PICICA: "Não somos racistas, mas acreditamos e apostamos na raça. É pela força
da raça que a sociedade colonizadora se torna instável, seu outro
inaceitável e inapropriável, e o discurso universalista do povo e do
estado cessa os efeitos de medo, tristeza e vitimização (racismo soft).
Como a raça não poderia importar na relação com o outro, se ela é o
próprio outro com o que podemos nos relacionar, transformando-se a todos
no processo? Se o discurso da raça é inaugurado pelo índio, o “negro da
terra”, é também pelo índio e sua alta filosofia canibal, que ele
vacila, numa diáspora para dentro do pensamento. Se a favela está na
fronteira do tolerável, o teste final do bom gosto do burguês-boêmio, é
igualmente pela favela que a raça vai além, deslocando a modernidade dos
eixos, explodindo o terceiro mundo. Quem tiver de sapato não sobra!"
As raças existem e podem devir
1. No Brasil, não existe diferença entre negar a existência de raças e negar o racismo. A negação da existência de raças, — uma atitude inconsolavelmente racista, — se desdobra em várias linhas. Apesar de, na maioria das vezes, as linhas de negação se apresentarem emaranhadas, — mediante argumentos, discursos e práticas mistos, — é possível sistematizar alguns grandes planos.
Em primeiro lugar, a invocada posição da Ciência. A rigor, raça é algo que não pode ser comprovado. A insistência na ideia vulgar de que existam raças reproduz a falsa ciência na base do racismo. Triste convicção anacrônica, em relação a uma geração mais evoluída, que deixou esses barbarismos para trás. É verdade que, no passado, da antropologia à biologia, se tentou fundamentar a existência da raça. Mas foram tentativas malfadadas. Historicamente, buscavam legitimar a divisão da “humanidade” em raças, uma ciência que não passou de ideologia a serviço de políticas de guetificação. A existência das raças jamais se elevou, genuinamente, a estatuto científico. Portanto, continuar falando em raça, em pleno século 21, consiste numa impostura, um atraso dos intelectuais, e acaba embutindo a pseudo-ciência do racismo. Não sejamos racistas por linhas tortas. É preciso mover-se para frente. A discussão está obsoleta.
Em segundo lugar, a posição do positivismo, para quem raça consiste numa “construção social”. A raça até pode ser reconhecida como existente. Mas o pode apenas como ser pertencente ao mundo social, em sua historicidade e contingência. E não na realidade concreta. É uma versão mitigada da anterior, mais própria das humanidades. Dessa maneira, basta desconstruir os preconceitos e representações em que se baseia essa “construção social”, para salvar a realidade da ação dos racistas. Portanto, a realidade revestida pelas construções sociais pode ser depurada das raças. Pode ser recomposta chegando-se, finalmente, ao substrato que nos une todos. Por debaixo das raças, afinal, somos todos indivíduos humanos vivendo em sociedade.
Em terceiro, a posição pragmática. Embora admita a existência de raças, em termos práticos conclama para que vivêssemos como se elas não existissem. Quer dizer, apesar de persistirem as raças, melhor que consigamos tocar as nossas vidas e organizar a sociedade fingindo que o negro não é negro, o índio não é índio, e assim por diante. A raça não deve importar no nosso dia a dia, na relação com o outro. Devemos nos relacionar com o próximo independentemente de sua condição racial. O que vale é a pessoa, além da cor, origem, raça. A melhor estratégia contra o racismo, desse modo, está em erradicar o preconceito na cabeça das pessoas. O foco são políticas de pedagogia, desmistificando a balela do racismo. Este tem um conteúdo de irracionalidade, um afeto incivilizado, o que não condiz com o humanismo das pessoas com consciência social, com o civismo da igualdade. Quando todos se conscientizarem de que a raça verdadeiramente não importa, quando ninguém mais cultivar os preconceitos, o racismo deixará de existir. Como num passe de mágica.
