PICICA: "Como todo cineasta brasileiro, enfrento a censura desde meu primeiro filme. Vivi embates diferentes, por filme, época e regime político vigente, mas sempre sob a mesma ameaça de violação parcial ou total da obra".
Carta de Nelson Pereira dos Santos
Nelson Pereira dos Santos não pôde comparecer ontem à sessão de Rio 40 Graus no MAM por questão de compromissos profissionais. Mas ele fez a gentileza de nos enviar uma carta muito bonita, que foi lida ao fim da sessão. Dividimos a carta aqui, pra quem não estava lá.
Caros amigos do cinema,
Mil desculpas.
Minha ausência se deve a compromissos profissionais inadiáveis, mas não posso deixar de participar desta reunião, mesmo de longe através desta mensagem, porque quero associar-me ao alerta levantado por vocês contra nova forma de censura a ameaçar o cinema e, se permitirmos, qualquer espetáculo público.
Como todo cineasta brasileiro, enfrento a censura desde o meu primeiro filme. Vivi embates diferentes, por filme, época e regime político vigente, mas sempre sob a mesma ameaça de violação parcial ou total da obra.
Rio 40 Graus.
Era o ano de 1955. O filme, devidamente censurado com o carimbo de proibido para menores de dez anos, estava pronto para lançamento comercial, distribuído pela Columbia Pictures do Brasil.
Era o ano de 1955. O filme, devidamente censurado com o carimbo de proibido para menores de dez anos, estava pronto para lançamento comercial, distribuído pela Columbia Pictures do Brasil.
Mas no dia 23 de setembro, o Chefe de Policia do Distrito Federal assinou portaria determinando a cassação do certificado de censura, a garantia legal da livre exibição do filme durante cinco anos. Baseou-se em artigo da lei que permitia essa extrema medida se a exibição do filme em sala de cinema provocasse “perturbação da ordem pública”. Ora, como poderia o coronel saber de antemão qual seria a reação do público diante desse ou de qualquer outro filme? Queria proibir, proibir… e por isso não se deteve em violar o direito adquirido legalmente pelo produtor. Alem do mais, proibiu sem assistir ao filme, procedimento igual ao dos que estão proibindo hoje.
- Não viu e não gostou! – estampou um vespertino carioca da época.
Mas o ano de 1955 era também – e graças a Deus! – o ano da campanha eleitoral para a Presidência da República. Os candidatos: de um lado, Juscelino Kubitschek, e, do outro, Juarez Távora, candidato governista e representante das forças golpistas que derrubaram Getúlio Vargas em 1954, portanto candidato daqueles que haviam proibido arbitrariamente a exibição de “Rio 40 Graus”.
Em defesa do filme, manifestaram-se alguns jornais, principalmente os que apoiavam Juscelino, notadamente o “Diário Carioca”, dirigido por Pompeu de Souza, o jornalista libertário que, no final dos anos 40, defendeu bravamente a obra da Nelson Rodrigues contra pesadíssima censura religiosa e política, e foi vitorioso.
Em defesa do filme, Pompeu liderou uma campanha que rapidamente se tornou nacional, conseguindo apoios na Bahia, no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e até em Niterói, nas barbas do Chefe de Policia. Houve tentativa de golpe para impedir a posse de Juscelino, o eleito, logo eliminada pelo contra-golpe acionado pelo General Lott, que salvou a democracia e, com efeito remoto, a integridade do negativo original de “Rio 40 Graus”, ameaçado de destruição pela polícia.
Em havendo democracia, direitos respeitados. O tribunal de Justiça da União, por unanimidade, restituiu ao produtor o direito de exibir Rio 40 Graus em todo território nacional. O que aconteceu com algum sucesso.
Li no facebook algumas mensagens lembrando com muita razão outros títulos de filmes, nacionais e estrangeiros, que foram vitimas da censura brasileira. Acho ótima a idéia – viu Pedro Butcher? – de estender a mostra para incluir todos os títulos lembrados até o momento.
Gostaria de acrescentar outros, como o filme de Olney São Paulo, “Manhã Cinzenta”. Esse, alem de proibido foi recolhido pela polícia política junto com o seu diretor. Olney São Paulo, arrancado do seu trabalho e do seio da família, ficou preso sem processo e submetido a tortura. Eram, infelizmente, os tempos mais que cinzentos, impossível qualquer defesa dos direitos humanos.
De volta às lembranças dos sempre ameaçadores contatos com a censura, visto que não acabaram com o primeiro, na defesa de Rio 40 Graus.
