trabalhadores e pobres.
Dessa forma, o
futebol é reduzido a produto econômico e canalizado para os bolsos de
empreiteiras e empresários, ao mesmo tempo em que o público é
racialmente selecionado, quer dizer biopoliticamente; o carnaval deve
ser disciplinado para caber nos termos do contrato dos novos gestores da
Apoteose; o Réveillon se torna além de um bom negócio também uma forma
muito eficaz e clara
de segregação; e as ruas se tornam mais um ativo imobiliário a ser
repartido entre as empresas – e apenas então alugados aos trabalhadores
informais, como a própria Prefeitura faz questão de esclarecer. Some-se a
tudo isso, os mega-eventos que legitimam qualquer barbaridade e inundam
a cidade maravilhosa de investimentos – como se este fossem bons em si!
O Bando Imobiliário reorganiza a cidade para melhor explora-la. Ao
passo que o trabalho colaborativo que garante sua produção (e que lhe dá
vida) é violentamente escamoteado pelos poderes público e privado.
De sua parte, o
governo federal tem na economia a principal base de sustentação, uma vez
que esta lhe permite pacificar a fúria acumuladora da elite nacional (e
internacional) ao mesmo tempo que destina parte dos recursos às (cada
vez menos) políticas dos pobres, cada vez mais entendidas como medida
compensatória – e menos como vetor de transformação. A predileção pela
economia, por sua vez, leva inevitavelmente à ênfase no crescimento – do
PIB como do emprego. Neste sentido, falta ao governo federal coragem e
criatividade para investir em políticas inovadoras que se dirijam
diretamente aos trabalhadores pobres e precários das grandes cidades
brasileiras e que tenham por objetivo a mobilização produtiva da vida,
como políticas de renda (salário de vida), de incremento da capacidade
de comunicação (banda larga e telefonia móvel acessíveis e de qualidade)
e de mobilidade, uma vez que é no trânsito e nas trocas da cidade que
toda / qualquer produção se efetua. O governo assim acaba fazendo mais
do mesmo, e destina enorme parte dos recursos para obras que ninguém
quer (além das empreiteiras e de seus sócios no governo), com o fito de
gerar empregos (num país / mundo onde a regra é o desemprego, e logo a
falência da categoria “emprego”) e movimentar a economia, o que
certamente beneficia também os pobres, mas tem alcances claros como
política pública transformadora.
De outra parte, os
governos estadual e municipal, rapidamente adaptados a um cenário de
mobilidade social crescente armaram suas arapucas para capturar todo
possível ganho que os trabalhadores pobres e precários possam
eventualmente vir a ter, bem como tudo aquilo que em sua imensa potência
produziram. Invocando razões de ordem administrativa e econômica1
(entre outras não tão ‘nobres’), investem violentamente contra as
favelas, as formas de viver e de comercializar de camelôs, as ocupações
criativas das ruas por parte dos artistas, as paisagens naturais e
culturais; enfim, contra a (auto)valorização que o trabalho informal de
todos nós construiu e que deu forma e vida à cidade do Rio de Janeiro.
Assim, o desenvolvimentismo do governo federal se casa perfeitamente com
a gestão midiática e fragmentária dos governos locais. No plano macro,
tal operação se sustenta por meio de um perverso consenso que
desqualifica como ‘radicais e demagogos’ (e futuramente também como
terroristas2)
todos aqueles que ousarem fazer qualquer ponderação a respeito dos
rumos que a cidade toma: o Rio de Janeiro e o país podem até ser para
todos (Lula); a pobreza até pode acabar (Dilma); mas somando forças
(Cabral), seremos ‘nós’ – Um Rio! (Paes) – que ficaremos com o legado da
Copa, das Olimpíadas e das intervenções urbanas que delas decorrem. Um
por todos e todos por um [Rio]!
Assim, no plano
político, a associação / consenso entre os diferentes poderes e forças
políticas se traduziu em dois movimentos confluentes: i – a migração de
quadros da direita para o centro e para a base aliada ao governo
federal; movimento no qual se inclui o atual Prefeito; ii) o ingresso,
em contrapartida, de quadros do partido do governo federal (PT) na
administração reacionária dos novos ‘parceiros’. Isso tudo somado
contribuiu para a formação de um dispositivo de poder que atua por
dentro da máquina de governo, mas cujos tentáculos se estendem para
além, abrangendo diversos grupos que atuam em território urbano,
principalmente por conta da histórica relação do PT com sindicatos e
movimentos sociais.
Por outro lado,
porém, como nos lembra Foucault, onde há crescimento do aparato de
poder, há também o florescimento da resistência. E alguns recentes
acontecimentos políticos na cidade oferecem pistas para novas formas de
mobilização, agregando à cultura da luta importantes inovações em termos
de composição e estratégia.
