PICICA: "O debate amadureceu muito (e eu tenho
amadurecido com ele), mas ainda me incomoda que as cotas sejam
predominantemente defendidas, no senso comum, apenas como políticas
compensatórias, e não tanto como aposta de que a inclusão de grupos
oprimidos em certas instituições traga o potencial de intensificar o
combate às opressões geradas por elas e reproduzidas em seu interior."
A aposta radical das cotas: luta das/os oprimidas/os e ruptura epistemológica e política.
Já acumulamos alguns anos de discussão
sobre o tema das cotas no Brasil. Dois exemplos famosos: reserva de
vagas para negros/as, indígenas, estudantes de baixa renda e egressos/as
da escola pública no acesso à universidade; reserva de vagas para
mulheres em cargos de representação e direção política.
O debate amadureceu muito (e eu tenho
amadurecido com ele), mas ainda me incomoda que as cotas sejam
predominantemente defendidas, no senso comum, apenas como políticas
compensatórias, e não tanto como aposta de que a inclusão de grupos
oprimidos em certas instituições traga o potencial de intensificar o
combate às opressões geradas por elas e reproduzidas em seu interior.
Você já está bastante acostumado a ouvir
falar no aspecto compensatório das cotas. Exemplo. As estruturas sociais
discriminam os/as negros/as e isso prejudica o seu acesso à educação
superior. Portanto, ações afirmativas voltadas à inclusão de negros/as
na universidade não visam a privilegiá-los/as, mas a corrigir uma
barreira ao seu acesso. Isso não atenta contra o “mérito”; pelo
contrário, contribui para que a seleção avalie o verdadeiro mérito.
Digamos que alguém que enfrentou uma série de barreiras de discriminação
racial e de classe ao longo de seu percurso de vida e escolar obtenha a
nota 89/100 numa prova de ingresso, e alguém que não as enfrentou,
90/100. Sem nem entrar na questão sobre se a tal prova é mesmo uma boa
forma de avaliar… Quem tem mais “mérito”, de acordo com ela? Quem
mostrou maior talento, dedicação e capacidade de crescimento? Quem, uma
vez que tenha um pouco menos de desigualdade de condições na
universidade, tenderá a ter resultados melhores? Eu apostaria todas as
minhas fichas na pessoa que obteve o 89.
Isso é fundamental, mas as cotas, a
garantia de que pessoas de certos grupos ocupem certas vagas (desde que
obtenham certo desempenho básico, em alguns casos), são mais radicais do
que isso, em dois aspectos. O primeiro foi explicado pelo Gustavo
Capela num texto aqui
no blog, faz uns anos: inserir negros/as em posições de poder e
prestígio é uma forma de romper com o imaginário social de que seriam
incapazes de exercer certas profissões ou posições; de romper
simbolicamente, visualmente, com a naturalização de seu lugar político,
profissional, acadêmico e espacial subalterno (e a sociedade é feita
também, em enorme medida, de construções e disputas simbólicas).
Há um segundo aspecto, no entanto, que
parece escapar à maioria das discussões. O movimento negro, por exemplo,
tem lutado por espaço em instituições como a universidade para combater
o racismo no acesso a ela (de modo que a mobilidade acadêmica e social
seja menos determinada por fatores raciais) e no imaginário social que
enxerga o/a negro/a como inferior, mas também para combater o racismo na
e da universidade em outro aspecto, o do conhecimento, cultura e
educação produzidos por ela, tanto em seus conteúdos, como em seus
métodos.
