agosto 25, 2011

Em Manaus a rede extra-hospitalar de saúde mental é precária; em Sorocaba, prevalecem os manicômios

PICICA: Enquanto isto, em Manaus o sistema de atenção em saúde mental dá mostras de exaustão. Servidores de saúde mental adoecem por não suportar a pressão da demanda no único hospício público da cidade, que está em processo de desativação e continua recebendo o maior número de usuários em regime ambulatorial, com filas de espera noturna e retorno agendado para três meses. Cinco policlínicas irão entrar no circuito de atendimento ambulatorial. Como estão registradas a passagem de mais de 55 mil usuários no velho hospício, teme-se uma sobrecarga nas referidas policlínicas. Resta equacionar onde serão oferecidos os leitos psiquiátricos para internações que excedam as 72 horas oferecidas pelo atual Pronto-Atendimento Psiquiátrico, bem como definir o lugar onde deverá se instalar este último serviço, que se constituiu ao longos dos anos como um importante serviço de atenção às crises, e que tem servido como uma das bases da Residência Médica em Psiquiatria. Aliás, quando fui Coordenador Estadual de Saúde Mental comi uma pupunha para tirá-la do papel, o que consegui com o apoio do Dr. Raymison Monteiro, na administração do Dr. Wilson Alecrim, à frente da Secretaria de Estado de Saúde, em 2007. Sem ela estaríamos no mato sem cachorro. Não dava pra pensar a expansão dos CAPS (Manaus só tem dois, até a presente data), justamente porque faltavam psiquiatras no sistema. Atualmente tem oito médicos em formação; três já formados foram devidamente contratados. O problema é que como a projeção da implantação de CAPS pelo município caminha com lentidão, urge o diálogo entre formuladores, planejadores, executores, usuários e familiares, de modo a garantir as conquistas da  sociedade civil organizada, que com a luta antimanicomial antecipou a humanização do Sistema de Saúde, mais tarde tornada política de governo. Além disso é preciso muita informação em circulação. A sociedade é sensível às mudanças nas quais não participa. Um fato deve precipitar essa necessidade vital à vida em sociedade. Depois de mais de duas décadas, um usuário de saúde mental feriu gravemente sua genitora. Fatos como esse tem sua ocorrência sustentada, em grande parte, na assistência precária oferecida aos casos de patologias severas e persistentes. O Centro de Atenção Psicossocial é o modelo por excelência para permitir maior adesão ao tratamento, dado o caráter personalizado do atendimento. Cada cidadão, e sua família, são objetos de escuta e da formulação de projetos terapêuticos individualizados. Não deve ser o único recurso. Sem os Centros de Convivência, entre outros, onde são programadas atividades de geração de renda, arte e lazer, o acompanhamento ainda não atingirá sua plenitude. Sobre isso, os reformistas de araque não dão uma palavra. Mas essa é uma outra história. O depoimento da irmã do usuário que feriu gravemente a mãe foi mais do que preciso: o sistema atual de atendimento no velho hospício não oferece condições mínimas para tratar pessoas em sofrimento mental. Não há relação terapêutica possível com aprazamentos longos, fragmentação do processo de trabalho e de relação entre os profissionais, sob pena dessa precária interação entre a "equipe" ficar restrita ao uso paliativo de psicofármacos, deixando de lado a dimensão subjetiva que é própria das práticas de atenção... ou então não seria uma prática de atenção. Soma-se a tudo isso, o baixo investimento na qualificação dos trabalhadores de saúde, que vivem a perpetuar o velho modelo, contribuindo para a manutenção do desrepeito aos direitos do bom atendimento que todo cidadão merece, seja "doente mental" ou não. Ainda há muita estrada a percorrer.  

Mortes em manicômios de Sorocaba reforçam necessidade de investimento na rede extra-hospitalar Imprimir E-mail
Escrito por Gabriel Brito, da Redação   
Quarta, 24 de Agosto de 2011

Em mais um capítulo da falência do sistema de saúde brasileiro e especificamente do estado de São Paulo, o ano de 2010 registrou o número de 100 mortes em hospitais psiquiátricos da unidade mais rica da federação e cerca de 600 óbitos nos sete que se localizam em Sorocaba e região desde 2006. A tomada de conhecimento por parte da população de mais essa tragédia é mérito do Flamas (Fórum de Luta Anti-Manicomial de Sorocaba), grupo de médicos e psiquiatras constituído em 2004, quando já se notava um quadro macabro na região.