Em seguida:
1962 – Regime democrático, sob a presidência de João Goulart. “Boca de Ouro”, primeiro filme baseado em obra de Nelson Rodrigues. Grandes e demoradas negociações com a censura para liberar o filme sem cortes, mesmo proibido para menores de 18 anos. (Os censores queriam eliminar a cena do concurso de seios entre as grã-finas em visita ao poderoso bicheiro, entre outras.)
1963 – Vésperas do golpe militar. “Vidas Secas”. Produtor obrigado pela censura a colocar antes do filme um texto para “explicar” que a situação do Nordeste era…etc e tal.
1966 – Período autoritário pré AI5. “El Justicero”, baseado na novela de João Bethancourt, o rei do “besteirol”. Lançado com muitos cortes nos diálogos, foi, após a promulgação do AI5, apreendido pela censura, por ordem do Exército. Foram destruídos o negativo original e todas as copias existentes. Quem conta bem essa história, graças a uma dedicada e minuciosa pesquisa, é a professora Leonor Souza Pinto no livro ”Censura na Ditadura. Mas o filme não desapareceu: foi restaurado a partir de uma copia 16mm depositada no Festival de Cinema de Pesaro, Itália, pelo saudoso colega David Neves.
1968 – A ditadura avança, revolta-se a juventude. “Fome de Amor”, livre criação cinematográfica de escrever (roteiro prá quê?) com a câmara. Proibido, depois liberado, graças à habilidade política de Paulo Porto, produtor e ator, com a condição de não traduzir os textos de Che Guevara declamados em Espanhol pela personagem principal enlouquecida. “Fome de Amor” participou em competição do Festival Internacional de Berlim e foi distribuído nos Estados Unidos pela Contemporary Filmes, ramo da editora MacGraw-Hill.
1970 – Tempos negros da ditadura. “Como Era Gostoso o Meu Frances”. Proibido no Brasil, mas com permissão para viajar. Passou pelos festivais de Cannes e Berlim, lançado comercialmente nos Estados Unidos e na Europa, mas proibido no Brasil até 1972, quando foi liberado com mais de 10 minutos de cortes.
1984 – Estertores da ditadura. “Memórias do Cárcere”, metáfora de Graciliano Ramos da sociedade brasileira, sempre prisioneira de sua origem ibérica. Difícil filmagem, sob permanente vigilância oficial, embora amena, mas controladora. Proibição de incluir o hino nacional, depois superada, graças ao sucesso do filme no Festival de Cannes.
Seja qual for a época, ou o regime vigente na ocasião, a manifestação oficial da censura resulta de arcaísmos ainda entranhados nos donos do poder. Essa força autoritária encontra sempre um caminho legal para se impor, como no caso atual do filme sérvio. Um partido político denuncia, uma juíza aceita, o Ministério da Justiça imobiliza-se, tudo para desrespeitar princípio constitucional. Por que? Por receio de um fato que não aconteceu mas “acham” que poderá acontecer. É com essa “visão”, e sem assistir ao filme, proíbem a sua exibição.
Seja qual for a época, ou o regime vigente na ocasião, a manifestação oficial da censura resulta de arcaísmos ainda entranhados nos donos do poder. Essa força autoritária encontra sempre um caminho legal para se impor, como no caso atual do filme sérvio. Um partido político denuncia, uma juíza aceita, o Ministério da Justiça imobiliza-se, tudo para desrespeitar princípio constitucional. Por que? Por receio de um fato que não aconteceu mas “acham” que poderá acontecer. É com essa “visão”, e sem assistir ao filme, proíbem a sua exibição.
Para encerrar, com a palavra o sociólogo e historiador Florestan Fernandes:
O que poderia ser ou aparecer um presente extinto, converte-se, afinal em presente vivo e vivido com sofrimento, vergonha, desespero e revolta. Em suma,ele se evidencia como um presente colonial, que não desaparecerá por si só ou por uma impossível ação redentora dos que tecem a continuidade do despotismo. Sair das prisões não é vencer as ditaduras. Para acabar com elas, no solo histórico da America Latina, seria preciso destruir o arcabouço colonial no qual elas se assentam e lhes dão a maligna capacidade de sobreviver aos que elas aprisionam e libertam.
Muito obrigado
Rio de Janeiro, 3 de agosto de 2011
Nelson Pereira dos Santos
Rio de Janeiro, 3 de agosto de 2011
Nelson Pereira dos Santos
Fonte: Censura não
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