PICICA: "Do que a gente fala quando fala de Anne Frank é
um livro de contos do escritor americano Nathan Englander. Os oito
contos tratam de temas diversos, como o de um homem que precisa lidar
com sua consciência culposa enquanto assiste uma sessão de peep show ou
a história de um grupo de crianças judias que precisa lidar com o
valentão antisemita do bairro. Existe, porém, um tema que reaparece em
diversos contos. É o da experiência do holocausto como uma marca
fantasmagórica que se alonga no tempo e traz uma efetividade até o
presente."
Do que a gente fala quando fala de Anne Frank é
um livro de contos do escritor americano Nathan Englander. Os oito
contos tratam de temas diversos, como o de um homem que precisa lidar
com sua consciência culposa enquanto assiste uma sessão de peep show ou
a história de um grupo de crianças judias que precisa lidar com o
valentão antisemita do bairro. Existe, porém, um tema que reaparece em
diversos contos. É o da experiência do holocausto como uma marca
fantasmagórica que se alonga no tempo e traz uma efetividade até o
presente.
Nesse caso, penso que a expressão marca
fantasmagórica é bastante adequada para pensar a temática tratada nos
contos por conta da duplicidade de sentido que reside no vocábulo. Por
um lado, podemos remontar à etimologia grega da palavra. Fantasma seria
uma imagem oferecida ao espírito (consciência), como um resíduo ou marca
provocada por um objeto que impressiona (ou impressionou) os órgãos
sensíveis. Por outro lado, temos o sentido mais próximo do uso comum da
língua, que designa algo que nos assombra e assusta, permanecendo
existente mesmo após a extinção da causa do objeto.
Por sinal, essa segunda acepção de
fantasma, enquanto assombração, espectro monstruoso, etc., não deixar de
estar relacionada com a ideia uma imagem descarnada, uma pura imagem,
ainda assim capaz de afetar e aterrorizar os viventes. Nesse caso, a
experiência do holocausto retomaria esse duplo sentido, o de uma imagem
que marca profundamente a consciência de um determinado grupo (no caso
do livro de Englander, a comunidade judaica), mas também o de uma
assombração espectral que permanece afetando a ordem dos viventes, como
que capaz de voltar do mundo-do-além (a história) para interferir no
mundo presente.
Esse tema aparece claramente no conto Campo do Pôr do Sol.
A trama começa com um aparente desentendimento banal entre um grupo de
idosos que frequentam anualmente um campo de férias e um homem, também
idoso, que nunca antes esteve no lugar. É Josh, o jovem e recém-chegado
diretor do local, que tenta apaziguar o desentendimento e evitar que o
conflito se transforme numa confusão maior.
Num primeiro momento, parece apenas que o
grupo de freqüentadores habituais está apenas ressentido com a presença
de uma figura estranha e se esforça sempre para mostrar que ele não é
bem-vindo. Essa situação cotidiana, porém, acaba revelando um caso muito
mais grave. Isso porque Agnes Brown e seu inseparável colega Arnie
Levine, dois dos idosos que sempre frequentaram o local, afirmam
categoricamente que Doley Falk, o estranho, é um verdadeiro carrasco
nazista. A imagem gravada na memória de Agnes, décadas atrás, é a prova
afirmativa que sustenta tal juízo a respeito do forasteiro.
O jovem diretor, evidentemente, não dá
nenhuma credibilidade às afirmações de Agnes e acredita que se trata
apenas do velho hábito que a dupla tem de menosprezar os visitantes
ocasionais e novatos desacostumados com o retiro de férias. Por isso,
ele tenta de todas as maneiras convencê-los a deixar Doley em paz e
parar de importuná-lo. A estratégia de contenção, entretanto, não
funciona. Como afirma Arnie, após ter a atenção chamada por estar se
comportando como uma criança de nona série, não tenho ideia de como é
a nona série. Nunca fiz. Mas, os campos? Tive minha dose dos campos. Um
campo bem diferente deste, não é? Você quer falar de campos? Conheço
bem os campos. Conheço a natureza humana. E já vi antes. Sei.
