maio 13, 2013

"Uma ecologia da imanência de onde?", por Bruno Cava

PICICA: "Como ensina a melhor antropologia no Brasil, os índios das Américas não experimentam a “natureza selvagem”, alguma comunhão esplêndida antes da Queda, mas a sociedade na floresta (e a selva d/na sociedade). Superabundante de relações e pontos de vista constituintes, numa riqueza amazônica onde são bons e maus, perigosos e aventureiros. Saturadíssima de relações sociais com todos os entes que existam, nenhum dos quais além de sua própria existência, nenhuma Terra, nenhum planeta da humanidade unificando-os. E, talvez, eles não vivam o fim do mundo, mas o mundo como findo. Experimentam já o pós-holocausto: são os judeus da terra, como os palestinos o são, os presidiários, os negros americanos, a mulher que apanha do marido alcoólatra, o gay espancado na Avenida Paulista, o despedido que deve tudo e mal tem coragem de voltar para casa, o pobre homem humilhado cotidianamente pelo patrão, a menina estuprada pelo pai, a adúltera queimada com ácido, clitóris extirpado, qualquer criança largada na rua de uma cidade, a barriga com vermes e sem escola, numa cidade ou terra brutalizada pelo mercado mundial, como tantas. Eu posso compreender quando dizem que o mundo já acabou. Jamais deveríamos transcender a condição vívida de todas essas pessoas, implicadas numa “consciência” que é imediatamente enfrentamento, recriação e, apesar de tudo, mais vida. Pessoas que não se suicidam e seguem em frente. Seguiram em frente, até construir o pouco de liberdade e poderes de existir que hoje exercemos. Somos feitos dessa carne, dessas dores e cansaços acumulados e sobrepujados pela vontade maior de reexistir. Foi assim, insurgindo-se, construindo uma ciência de baixo a cima, que escavaram o terreno improvável de nossos direitos." 

Uma ecologia da imanência de onde?


Não tenho como compartilhar o sentimento de que o planeta deva ser salvo. Essa angústia nunca me afetou. Já costumo torcer o nariz quando ouço apelos por salvação, tão rapidamente condutor a escatologias várias e suas indigestões características, mas nesse caso me parece mais grave. Quem é o planeta, essa entidade quase mística? E quem disse que o Planeta quer ser salvo? E quem disse que estaria condenado, em primeiro lugar? Expressões consternadas e declarações sentenciosas, com o que se apresentam os juízes dessa corte, apenas me convencem de uma moral deprimida pelo terror e a paralisia. Teríamos de parar tudo e nos concentrarmos na “big picture”, no grande quadro do fim termodinâmico. Impõem com o selo da mais alta ciência para que deixemos de nos envolver com assuntos menores e os sigamos, como primeira prioridade. Manejam a culpa, e a distribuem em função do quão distante estaríamos, nós negacionistas em distintos graus, em relação à verdade por eles encontrada, revelada e promovida.

A Terra contudo não me assusta, nem seus ciclos, intempéries, ou eras do gelo. Não me assusta como não me assustam as manchas solares, os buracos negros, nem qualquer asteróide que, um dia, à semelhança do que acontecera com os dinossauros, a alta ciência possa concluir com razões matemáticas irá chocar-se por aqui. Não me comove esse pálido ponto azul na escuridão de espaços infinitos… em clima de romantismo siderado. Como tampouco tenho carinho especial pela Terra. Vivo aqui porque outros antes de mim escavaram este nicho onde pude fincar a existência e me alimentar do mundo. Num esforço inglório de lutas, desejos e revoltas, transfiguraram-se as comunidades e civilizações, com todos os seus problemas, até eu aqui poder usufruir de alguma forma de viver a liberdade. Sei que, tirando alguns mitologemas fundadores do ocidente, ninguém veio de algum paraíso, e nada aqui foi conquistado por benção. Não há razão para decadentismo, quando jamais houve idade de ouro. Não nascemos da pureza e da candidez de Gaia, outro nome para um renovado paraíso de tons mais pagãos. O problema é mais embaixo. É mais terreno, mais terra do que Terra. As pessoas é que estão ferradas. Os pobres, os sem-terra, os precários, os sem-renda, os discriminados por N motivos, em N condições de luta e resistência. Todos esses contingentes de deserdados pelo mundo afora, eles é que estão ferrados. Se reconheço uma urgência realmente inapelável, que me atinge graças à mínima sensibilidade com a qual fui dotado, ela reside na urgência de suas lutas. Persegue-me o fato bruto e incontornável de que, para muitos, o amanhã já é tarde.