Em quarto, talvez a linha mais arraigada no senso comum, num abrasileiramento das teorias negacionistas, estão os ideólogos da democracia racial. Em seus vários graus de negação. Reconhece-se a realidade histórica das três raças na formação do Brasil: o índio, o branco e o negro. Três grupos sociais bem definidos, na reunião fundadora da colonização. Três ingredientes cuja mistura improvável nos trópicos viria a gerar o tipo brasileiro por excelência: o mestiço. Hoje no Brasil, todavia, não faz mais sentido falar em raças. Vitória da miscigenação. O índio enfim foi catequizado, elevou-se sobre os últimos traços de natureza e animalidade— e então se misturou ao branco. Virou caboclo. O negro foi desenraizado, submetido à cultura europeia, — e então se misturou ao branco. Virou mulato. O encontro com o branco em qualquer caso disparou o ritual de passagem à condição de povo e cidadão brasileiros — uma obra do século 20. Fator de unidade, cabeça da autoridade estatal, o poder branco fez convergir sobre si as três raças, integradas de norte a sul do país numa única nação. Brancos, negros e índios, mulatos, caboclos e cafuzos se misturaram continuamente por gerações a fio, em variação incessante de tonalidades, até atingir a composição atual onde as raças estão dissolvidas. É inútil insistir em distingui-las, e hipócrita regressar ao passado quando os traços eram delineados. Não somos os Estados Unidos cindidos entre o branco e o negro. Não sejamos divisionistas, nem abasteçamos um ódio racial que os nossos antepassados superaram a duras penas. Na uniformidade proteiforme do mestiço, se concretizaram as promessas de brasilidade, a derradeira unidade nacional forjada pela miscigenação das três raças formadoras. Um etos da acomodação das diferenças, uma democracia no nível de sua formação histórica e política, exemplo para o mundo de tolerância e pluralidade. As raças, portanto, estão na origem e no passado da civilização brasileira, nunca no presente histórico.
2. A primeira linha, dos cientificistas, contorna a singela constatação que o negro existe. A distinção entre branco e negro gera efeitos na realidade. É uma força estruturante do modo como se vive e se organiza a vida comum. É uma condição bastante vívida, imediata, para aqueles que convivem com ela. Porque a polícia enxerga o negro com grande sutileza nos contrastes. A justiça criminal idem. Também os juízes, o júri, os promotores. E as empresas quando selecionam empregados, e a televisão, e a publicidade, e as bancas universitárias, ou quando se fazem amigos, ou relacionamentos amorosos. O negro também é visível quando se pega um metrô, trem ou ônibus qualquer. Ao transitar de uma zona a outra da cidade, vê-se claramente o degradê cromático por que passa o conjunto de passageiros, em função da pobreza ou riqueza dos bairros. Não é difícil tampouco identificar o negro quando se destacam pelo pequeno número, cercados por numerosos brancos que ocasionalmente lhes desferem olhares de desprezo ou condescendência: nas escolas particulares, em cursos concorridos da universidade, nas direções de empresas, de bancos, no controle da imprensa, de instituições públicas, nas câmaras parlamentares, na rua mesmo. O índio também é facilmente identificável por garimpeiros, fazendeiros, madeireiros, pistoleiros, arrozeiros e burocratas do estado, todos interessados em desqualificá-los politicamente e confiná-los em territórios cada vez mais exíguos, em negar-lhes as terras e direitos e exterminá-los sistematicamente como política pública.
Os negros e índios, por sua vez, aprenderam a reconhecer o branco, seus signos e trejeitos, ensinados desde cedo por instinto de sobrevivência ou imposição educacional. Aprenderam a emulá-los, em maior ou menor grau de adesão, e fazer de sua condição paradoxal um terreno de luta e estratégia. Menos por traírem a raça, do que por saberem que, no final das contas, é o branco quem acaba trabalhando menos, que ascende a patrão, e é o branco o menos violentado pela sociedade de estado pós-colonial. Cada um se arranja como pode.
Além disso, o branco também consegue reconhecer outro branco, na absoluta naturalidade e boa consciência de gestos, protocolos de convivência e signos característicos da branqueza. Ovaciona-se a si mesmo como a medida da sociedade ilustrada, monopolista do mérito e esforço individual, cuja moral superior permite o tempo todo clamar por menos corrupção e impostos, mais educação e punição, mais honestidade de propósito pelos moralmente inferiores. O negro e o índio estão fora dessa medida, a menos que se embranqueçam com seus valores de mármore.
Qualquer teoria que se arvore status científico desconsiderando o fato enorme que o negro existe só pode ser uma teoria ignorante. O estatuto científico que barre acesso ao racismo só pode ser uma ciência inútil. Ou em verdade útil, como ideologia: travestida de neutralidade com a meta de mascarar as divisões internas da sociedade, mediante uma miscelânea de comportamentos que as suporta.