É nesse ponto que fica bem clara a
relação estabelecida pela dupla diante de Doley. Na perspectiva dos
dois, o campo de férias subitamente se converteu numa espécie de
atualização imaginária dos campos de concentração nazistas, na medida em
que a imagem gravada na mente de Agnes lhe assegura que está diante do
seu grande fantasma, um carrasco nazista em pessoal. Como diz Arnie, você [Josh] não vê o que estamos vendo. Talvez, na máquina do banco a senha para tirar dinheiro me escape [...] mas os rostos daquela época, daquele lugar, e Agnes completa, esses a gente não esquece.
Basta essa constatação, essa afirmação categórica de uma memória
marcada pela experiência do holocausto, para garantir aos demais
freqüentadores habituais do campo, todos judeus, que Agnes está certa a
respeito de suas afirmações sobre o passado de Doley.
Em pouco tempo, a sensação de ameaça
rememorada se espalha pelo lugar e Josh tenta desesperadamente conter os
ânimos e evitar que o problema, já bem longe de um fato banal, se
transforme numa grave ocorrência. Apesar de seu esforço, nada parece
demover a ideia fixa que tomou conta de todos. Josh está certo de que
tudo não passa de uma grande confusão, afinal tudo não passa de um
grande engano, o tempo, a memória, que está pregando peças.
O que ele não compreende é que, para
aqueles indivíduos, a renovada e vívida sensação de ameaça não está
acentada na veracidade da memória. A certeza advém não de uma prova
empirica, de um fato demonstrável, mas da manifestação de uma presença
fantasmagórica. De uma marca que simplesmente não pode abandoná-los (aquelas caras não podem ser apagadas pelo tempo, reafirma constantemente Agnes).
E o que o grupo de frequentadores, cerca
de 8 ou 9 indivíduos que acompanham a dupla, defendem? Ora, eles estão
num campo e num campo existem regras que escapam normalidade (um campo é um campo, dentro dele, surgem outros tipos de justiça).
Porém, este novo campo está com os elementos invertidos: o antigo
carrasco agora está na posição de vítima e as vítimas estão na posição
de justiceiros. E o que eles desejam é justiçar o passado, punir e
esconjurar o fantasma que se manifesta no presente. Eles querem um
julgamento.
Josh, evidentemente, não aceita uma
proposta dessa natureza. Do seu ponto de vista, desprovido dessa
consistência fantasmal que marca a memória dos que vivenciaram
diretamente o holocausto, não há nada que comprove que Doley é um antigo
carrasco. E ainda que fosse, nada conforma Josh de que aqueles que
sofreram num campo de concentração tenham o direito de justiçar
privativamente um antigo criminoso. A justiça não é da ordem privada, a
justiça não pode ser aplicada no interior do campo.
A opinião do grupo é bem outra. Como diz Arnie, a justiça tem de ser feita. E noutra passagem, ainda mais enfática, ele afirma que assassinar
é assassinar. Permitir um assassinato é assassinar. Ocultar a história
de um assassinato é assassinar. Desviar os olhos para o outro lado é o
mesmo que revolver a faca. Se Doley estava lá, ele devia ser pendurado
em uma corda, tal como Eichmann. Nessa ótica, a justiça só se
encerra quando todos aqueles fantasmas, que ainda assustam e afligem os
que vivenciaram o holocausto, forem definitivamente exterminados. O
campo não deixou de existir quando sua materialidade se desfez, mas
somente quando o último laço que une passado, presente, a memória e o
tempo, for desfeito. E o que Arnie e Alice fazem não é nada mais do que
operar essa justiça.
Se é em Campo do Pôr do Sol que
o tema aparece de forma explícita, ele não deixa de se manifestar em
outros contos do livro. No texto que dá nome ao livro, também vemos como
a experiência do presente é mediada pela marca fantasmagórica do
holocausto. No conto, a esposa do narrador, Debbie, recebe a visita de
uma antiga amiga de colégio, que junto com seu marido vive em Jerusalém e
pratica uma forma mais ortodoxa de judaísmo. Não é necessário me
alongar em demasia na trama do conto, mas basta dizer que Debbie criou
uma espécie de jogo imaginário, no qual ela imagina o que seria dela
caso sua vida presente se inserisse no contexto do holocausto.
Nesse procedimento mental, ela
conjectura quem poderia ajudá-la, quem a denunciaria ou colaboraria para
que fosse encaminhada para um campo de concentração. Esse exercício de
se colocar no lugar de Anne Frank contamina o modo como ela enxergar o
mundo. Há uma espécie de medo sempre presente, como um fantasma que
assombra a vida dos vivos, o medo que nasce da hipótese de um novo
holocausto.