O Correio da Cidadania entrevistou um dos fundadores do Flamas, o psiquiatra Lucio Costa, que explica os motivos que levaram a cidade a se tornar o “pólo manicomial do país”, destacando que tal quadro se deve à visão obscurantista dos gestores de saúde locais. Lucio lembra que, após a entrada em vigor da Lei 10216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica), todo o padrão nacional de tratamento de pessoas com transtorno mental foi alterado, transferindo o foco da internação para o tratamento em pleno convívio social.

“Para se ter uma idéia, na década de 90 tínhamos em torno de 100 mil leitos no país. Hoje temos aproximadamente 33 mil. Portanto, a redução e fechamento desses espaços asilares são questão de tempo. A idéia é que a política extra-hospitalar avance pelo país inteiro para que a gente consiga avançar rumo a atendimentos mais humanizados. E mais que isso: garantir os direitos do cidadão”.

Apesar de mais essa situação inaceitável em nossa saúde pública, Lucio Costa afirma que o governo federal tem dado subsídios aos estados e municípios para a implantação da chamada rede extra-hospitalar, que permite um tratamento em sociedade do paciente. No entanto, aponta a promiscuidade entre o público e privado, mencionando casos concretos na região, que segue despejando dinheiro “em um modelo que não deve mais existir”, como impeditiva de uma mudança definitiva de modelo. O resultado está à vista de todos.

Correio da Cidadania: O que aconteceu nos últimos anos para que os hospitais psiquiátricos de Sorocaba e região registrassem uma enorme e descomunal quantidade de mortes (459) de pacientes em suas dependências?

Lucio Costa: A política pública de saúde mental avançou muito pouco na nossa região. O que chamamos de modelo substitutivo a esses hospitais, tal como se referencia na lei 10216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica), pouco aconteceu.

Temos claro que o poder público não avançou como deveria. Para dar um exemplo, com o desenrolar das discussões sobre saúde mental, a população descobriu que o secretário de Saúde do município era dono de três manicômios da região e o sócio do ex-secretário tinha sociedade nos hospitais de Sorocaba - portanto, uma situação incompatível moral e eticamente com o cargo de secretário de Saúde.

Correio da Cidadania: E o governo estadual? Que parcela de culpa teria nisso?

Lucio Costa: O governo do estado de São Paulo também abre mão de se responsabilizar em políticas públicas que dêem conta da demanda. Assim, temos um cenário em que as estruturas são arcaicas. Não atendem, pelo contrário, segregam e excluem pessoas que por um determinado motivo foram acometidas de sofrimento psíquico.

Hoje existe uma rede pra substituir esses hospitais, como, por exemplo, o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), residência terapêutica, centros de convivência... Tais políticas não existem em Sorocaba. Temos alguns CAPS, mas, por exemplo, o Ministério da Saúde recomenda que, em municípios com 200 mil habitantes, se tenha um modelo que é chamado “CAPS 3”, que funciona 24 horas, com leitos. Se por acaso uma pessoa tiver um surto e precisar de internação, pode ser nesse CAPS 3, por um prazo máximo de sete dias. E não o temos.

Tanto do poder público municipal quanto por parte do governo estadual, não se vêem investimentos para que tal tipo de política seja fomentada em São Paulo, principalmente em nossa região, peculiar no país.

Correio da Cidadania: A partir dessas evidências de abandono, foi feito o estudo que escancarou a situação tenebrosa dos pacientes da saúde mental, especialmente na região de Sorocaba?

Lucio Costa: Há três anos, constituímos o Flamas (Fórum de Luta Anti-Manicomial de Sorocaba), devido à realidade que já se apresentava nos sete hospitais da região. A lei da Reforma Psiquiátrica dá um novo direcionamento às políticas de saúde mental. Dessa forma, não há justificativa para a existência dos manicômios, pois o modelo asilar de internação já não encontra mais espaço.