O prazer gera o conhecimento, mas também a dor. Daí que essa experiência e essa sensibilidade sejam riquíssimas, porque imediatamente apaixonadas, uma inquieta paixão pelo real, um desejo de implicação e de engendramento coletivo de luta. Clamores para salvar o planeta, verdismos de neopagãos, ou indies decalcados de agenda política, estetizados ou terapeutizados, nostalgias da “essência perdida”: tudo isso não faz sentido para quem a pauta já está encarnada. Não admira causar em quem luta a mais rochosa indiferença. Pouco importa profetizar a destruição do futuro a quem mal se equilibra no presente, soluça para dar o próximo passo, para quem qualquer ideia de perspectiva universal excede o desafio cotidiano de se virar e seguir adiante, na lei da sobrevivência. Vivem na pele o mundo, não como alta ciência, mas como superfície.

Minha cumplicidade prefere estar com estes, meus desejados conterrâneos, a render o tempo à hipótese descansada de Gaia. Afinal, Gaia pode ser mais um nome para a Alma do Mundo, outra transcendência nascida quer do misticismo mais vulgar, quer de torneios especulativos filosofantes. É filosofia de laboratório, ideia sem força, sem passione. Gaia não acolhe. O planeta não provê. A “natureza selvagem” nunca foi mãe de ninguém. Dizer-se seu filho é de uma imensa ingratidão. Gaia, a Natureza, o Verde, o Planeta Terra costumam ser invocados apenas por quem os experimentam como turismo, atrás de alguma vibração na vidinha ‘clean’ e confortavelmente monótona. Apartado da alegria da construção coletiva das alternativas e lutas, chega um momento quando precisa depositar as expectativas para sair de uma existência banal e sem sentido. Mas sempre com riscos controlados, a emoção calculada, sem deixar de manter-se limpíssimo (moral e fisicamente), com plena consciência e autossatisfação de uma vivência reconfortadora. Incorre muitas vezes em nostalgia de “bom selvagem”.

Como ensina a melhor antropologia no Brasil, os índios das Américas não experimentam a “natureza selvagem”, alguma comunhão esplêndida antes da Queda, mas a sociedade na floresta (e a selva d/na sociedade). Superabundante de relações e pontos de vista constituintes, numa riqueza amazônica onde são bons e maus, perigosos e aventureiros. Saturadíssima de relações sociais com todos os entes que existam, nenhum dos quais além de sua própria existência, nenhuma Terra, nenhum planeta da humanidade unificando-os. E, talvez, eles não vivam o fim do mundo, mas o mundo como findo. Experimentam já o pós-holocausto: são os judeus da terra, como os palestinos o são, os presidiários, os negros americanos, a mulher que apanha do marido alcoólatra, o gay espancado na Avenida Paulista, o despedido que deve tudo e mal tem coragem de voltar para casa, o pobre homem humilhado cotidianamente pelo patrão, a menina estuprada pelo pai, a adúltera queimada com ácido, clitóris extirpado, qualquer criança largada na rua de uma cidade, a barriga com vermes e sem escola, numa cidade ou terra brutalizada pelo mercado mundial, como tantas. Eu posso compreender quando dizem que o mundo já acabou. Jamais deveríamos transcender a condição vívida de todas essas pessoas, implicadas numa “consciência” que é imediatamente enfrentamento, recriação e, apesar de tudo, mais vida. Pessoas que não se suicidam e seguem em frente. Seguiram em frente, até construir o pouco de liberdade e poderes de existir que hoje exercemos. Somos feitos dessa carne, dessas dores e cansaços acumulados e sobrepujados pela vontade maior de reexistir. Foi assim, insurgindo-se, construindo uma ciência de baixo a cima, que escavaram o terreno improvável de nossos direitos.

É preciso existir nesta terra sem nenhuma entidade superior à experiência, nenhum Grande Plano promovido por sacerdotes; andar sobre ela, cavá-la, a terra em que pisamos e onde somos defrontados com o sofrimento, a degradação e a morte, e onde também amamos, temos amigos, amantes, filhos, cantamos, criamos mais vida muitas vezes das coisas menores, de um besouro que caminhe pela parede. Não precisamos do planeta. Siderar-se no além-mundo, caçar desesperadamente elos perdidos e essências fugitivas, não é uma opção para todos. Não vamos salvar-nos no final, mas e daí, faz diferença? Só sei que podemos continuar lutando pelo mundo a que temos direito, e morrer tentando. É preciso cantar e dançar sobre essa terra. A única ecologia que importa começa na experiência dos pobres, deserdados e sem-terra, com a riqueza vívida desses mundos conflagrados. Daí, sim, se podem fiar a nossa revolta e o nosso amor.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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