O curioso é que mais do que uma
experimentação direta daquilo que ocorreu, Debbie compartilha uma
herança cultural, a herança do medo. A marca transcende a própria
experiência subjetiva e pode ser compartilhada, comunicada, passada
adiante. O campo de concentração se transforma na matriz essencial de
uma determinada experiência intersubjetiva do mundo, possibilitando a
construção de uma comunidade untada pelo medo.
E noutro desdobramento, o conto final do livro (Frutas de graça para jovens viúvas),
também reflete sobre a permanência desse fantasma na consciência do
presente. E mais do que isso, essa espectralidade funciona não apenas
como um lembrete assustador sobre a natureza do mundo, mas como uma
descrição dos efeitos de barbarização que resultam dessa experiência.
O professor Tendler, um dos personagens do conto, é a experiência encarnada do do vivente que foi suplantado pelo fantasma (Ele
passou pelos campos. Ele anda, ele respira, e ele ficou perto de sair
vivo da Europa. Mas eles o mataram. No fim, eles mataram o que sobrou
dele). Um morto que se recusou a morrer no campo de concentração, ele agora vive numa zona cinzenta,
na qual os critérios de justiça, de certo e errado, de humanidade e
desumanidade, simplesmente se encontram suspensos. Sua existência é a
própria manifestação de um fantasma, um ser que subsiste inteiramente
como efeito de uma imagem, a imagem do que foi o holocausto.
O grande impasse que o conto trabalha é
sobre a impossibilidade mesma dos viventes – ou seja, aqueles que ainda
não colaram inteiramente suas existências nessa potência imagética da
experiência do holocausto – em julgar ou avaliar essa zona cinzenta.
É isso que Shimmy Gezer tenta explicar para seu filho, quando relembra
os atos de Tendler na guerra de Israel contra o Egito em 1957.
O fato de Tendler ter exterminado
impiedosamente quatro soldados egípcios, desarmados e indefesos, explica
Shimmy, não pode ser julgado simplesmente pela ótica do certo e errado
universais, mas tendo em mente a condição singular na qual o professor
está inserido, naquilo que ele vivenciou no campo de concentração. É
como se aqueles que lá não presenciaram o que ele presenciou só pudessem
prestar uma espécie de reverência compreensiva diante daquilo que ele
se tornou.
Nesse movimento final do livro, vemos
uma retomada da temática já vista entre estas marcas fantasmagóricas e a
constituição de uma zona de “exceção jurídica”. Se no primeiro conto
tratado aqui, essa exceção se manifestava na exigência de um julgamento
(e de punição), agora a exceção aparece desprovida de todos os seus
artifícios, o extermínio puro e simples. É a possibilidade de erradicar o
inimigo (e o inimigo não é mais apenas o carrasco nazista, mas qualquer
alvo que pode ser colocado na posição de ameaça) por meio da força. A
experiência fantasmagórica, como que impulsionada pelo poder do medo que
traz em si mesma, atravessa o ordenamento do presente, instaurando
constantemente novos espaços de ausência de regras e de garantias contra
a violência.
Esse é, talvez, um dos temas mais
interessantes que o livro aborda, uma espécie de reflexão sobre a forma
como esta produção incessante de fantasmas funciona como um dispositivo
de governo sobre os viventes. E isso aparece em três planos distintos, o
individual, o comunitário e o político-estatal. O medo individual
aparece na costura de uma identidade de ameaçado, que contamina o olhar
sobre a alteridade, numa lógica de desconfiança e alerta. A passagem do
plano individual para o comunitário é marcada por um dever moral, o do
compartilhamento dessa presença fantasmal, dessas imagens que não cessam
de voltar ao mundo presente, portanto o dever de sempre lembrar a
urgência de uma justiça vingativa. Finalmente, é na manifestação da
guerra que essa potência fantasmal pode se manifestar integralmente,
possibilitando a própria anulação dos viventes, pondo em funcionamento
um maquinário de extermínio que se autojustifica. A vida, enfim,
subordinada inteiramente aos mortos.
Fonte: Ensaios Ababelados
Do que a gente fala quando fala de Anne Frank de Nathan Englander