agosto 21, 2011

"O faraó e a represa", por Bruno Cava

PICICA: "A idéia utópica do desenvolvimento traduziu-se por um modelo excludente, que reproduziu a desigualdade, consolidou a gestão autoritária e tecnocrática, e agravou a exclusão social e racial. Distorceu-se ideologicamente como desenvolvimentismo. A infraestrutura necessária para o capital a longo prazo terminou por conformar um estado forte e disciplinador, capaz de garantir o crédito (público), domar o trabalho o mais barato possível, e unificar os interesses por vezes conflitantes dos capitalistas individuais. A partir de 1942, o BNDES (o santo graal dos cepalinos) passa a assegurar as verbas aos consórcios. A partir do segundo pós-guerra, aprofunda-se o pacto entre burocracia estatal e oligarquias empresariais, o que atravessou incólume a ditadura cívico-militar. Aí se inscreve a história de grandes projetos do Brasil do futuro: refinarias, rodovias, portos, aeroportos, a Transamazônica, a Ponte General Costa e Silva (Rio-Niterói), as usinas nucleares de Angra dos Reis, as hidrelétricas de Itaipu (PR), Tucuruí (PA), Balbina (AM) etc."

O faraó e a represa
Diante do faraó, Belo Monte. Um empreendimento onde se depositam as esperanças do futuro da nação. A maior obra do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), a terceira maior hidrelétrica do mundo, licenciada pelo IBAMA e pela FUNAI, resultado de “sólida estratégia de argumentos dentro da lógica e vantagens comparativas da matriz energética brasileira”, peça indispensável e inadiável para um país que quer ser grande. Não há alternativas. O Egito vive a melhor fase de sua história, uma Idade de Ouro onde se sucedem mitos reconfortantes: Pré-Sal, Copa do Mundo, Olimpíadas.
Dezenas de milhares de operários esculpem essa utopia em aço, concreto cimento e gigantescos dínamos. A disciplina egípcia vence pela técnica os obstáculos. Nada é inviável para a engenharia de um país diligente e organizado. O Brasil profundo, terra de arcaísmos e sem lei, será para nós uma tábua rasa, onde nossos projetos redesenharão a paisagem. Civilizaremos essas terras bárbaras, erigindo a realidade do progresso, a nossa realidade.
Estamos em Altamira, o maior município da nação, marco zero da rodovia Transamazônica, outra obra faraônica. Ali, coabitam as contradições de um país pós-colonial, os aventureiros e os empreendedores, os garimpeiros e os madeireiros, os ribeirinhos, os padres, os contrabandistas, os populistas, os poucos agentes do estado, — e rudes povos pagãos que sabem chamar as coisas pelo próprio nome. Ali, nasceu o movimento indígena, o primeiro parque legalizado, o lugar onde, um dia, a índia Tuíra levantou a espada contra a falácia do homem branco.
Se o Rio Nilo foi o eixo ao redor de qual se estruturou o primeiro estado civilizado, o faraó agora empreende no Rio Xingu. Anuncia um oásis de futuro em meio ao atraso e à desolação. Promete inundar a região de dinheiro, empregos, postos de saúde, escolas, creches, bancos e shopping centers. As grandes empreitadas se viabilizam graças à forma centralizada, concentrada e verticalizada de governar. Representando o interesse nacional, a vontade geral, a verdade do poder, expressam um modelo com materialidade histórica e espessura política.
Menos do que obras organizadas por um estado que lhes preexistira, — são elas mesmas a fonte e a causa eficiente desse estado. Elas é que conformam o estado, reordenando-o. Se, há milênios, grandes obras hídricas estruturaram os primeiros impérios no Egito e na Mesopotâmia, hoje ainda servem como princípio de funcionamento do estado moderno.
No começo do século 19, o utopista Saint-Simon já pregava a associação universal, para a consecução de empreendimentos de interesse continental. Defendia que somente a união de esforços em larga escala poderia colocar em marcha trabalhos massivos, como a construção de ferrovias, redes telegráficas e de transmissão de energia. Sem planejamento macro, não poderia haver integração humana nas vastas distâncias. Cabe ao estado moderno, portanto, acumular capital e consorciar especialistas e grandes empresas particulares para a transformação radical do ambiente, — “do qual sois os criadores e os mestres, o espírito de Deus, a educação do gênero humano.” E assim, segundo o imperativo saint-simoniano, ao longo de todo século 19, foram recobertas a tundra czarista e as pradarias americanas de ferrovias, linhas de comunicação e de energia, — passando por cima de todos, índios ou mongóis, que estavam no caminho. Disseminou-se o progresso, o dinheiro, os negócios e a Grande Máquina.
No Brasil do sécul0 20, terra dos novos bandeirantes industriais, o processo foi batizado nacional-desenvolvimentismo. Em 1929, a crise decorrente da quebradeira financeira abriu uma oportunidade para o capitalismo brasileiro.  Suas necessidades de reorganização convergiram politicamente na Revolução de 1930, que tirou de cena a prioridade na agricultura. Com o estado de Vargas, reordenou-se a economia política. O objetivo era concorrer no mercado global: substituir as importações, industrializar, tornar-se competitivo, modernizar o estado. Em suma, desenvolver. Forjou-se aí um consenso entre a esquerda e a direita, uma e outra nacionais e nacionalizantes. Um consenso vigente até os dias de hoje e recentemente renovado, na medida em que a crise de 2008-09 ofereceu novas oportunidades aos países outrora periféricos, como o Brasil, a China, a Índia.