A segunda linha, dos construtivistas sociais, falha em não perceber como o racismo é parte indissociável da realidade. Não se trata de um fator de revestimento, um acessório. Não fosse a raça, a sociedade seria outra, desde as estruturas sociais e rituais mais cotidianos. Talvez nem pudéssemos chamá-la de sociedade. Se a raça é uma “construção social”, só o é se admitirmos que quaisquer entes da realidade também o sejam, a começar pelo “indivíduo”, uma construção social relativamente recente na história. A continuar, com muito mais razão, com a “humanidade”, essa sim, recentíssima construção do universalismo europeu e europeizante. Ou qualquer outra figura de síntese elaborada pelo estado, unidades abstratas que aspiram à concreteza histórica, também construídas e reais à sua maneira: o país, a nação, o povo, a alma nacional.
Daí que a maioria dos construtivistas, à semelhança de parte dos pragmáticos raciais (terceira linha) e dos racialdemocratas (quarta), possa aceitar as cotas raciais a título de política compensatória. Uma mero ajuste emergencial, uma medida de menor dignidade do que a verdadeira reforma da universidade e do estado como um todo. Como se negros e índios estivessem sendo compensados diante da violência histórica e política do racismo! E alguém… e o poder constituído tivesse concedido a política de cotas de cima a baixo para compensá-los as perdas. A cota nunca foi uma colher de chá. Chega a ser insulto. Nem alocando todas as vagas para eles, seria possível rascunhar uma compensação, à altura da imensidade fundacional do racismo no Brasil.
Ora, dentre outras, as cotas raciais são um estado de luta conquistado pelo movimento negro e indigenista. Por esse movimento, — quer orgânico, quer molecular, — graças à própria ação direta, as suas alianças e composições, num país em que mal começou a recuperar terreno. A política de cotas raciais, ou melhor, a essência das ações afirmativas pode ser considerada uma política incipiente somente no sentido que precisem ser massificadas. Para que, num crescendo de fortalecimento dos movimentos de luta de minorias (que são maioria), dos elementos de autonomia e autovalorização, eles possam explodir o formidável arcabouço da máquina racista no Brasil, um país culturalmente economicamente politicamente juridicamente racista, que não só tritura diariamente os corpos negros e índios, como também é perpassado por um racismo civil, institucional, estruturado, como se queira batizar: um racismo “a frio” igualmente violento na conjunção de seus efeitos difusos.
Já os pragmáticos acreditam que poderiam eliminar o racismo combatendo o preconceito.
Singelamente. Promovendo um comportamento social em que as raças sejam indiferentes. São os negacionistas “de facto”. Querem matar a cobra, mas não o veneno inoculado. É a importação para a questão racial da lógica terapêutica a 100 reais/hora, a pedagogia do conformismo. Mas o racismo não é um problema educacional. Muito menos psicológico. Não está na cabeça dos racistas. É político, é material enquanto dispositivo de organização e conservação das relações de poder, posicionando os sujeitos em lugares de confinamento, interdição e conversão, fazendo a sociedade funcionar a fórceps, mediante múltiplas táticas de controle social e violência burocratizada, e a partir daí, como efeito reflexo, enraizando-se na cabeça de todos, racistas a quente ou a frio.
Essa linha, no fundo no fundo, pretende naturalizar a própria condição de classe média branca, progressista, como humanismo suprarracial a perseguir-se. Ela não à toa se coloca como medida de todas as esquerdas, e é a mesma amiúde capaz de se comprazer ao sentar-se à mesa com a empregada, declarar orgulhosamente que tem amigos negros, que admira os índios, que pega ônibus como qualquer mortal, ou que nunca nutriu preconceito contra lésbicas e gays. Não se sentem interpelados pela escravidão, afinal, nada teria a ver com o que seus antepassados fizeram, mas são os primeiros a pular sobre a primeira herança que pintar em suas vidas. Para eles, em última instância, no máximo, o índio é o bom selvagem, o negro tem físico avantajado, emoção e potência sexual, uma cultura linda, vibrante. É por isso que a invejam. O último limiar da raça, a favela não aparece senão como a negação do progresso — isso quando por ela não sentem um horror inconfesso. Questionam os valores brancos, nunca o valor branco dos valores. Olham o negro, mas não vêem. Quando vêem, não enxergam. Tudo seria caso de melhorar as condições sociais, sem distinção de raça, no melhor pragmatismo de jantar de família.
