PICICA: "Em Lebanon vemos muito da
hipocrisia, das contradições e idiossincrasias da guerra, principalmente
nas regras inobserváveis da Convenção de Genebra, que na prática se
traduzem numa mera mudança de discurso para consumo externo, como no
caso das bombas de “fumaça”; e no trato com os prisioneiros, que devem
ser “bem tratados”, ou seja, na prática, mantidos vivos enquanto se
obtém deles, por meio de tortura física e psicológica, as informações
necessárias para a continuação da matança. Vislumbramos isso em Lebanon
no caráter debochado e maligno que um dos personagens, aliado dos
israelenses, trata o seu prisioneiro. Mais recentemente, o mesmo tema
aparece em “A hora mais escura”, de Kathryn Bigelow, que conta uma
versão da “operação” da CIA que levou à morte de Osama Bin Laden; e nos
faz lembrar das prisões de “terroristas” pelo exército americano em
território cubano."
Líbano
WAGNER CÂNDIDO*
Tive a oportunidade de assistir ao impressionante filme Lebanon, que trata sobre os primeiros momentos da guerra do Líbano, em 1982, onde Israel ordena o avanço do tanque sobre um povoado resultando num massacre que causou repulsa internacional.
Assistir este filme autobiográfico de Samuel Maoz causa aos que tiveram, como eu, algum contato com noções de disciplina militar algumas impressões logo de início: são quatro jovens mal preparados que se vêem enfurnados dentro de um tanque onde se desenrola toda a trama do filme. Em vez de assistirmos uma guerra com heróis, vemos sim fortes cenas de guerrilha urbana, com diferentes facções em conflito, o que maximiza as desconfianças, a desorientação e os titubeios que, imagino, sejam parte integrante de qualquer guerra.
Mas não nos deixemos enganar: a disciplina do soldado e da tropa em situação de treinamento já está longe de ser perfeita – o cinema mostra isso, por exemplo, em “Nascido para matar”, de Stanley Kubrick, e na vida real em alguns episódios lamentáveis de trote aos novatos – e em situações de guerra real só pode ser muito pior. Acredito que a disciplina internalizada – aquela que se revela nos detalhes e serve mais ao instinto de sobrevivência que à atuação coletiva – está muito mais presente do que a disciplina observável na ação do grupo ou no discurso da doutrina militar.
Aliás, sabemos o que significa a doutrina militar. Os exércitos estão apenas interessados no cumprimento das missões, e em manter o soldado vivo e atuante enquanto este cumpre o seu papel, expediente de coisificação comumente chamado de “heroísmo”.
A manutenção da vida pelo seu próprio valor não tem lugar na engrenagem da guerra, que serve à dominação pela via do extermínio. Assim, o terror é o meio e a sobrevivência é a opção, ou, como disse Samuel Fuller, o único heroísmo. Em Lebanon vemos muito da hipocrisia, das contradições e idiossincrasias da guerra, principalmente nas regras inobserváveis da Convenção de Genebra, que na prática se traduzem numa mera mudança de discurso para consumo externo, como no caso das bombas de “fumaça”; e no trato com os prisioneiros, que devem ser “bem tratados”, ou seja, na prática, mantidos vivos enquanto se obtém deles, por meio de tortura física e psicológica, as informações necessárias para a continuação da matança. Vislumbramos isso em Lebanon no caráter debochado e maligno que um dos personagens, aliado dos israelenses, trata o seu prisioneiro. Mais recentemente, o mesmo tema aparece em “A hora mais escura”, de Kathryn Bigelow, que conta uma versão da “operação” da CIA que levou à morte de Osama Bin Laden; e nos faz lembrar das prisões de “terroristas” pelo exército americano em território cubano.
A experiência histórica mostra que a guerra é diferente quando ainda não é a guerra que costumamos imaginar. Assim, milhares de jovens se alistaram alegremente para lutar na Primeira Guerra Mundial, num verdadeiro movimento belicista eivado de emoção e patriotismo, apenas para que, dois anos depois, sua tragédia desse início ao movimento pacifista. A ilusão do heroísmo do soldado defensor da pátria é usada até hoje em todos os exércitos do mundo, assim como o seu contrário, a condenação pública, verdadeira morte social, dos “covardes”, dos que se evadem, dos que se negam, dos que se opõem, dos que tentam impedir essa marcha cega para a morte. Nesse caso nem o tempo os reabilita, já que a estupidez se repete porque se repetem os motivos estúpidos. A esse respeito, é significativa a fala da personagem de Julie Christie em “Longe Dela”, quando esta se depara com informações sobre a guerra do Iraque: “Como puderam esquecer o Vietnã?”
Ficha Técnica
Título: Líbano
Título original: Lebanon
Direção: Samuel Maoz
Elenco: Ashraf Barhom, Oshri Cohen, Reymond Amsalem, Yoav Donat.
País: Israel / Alemanha / França
Ano 2009
Duração: 93 min.
* WAGNER CÂNDIDO, foi professor de história, hoje é controlador de vôo do Aeroporto de Maringá, Pr. Também faz parte do Clube de Leitura da Biblioteca Municipal Bento Munhoz da Rocha Netto, e é cinéfilo.
Fonte: Blog da Revista Espaço Acadêmico
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