A idéia utópica do desenvolvimento traduziu-se por um modelo excludente, que reproduziu a desigualdade, consolidou a gestão autoritária e tecnocrática, e agravou a exclusão social e racial. Distorceu-se ideologicamente como desenvolvimentismo. A infraestrutura necessária para o capital a longo prazo terminou por conformar um estado forte e disciplinador, capaz de garantir o crédito (público), domar o trabalho o mais barato possível, e unificar os interesses por vezes conflitantes dos capitalistas individuais. A partir de 1942, o BNDES (o santo graal dos cepalinos) passa a assegurar as verbas aos consórcios. A partir do segundo pós-guerra, aprofunda-se o pacto entre burocracia estatal e oligarquias empresariais, o que atravessou incólume a ditadura cívico-militar. Aí se inscreve a história de grandes projetos do Brasil do futuro: refinarias, rodovias, portos, aeroportos, a Transamazônica, a Ponte General Costa e Silva (Rio-Niterói), as usinas nucleares de Angra dos Reis, as hidrelétricas de Itaipu (PR), Tucuruí (PA), Balbina (AM) etc.
Brasília é emblemático como empreendimento faraônico. No imaginário, a utopia do cerrado aparecia como promessa futurista, “branca, como que flutuando na imensa escuridão do planalto”. Porém, atrás das formas abstratas de rigor modernista, está o trabalho humano, o sangue e o suor. Está a urbanização desigual, divisória de ricos e pobres, contemplados pelas verbas públicas e abandonados à miséria. Foi a distopia de um projeto dilacerado, produtor de exclusões, violências e desvios. Isso aconteceu antes, durante e depois das obras, — seja na gestão do empreendimento em si, na falta de controle democrático e publicidade, na urbanização desigual da região (que gerou a miserável Ceilândia, por exemplo).
Para Lúcio Costa, um dos arquitetos do faraó, as condições dos trabalhadores da construção civil durante a construção de Brasília não importavam: “para num deserto construir uma cidade, não pode ser um minueto de cavalheiros”. O mesmo acreditam alguns cidadãos sobre Belo Monte, ao adotar o provérbio que não se faz uma omelete sem quebrar os ovos. Por isso, é comum cair em ouvidos de mercador a tentativa de exasperar a indignação. Não tem demovido o governo, nem mobilizado a sociedade à altura, demonstrar por A mais B a injustiçaintrínseca de todo o processo de implantação da usina de Belo Monte, — desde sua concepção na ditadura dos anos 1970.
Por outro lado, não se trata de contrapor ao plano do faraó algum romantismo do bom selvagem. Estetizar o índio é o primeiro passo para não compreender a sua luta e reconhecer a sua potência. O paternalismo mata a resistência antes mesmo de começar. Os índios não vivem numa comunidade orgânica aos moldes de Pandora, do filme Avatar, numa Gemeinschaft qualquer, que o homem branco veio e perverteu e dissolveu. Os índios também têm história. Como ensina Bolívar Echeverría, muitas são culturas tão antigas quanto autoritárias, e igualmente opostas à natureza, e igualmente fundamentadas no sacrifício humano, como as ocidentais, — cujo mito fundamental é o autossacrifício de Deus. Opor ao faraó a pureza do índio só pode lhe provocar um sorriso condescendente. Pois ele não teme a moral, mas quem tem o poder de enunciá-la com força de verdade. Isso, os escravos não têm.
A força dos índios está na sua impureza. Ao ser devorado pela cidade do capital, ele também devora elementos e técnicas da cultura que o rejeitou. E assim reconstrói-se, nas metrópoles ou nas suas margens, ou no campo atravessado pelo capital, para afirmar a sua diferença produtiva e constituinte. É aí que ele pode coordenar-se com outras lutas, num processo aberto, onde a pobreza se torna o vínculo principal e a principal condição para a revolução. Não é outra a percepção potente do que seja a antropofagia, como revolta dos caraíbas que come por dentro o mundo quantificado e fetichizado dos brancos. Daí a potência de um movimento que admite a possibilidade de o índio acontecer em cada um de nós, de vir aqui e arrancar-nos de nossa cosmovisão e multiplicar as tensões. Quando se difunde com capilaridade, inventa novas mídias e discursos, e recombina as armas do opressor contra ele mesmo.
Do alto da colina avermelhada, o faraó contempla as máquinas que vão e vêm. Ao fundo, o telejornal repete acriticamente o ufanismo nacional. Belo Monte, síntese do novo Brasil desenvolvido. Como no Egito antigo, controlar o rio é controlar o homem. O burburinho da multidão, contudo, não deixa de inquietá-lo. Chegam cacos de informação aqui e ali, uma cacofonia que, na audição apurada do faraó, o preocupa. Ele não pode evitar de suspeitar que, lá embaixo, em algum lugar, entre índios, candangos e nordestinos, algum filho de escravo está aprendendo a sabedoria dos egípcios. Como aconteceu no canteiro de obras de Jirau, no começo do ano. Os tempos são outros e o faraó desconfia da paulatina transformação de lutas e discursos, apesar de toda a utopia que o legitima. Essa suspeita o preenche de medo.
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Textos recomendados:
Belo Monte e Jirau, por trás das represas, por Rodrigo Nunes, na Revista Global Brasil n.º 14
Modernidade, éthos barroco, revolução e autonomia – uma entrevista com o filósofo Bolívar Echeverría, por Javier Sigüenza, na Revista Fórum n.º 101, p. 20-23.
Uma aula sobre Belo Monte, por Raphael Tsavkko (org.), no Angry Brazilian
Para conhecer os argumentos dos desenvolvimentistas, o blogue do consórcio em http://www.blogbelomonte.com.br/

Fonte: Quadrado dos Loucos

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