Um Aprendizado da Democracia
Um ponto importante
da experiência da OcupaRio, ocorrida a aproximadamente um ano e meio e
que teve a Praça da Cinelândia como seu epicentro, foi o desenvolvimento
de um saber democrático que não se resumia ao conhecimento político que
cada grupo ou indivíduo aportava, mas que emanava do contato próximo e
muitas vezes violento com a diferença mais radical. Foi muito importante
e inovador o envolvimento de ricos e pobres, brancos e não-brancos,
pessoas politizadas ou não, de pré-adolescentes (e até crianças) a
velhos, vivendo na rua ou em casa, em um experimento político que,
apesar de todos os problemas, teve o mérito de se não constituir sobre
nenhuma forma de hierarquia prévia, embora, é claro!, elas aparecessem a
todo momento e nas situações as mais diversas. Ao mesmo tempo em que
causava um curto-circuito nos dispositivos de poder, que por um longo
tempo não souberam como se relacionar com essa inovação (mesmo para
desmantelá-la), a composição diversificada da Ocupa fazia com que
experiências de vida diversas se desdobrassem em questões políticas
diferentes, por meio do recurso a formas de linguagem variadas, abrindo
assim a constituição da democracia aos muitos que habitam a cidade.
E mais, por um
processo de polinização, a semente de democracia que brotou dali teve o
efeito, junto a outras experiências, de incentivar os moradores e jovens
do Morro do Borel e do Complexo do Alemão a realizar suas próprias
ocupações urbanas, com questões políticas outras, demonstrando que,
apesar dos pesares, a luta não apenas continua como se renova
incessantemente.
Outra rede-movimento
que talvez exemplifique esse tipo de composição transversal seja a que
se formou na cidade do Rio de Janeiro em torno da questão da moradia nos
últimos anos da década passada. Essa articulação inovadora envolveu
moradores, militantes, advogados, pastorais da igreja, defensores
públicos, artistas, mandatos e comunicadores populares na luta pelo
direito à moradia digna e à cidade, e logrou conquistar algumas
importantes vitórias ante o rolo compressor desenvolvimentista que
acompanha e antecipa os mega-eventos na cidade. Antes de ser
desmantelada de forma truculenta e anti-democrática pelos poderes que a
regem [a cidade], essa composição atualíssima – que expressa o potencial
revolucionário do trabalho nas cidades – deu mostras de que resistir é
possível e que a organização das redes, somada a um saudável ‘deixar-se
atravessar’ típico dos pobres da cidade pode constituir um instrumento
poderoso de enfrentamento ao poder. Sua composição multifacetada, neste
sentido, permitiu que se lutasse de forma simultânea e consistente em
várias frentes de conflito e fazendo uso de distintas linguagens para
tanto – política, jurídica, artística, multimídia etc.
Da mesma maneira,
país afora diversas e variadas lutas não cessaram de eclodir e ainda
eclodem, aqui e acolá, contra o projeto de Brasil Maior que não leva em
consideração as necessidades e os desejos dos grupos que aqui vivem. São
revoltas que exprimem (e combatem) a situação muitas vezes degradante
do trabalho (Jirau, Maracanã), a destruição de formas de vida (Belo
Monte, Vila Autódromo, Horto), a violência racista que atinge os pobres
nas cidades (Pinheirinho e as inúmeras favelas de São Paulo que aparecem
pegando fogo), a violência hedionda das polícias (Complexo da Maré,
Salvador), e que nem por isso cessam de inventar o amanhã e construir a
democracia com seu sangue e dignidade. É a vida e a luta pela vida dos
trabalhadores e pobres do país que não cessa de bifurcar os esquemas
rígidos e lineares do poder.
Ecoando os ventos
que vem do norte e do oeste: Occupy Wall Street, 15M e Primavera Árabe –
movimentos de tipo novo – mas também as articulações inovadoras que
surgem a todo o momento no Brasil e em outros países da América Latina,
nos perguntamos até onde é possível avançar na luta pela radicalização
da democracia na cidade do Rio de Janeiro. E lembrando Marx, respondemos
que o pobre é aquele cuja potência é inversamente proporcional à
situação de pobreza. Pois ele é o produtor de toda riqueza (i) e também,
no capitalismo, aquele que é explorado, ao máximo, em sua capacidade de
produzir (ii): sua potência é ilimitada e abarca a própria vida, a
cidade e o comum de todas as vidas sobre a terra!
—–
1 Liminar que impedia assinatura de contrato de concessão do Maracanã é suspensa.
“Sob o argumento de que a manutenção das decisões representava grave
risco para a ordem administrativa e econômica do Estado”: http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/125913.
2 Projeto de Lei quer punir “terroristas” e grevistas na Copa. Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo: http://www.apublica.org/2012/02/pl-quer-punir-terroristas-grevistas-na-copa/.
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