Nessa perspectiva, o Flamas elaborou uma pesquisa para mapear a saúde mental do município e o cenário da região, na qual se identificou, entre 2006 e 2008, o número de 459 mortes. Depois disso, muitas ações se desdobraram pelo país.

Correio da Cidadania: Permanecem os tabus no tratamento a doentes psiquiátricos? Ainda temos métodos truculentos e isolacionistas de tratamento, contrariando visões que alegam ser mais saudável o tratamento em sociedade?

Lucio Costa: Sem dúvidas. Na verdade, os equipamentos substitutivos da rede hospitalar propõem que o indivíduo seja tratado pela família e acolhido pela comunidade, para que consiga desenvolver autonomia nos cuidados próprios e no convívio social.

Para se ter uma idéia, na década de 90, tínhamos em torno de 100 mil leitos no país. Hoje temos aproximadamente 33 mil. Portanto, a redução e fechamento desses espaços asilares são questão de tempo. A idéia é que a política extra-hospitalar avance pelo país inteiro para que a gente consiga avançar a atendimentos mais humanizados. E mais que isso: garantir os direitos do cidadão que está acometido por transtorno mental.

Correio da Cidadania: Nesse sentido, que balanço você faz dos 10 anos da Lei de Reforma Psiquiátrica e os efeitos causados até agora?

Lucio Costa: Creio que houve avanços. O governo federal tem investido na rede extra-hospitalar, tem dado incentivo aos municípios, para que se construa essa rede extra-hospitalar. Mas depende de vontade política. No caso de nossa região, ela ainda não existe.

Vemos ainda médicos e um grupo com uma visão toda conservadora. E temos clareza que os motivos que levam à continuidade e predomínio dessa visão em nossa região são os interesses econômicos. É claro, notório.

No ano de 2010, foram destinados 40 milhões de reais a esses hospitais da região. Ou seja, 40 milhões investidos em um modelo que não deve existir mais. Poderiam investir os 40 milhões na rede extra-hospitalar. Mas creio que o Brasil tem, sim, avançado nisso. É tarefa dos governos continuar ofertando as redes extra-hospitalares, substitutivas do modelo asilar.

Correio da Cidadania: E por que você diria que a repercussão social é tão menor do que urge o caso?

Lucio Costa: Hoje, temos uma situação peculiar na região de Sorocaba. A quantidade de leitos é enorme. No Rio de Janeiro, há um alto número de leitos. A seguir, vem Sorocaba com o segundo maior número de leitos do país. Se levarmos em conta que o Rio de Janeiro tem 6 milhões de habitantes e Sorocaba 580 mil, vemos que aqui a política não avançou.

O levantamento feito pelo Flamas foi protocolado nas diversas instâncias de poderes. Foram entregues relatórios na Secretaria de Saúde de São Paulo, Defensoria Pública do Estado, Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Ministério da Saúde... Agora, ao lado do Flamas, esses órgãos estão dando uma atenção maior a discutir e repensar o modelo.

Há duas semanas, o Ministério da Saúde anunciou que vai fiscalizar e rever a política de saúde mental nesses hospitais e em outros 200 existentes pelo país. É uma avaliação geral que, devido à situação de Sorocaba, o poder público federal se empenhou em fazer sobre o sistema, que, em nosso entendimento, no dos usuários, dos familiares e dos profissionais, não serve pra atender a pessoa com sofrimento psíquico.

Reforço: nós temos de propor que essa pessoa seja tratada em convívio. A segregação e isolamento dessas pessoas não promovem o tratamento, muito pelo contrário. Creio que, com a reavaliação desses 200 hospitais, teremos uma melhora significativa do atendimento.

Correio da Cidadania: A divulgação na mídia de mais essa tragédia na saúde brasileira é satisfatória?

Lucio Costa: Tenho a preocupação de que até hoje as informações veiculadas se centraram mais nas mortes. É compreensível porque é realmente alto o número de falecidos em tais hospitais. Mas é preciso também fortalecer as opções fora dos manicômios. É um fator importante porque uma fantasia que a população tem é a de que, se acabassem esses hospitais psiquiátricos, um monte de gente ia ficar louca por aí, sem atendimento, abandonadas.