Por último, a quarta linha, a dos racialdemocratas, é a mais indigente. Típica de uma classe média de mente colonizada cuja educação serve perfeitamente à brutalidade cotidiana das elites, de quem aufere migalhas em troca da ocupação autocomplacente de cargos no estado e no mercado. Bem representada por intelectuais postiços para quem agora é a vez do Brasil, nada hesitantes em desafinar teoricamente o mito estatal chamado Brasil, elogiando a ordem, o progresso e a Copa do Mundo no país. Uma classe média cuja impotência em mudar o mundo a leva a fiar-se culturalmente mais evoluída, só porque assim é sugerido no telejornal que abre o dia. A maior artimanha dos racialdemocratas foi a invenção do mestiço como solo da brasilidade. Ocorre que nessa raça alegadamente amorfa, panela das pressões colonizatórias, se comprimem todas as violências da civilização brasileira, jusante das matanças, extermínios, guerras biológicas, cassação de direitos e tentativa de bloqueio do acesso à produção de mundo. Ela suporta a sobrecarga intelectual e moral da enormidade de violência e miséria a que foram submetidos os negros e índios, e todos aqueles restos indesejáveis para a esteira da modernização do Brasil: a história do branco, sua polícia, sua justiça, sua ciência, sua antropologia bugreira. Não admira o desequilíbrio e a inconstância de uma sociedade de mestiços sempre prestes a explodir, terceiromundo irreconciliado, tensionado entre modernização e resistência, entre a unidade do povo e a multiplicidade das raças, entre economia do progresso e potência insurrecta. O desequilíbrio fica inevitável e o retorno do racalcado sempre à espreita. O mestiço zanza entre os polos da dupla consciência do oprimido, raça submetida e raça insubmissa, e não deixará de exprimir a sua irresignação.
3. Por que o negro e o índio diluíram-se no branco? Por que não o inverso? Por que o caboclo não pode ser a travessia do branco ao índio; o mulato do branco ao negro? Porque isso está acontecendo. O negro se afirma. Há séculos a população de indígenas nunca foi tão grande e, apesar de tudo, continua crescendo. Existe outra realidade, mais forte, menos domesticada pelas linhas negacionistas, nas raças. Uma realidade positiva, uma miscigenação de resistências, de criação de alteridade e luta biopolítica. Essa positividade racial insiste em anunciar o retorno dos brasis bárbaros contra a utopia do Brasil Maior, não só contra ele, mas além e mais pleno de qualidades, ganas e alternativas. Ultimi barbarorum do Brasil do século 21. Desmascara-se a democracia racial do etos nacional à condição de ideologia da sociedade de estado. Desbaratam-se o progressismo de domingo, o cientificismo pós-racial, o construtivismo negativamente idealista, o racialdemocratismo da TV.
Não somos racistas, mas acreditamos e apostamos na raça. É pela força da raça que a sociedade colonizadora se torna instável, seu outro inaceitável e inapropriável, e o discurso universalista do povo e do estado cessa os efeitos de medo, tristeza e vitimização (racismo soft). Como a raça não poderia importar na relação com o outro, se ela é o próprio outro com o que podemos nos relacionar, transformando-se a todos no processo? Se o discurso da raça é inaugurado pelo índio, o “negro da terra”, é também pelo índio e sua alta filosofia canibal, que ele vacila, numa diáspora para dentro do pensamento. Se a favela está na fronteira do tolerável, o teste final do bom gosto do burguês-boêmio, é igualmente pela favela que a raça vai além, deslocando a modernidade dos eixos, explodindo o terceiro mundo. Quem tiver de sapato não sobra!
O caboclo pode ser mais índio que o próprio índio. E o mulato, mais negro. O índio que sai da floresta pode ser mais índio. Eles podem. Querem. Fazem. O negro ou o índio que assimila cultura branca, e não o contrário, pode torcê-la a seu favor, descatequizando-se, e assim enriquecer plenitudes mundanas inteiras. Não foi assim com boa parte da música vibrante inventada no Ocidente desde o século 19, música negra? Se o branco reproduz a si mesmo, eterno retorno do colonizador, por que não há-de existir outro movimento possível?
Uma ressurgência de uma ancestralidade nunca perdida, reposta como aqui e agora, futuro em construção. Assumem-se as contradições menos por ansiar a sínteses superiores, do que para abrir diferenciações conflitivas. Acessíveis à sensibilidade de quem transita entre mundos. Ativar internamente essas diferenças constituintes, afiá-las contra o poder constituído quando for preciso resistir, sem reduzir as raças a “essências perdidas” a que pudéssemos recorrer como depósito de esperanças. Abandone-se o discurso de tribuno. Agora é o devir de raças.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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