A universidade não tem servido,
historicamente, à causa das e dos oprimidos: à colaboração com as lutas
das classes trabalhadoras, das mulheres, dos/das negros/as e indígenas,
dos/das sem-terra e sem-teto… Divulga externamente e para si mesma a
imagem de que seria uma instituição “imparcial”, interessada na busca
“desinteressada” do conhecimento, mas a verdade é que serve cada vez
mais a empresas (privadas ou estatais) que têm interesses muito
determinados: ampliar seus lucros, o que está em confronto estrutural
com os interesses e anseios dos grupos citados, “minorias” que
contemplam amplas maiorias da população. E mais: mesmo quando o/a
pesquisador/a não é diretamente constrangido/a no que pode e deve
pesquisar pelo estrangulamento de suas fontes financiadoras, o
isolamento social da classe dominante na universidade, a reprodução
inconsciente do senso comum de certa classe na seleção de temas e
perspectivas de pesquisa, tende a produzir efeito semelhante (duas
palavras-chave, aqui, são hegemonia e alienação… e quando falo em
classe, aqui, leia-se também etnia e gênero dominantes, entre outros
aspectos).
Como romper com esse processo de
dominação e alienação na e da universidade? A aposta histórica da
esquerda, pelo menos desde o século XIX, é que somente os/as
oprimidos/as podem ser sujeitos de sua libertação, da superação das
opressões. Portanto, se queremos romper com as práticas dominadoras na e
da universidade, é fundamental que as/os oprimidas/os ocupem-na e disputem-na
a serviço de suas causas libertadoras. Por isso, é fundamental a
extensão popular, a produção de conhecimento pela univeridade em
co-pesquisa com movimentos populares. Por isso, também, a aposta de que a
inclusão direta dos/das oprimidas no espaço universitário, em especial
dos/das oprimidos/as organizados como tal, em movimento de superação
dessa condição (de “classe em si” a “classe para si”, diria o marxismo),
pode ser decisiva.
Eu disse que pode ser, e falei ainda em aposta.
Nenhuma certeza ou determinismo, pois. De fato, não há garantia alguma
de que os/as negros/as que adentram a universidade, por exemplo, farão
esse combate de modo organizado e sistemático. Porém, é mais provável
que consigam fazê-lo quando conseguem ao menos presença no espaço, serem
partes dele, do que quando não têm sequer esse nível básico de acesso.
Falei ilustrativamente da universidade e
das cotas raciais, mas isso também me parece valer para outros tipos de
cotas. Em movimentos sociais e partidos políticos, por exemplo,
instaurar cotas para mulheres em postos de direção e representação pode
servir para romper com a invisibilização de suas capacidades e a
naturalização de que não têm as qualidades exigidas para funções de
liderança. Porém, tem potencial ainda maior do que esse: a abertura de
espaços e o empoderamento possivelmente conquistado pelas mulheres ao
exercer tais cargos tem o potencial de aumentar a capacidade da
organização de combater o machismo no seu interior, na sua práxis e na
política que apresenta.
Então, não é apenas para “compensar” o
nosso machismo, contra o qual lutamos (que nos leva, inconscientemente, a
não reparar e valorizar tanto nas qualidades dirigentes das mulheres),
que defendo cotas para mulheres em postos de direção do B&D e do
PSOL, por exemplo (cotas que já existem, aliás, mas em alguns casos
poderiam ser maiores). Vou além disso: uma mulher, por ser mulher (e
ainda mais quando é feminista, envolvida na luta para se constituir como
“mulher para si”, digamos), tem sim um diferencial positivo que deve
ser valorizado na ocupação de postos de direção e representação numa
organização que se pretenda feminista. A cota, assim compreendida, não
desvaloriza em nada a mulher, como se necessitasse dela por não ter
qualidade para ser dirigente ou representante. Pelo contrário: valoriza a
sua luta e seu potencial universalizante. Ser mulher e feminista é, em
si, uma qualidade a ser valorizada com orgulho numa dirigente, numa
organização feminista. Consequência da aposta de que a as/os
oprimidas/os são as/os maioras/es portadoras/es do potencial de lutar
contra as opressões, os sujeitos protagonistas da construção de uma
sociedade livre e igualitária.
Pela defesa e ampliação de cotas para mulheres, negros/as e outros grupos oprimidos!
Fonte: Imaginar para revolucinar
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