É totalmente inverso. A reforma psiquiátrica propõe a substituição do modelo de atenção. Por exemplo: leitos para esses pacientes devem ser em hospitais gerais. A pessoa pode ficar internada, só não pode morar no hospital, como acontece nos atuais manicômios. Se você tiver uma enfermidade, passa pelo hospital, recebe tratamento e volta pra casa. O que se propõe é um modelo que atenda e também garanta direitos humanos. É isso que precisa ser mais falado.

Correio da Cidadania: Apesar de os hospitais de Sorocaba estarem numa situação mais grave, o que considera dos números dos demais hospitais do estado, nos quais muitas pessoas também morreram? São aceitáveis?

Lucio Costa: Na realidade, esse modelo centrado dentro do hospital facilita irregularidades, por ser um modelo que força a pessoa a adotar tal espaço como moradia, muitas vezes porque a família abandona, por diversas questões. E por diversas questões, com a pessoa passando a morar dentro do hospital, há mais facilidade, notoriamente, de ter seus direitos violados. Nossa região tem um número superior ao resto do estado, o que compromete de vez qualquer garantia aos usuários.

Acho que, muitas vezes, as pessoas têm discursos que não se pode aceitar. Se morresse só uma pessoa por conta da violação de tais direitos nos hospitais psiquiátricos, a atenção deveria ser a mesma de agora, quando se levantou a morte de 459 pessoas. A quantidade é mero detalhe em meio a todo um processo de falência da instituição manicomial.

Mas realmente o número do estado todo é muito alarmante. E Sorocaba fica como grande pólo manicomial do Brasil.

Correio da Cidadania: E as condições de tais instalações hospitalares? Com que estrutura os pacientes da saúde mental cotam hoje?

Lucio Costa: O Ministério da Saúde fez uma auditoria em alguns hospitais aqui de Sorocaba e o relatório final ainda não foi apresentado. Saiu o relatório parcial, com alguns apontamentos e indicativos de irregularidades. Ainda não tivemos acesso ao relatório final, mas foram constatadas irregularidades. Agora, cabe às autoridades competentes que investigam o caso.

Por isso o Flamas se propõe a fazer o debate e o contraponto a essa lógica. Nosso papel é pautar o debate da saúde mental e fazer pressão para que políticas públicas sejam implementadas na área. Por exemplo, agora o assunto tomou proporção, com um relatório sendo encaminhado da Defensoria Pública para a ONU. As autoridades envolvidas darão seus pareceres e encaminhamentos de agora em diante.

Correio da Cidadania: O que você teria a dizer das equipes que trabalham e cuidam desses pacientes?

Lucio Costa: Os trabalhadores desses espaços são verdadeiros guerreiros. O que também foi levantado no estudo é o quadro insuficiente de profissionais. E eles têm de se desdobrar em várias tarefas para dar conta de tudo. Esses trabalhadores também acabam passando situações muito comprometedoras, o que agride o profissional, faz com que não consiga desenvolver seu trabalho.

A maioria das informações que nos chegam é que os profissionais têm se esforçado muito para garantir as mínimas condições de atendimento aos pacientes.

Correio da Cidadania: É que chamaram demais a atenção as reportagens recentes, mostrando alguns pacientes expostos ao frio, morrendo por absoluta negligência e famílias revoltadas com o tratamento dispensado...

Lucio Costa: Sim. Os profissionais, com esse quadro insuficiente, não dão conta. Ficam numa situação delicada, tentando na medida do possível intervir tecnicamente. Mas os limites estruturais do modelo não permitem que se caminhe e avance.

Correio da Cidadania: E como analisa nossas políticas públicas em saúde mental? O que se deve exigir?

Lucio Costa: Esperamos que o governo do estado dê a atenção que nunca foi dada pelo poder público municipal de Sorocaba. Não podemos, por justificativa alguma, aceitar que as pessoas tenham seus direitos básicos violados, vindo até a falecer. Esperamos uma atenção maior, investimentos na área, nos equipamentos extra-hospitalares, para que assim o portador de transtorno mental seja reconhecido como cidadão. Com seus limites, como todos nós humanos temos. E assim avancemos nesse rumo.

Gabriel Brito é jornalista.

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