PICICA: "Os problemas estão mal-colocados. Não é reforma x revolução, mas que reformas queremos, que revolução queremos. É viver e atuar politicamente na fugidia brecha entre correlação de forças e vontade política, — um jogo ardiloso, múltiplo, repleto de armadilhas e maquinações."
Esquerdismo: os puritanos laicos
“Os grandes perseguidores recrutam-se entre os mártires cuja cabeça não foi cortada.” – Emil Cioran
No mundo inteiro, uma miríade de coletivos, movimentos, aparelhos e partidos se designa esquerda. Parte deles, julgando-se mais puros, convictos ou anticapitalistas do que os outros, vão além, e se identifica como extrema-esquerda. Porém, no fundo, as idéias são intercambiáveis, sujeitas a guinadas, equívocos, farsas e inversões.
Para continuar afirmando a sua identidade, os últimos despendem enormes energias para provar o porquê de serem mais esquerda. É como se tivessem um esquerdômetro. A verdadeira esquerda persegue a falsa esquerda e mantém uma preocupação obsessiva em apontar os traidores de classe. Sua tática não se pauta pela análise das relações de força e estratégias concretas de luta, mas pelas intenções na cabeça das pessoas, mais puras ou mais impuras, mais sinceras ou mais cooptadas, mais convictas ou mais cismáticas. Ou seja, julgam em vez de avaliar, demonizam em vez de debater, moralizam em vez de politizar. Precisam de uma linha justa, com suas bandeiras e slogans rígidos, — linha que não é somente política, mas também comportamental. E assim possuem pontos de toque com comunidades religiosas: distante das ruas e praças, da boca e do burburinho do povo, alienada numa verdade transcendente, acumulada de um capital afetivo interno, enfim, ascética e sectária. Tais grupos, quando dotados de algum poder, frequentemente não têm escrúpulos em obter o consenso por meio do paredão. Muito embora, na história, ao tentar liderar a revolta das multidões, costumam ser incinerados na própria fogueira revolucionária — que, aliás, não ajudaram a atear.
Em vez da negação determinada de Marx, isto é, a paulatina maquinação da revolução de dentro das contradições e ambiguidades da conjuntura histórica; uma negação abstrata e vazia, uma reprodução da lógica do senhor e do escravo, que a perpetua. Eis aí o surgimento do que Lênin pejorativamente chamava esquerdismo. Esse conceito ainda é pertinente hoje, guardadas as proporções. Refere-se à parte da esquerda, usualmente oriunda de setores médios intelectualizados, que se pretende mais realista que o rei e, desta forma, termina por servir de quinta-coluna para a direita. Menos do que tensionar a situação histórica à esquerda, subtrai-se da contenda pelo caminho mais fácil: o isolamento. Assolada pela febre jacobina, sobrevive de ligações passionais e fixações traumáticas, menos do que de política propriamente dita. Ao que segue o ressentimento, ironicamente dirigido à esquerda atuante, contra os pobres: alienados, ingratos, preocupados somente com o próprio bolso, seduzidos pelo “consumismo” (sic) e breves ascensões sociais. Estariam as multidões aquém de suas verdades e suas teorias.
Quanto delírio egóico de classe-média revolucionária…
A essência do esquerdismo é estar mais preocupado com o umbigo, com o fechamento de uma identidade, na sua pureza e na sua intransigência, com discussões intermináveis sobre teorias e bandeiras e slogans, do que com a construção de um movimento potente de mudança, na imanência das lutas e nas oportunidades do tempo histórico. Daí o permanente processo de (auto)depuração, de santificação dos puros e demonização dos impuros, desse maniqueísmo destrutivo e paralisante. É a máxima que nos exige lutar implacavelmente contra o esquerdismo: consenso, só no paredão. Mais preocupado em assaltar o céu com boas intenções e cândidos ideais, em trocar vaidades e capitais afetivos entre si, do que com o jogo de forças onde, precária e mestiçamente, acontece a política na cidade dos homens, onde realmente se faz e se produz justiça e vida. O esquerdismo se enfurna em bibliotecas de bronze, e desfila em silenciosas procissões, intacto do mundo.
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Certas ocasiões históricas, movimentos de esquerda conquistam expressão social e conseguem articular-se em frentes amplas. No Brasil, um desses raros momentos aconteceu nos anos 1980, — a nossa década ganha na política. Em autocrítica à estratégia derrotada da luta armada, nos 1970, agenciaram-se muitas bandeiras de peso: trabalhadores industriais e seus sindicatos, intelectuais e estudantes, trabalhadores sem terras, movimentos negro e indígena, a esquerda da Igreja (principalmente a Pastoral da Terra). Destacam-se, nesse período, as greves do ABC de 1979, a organização do Partido dos Trabalhadores (1980), da Central Única dos Trabalhadores (1983), do Movimento Negro Unificado (1978) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (1984), bem como a eleição do primeiro deputado indígena, Mário Juruna (1983), e a campanha das Diretas-Já (1984). Esse aglomerado heterogêneo de forças, com suas diferentes pautas e agendas e poéticas de luta, levou duas décadas para angariar bases e assumir o governo federal.
Em 2002, depois de três derrotas eleitorais consecutivas, o nordestino Lula, — ele mesmo de extração das lutas operárias, — foi eleito presidente pelo PT. A história de seu governo, — em meio à massificação e sucesso das políticas sociais, — é também a história das sucessivas cisões dos grupos que se designam como esquerda. Para estes, o governo Lula, e sua continuação com Dilma (que, no fundo, é o mesmo governo), baseado num pacto classista e num reformismo por dentro do capital, teria guinado à direita ou, com menos rancor, ao “centrão” fisiológico. De todo modo, as políticas adotadas não seriam essencialmente distintas daquelas dos neoliberais anos 1990, com Collor e FHC.
A seu passo, a esquerda que ficou com o governo tende a classificá-lo como “centro-esquerda”. Reclama a indispensabilidade de alianças e acordos na luta pela hegemonia. Propugna por um projeto governamental de longo prazo, na medida das oportunidades e ameaças, internas e externas, endógenas e exógenas, para continuar reduzindo as desigualdades e democratizar a riqueza, — “50 anos”, segundo estimativa do então articulador José Dirceu. E vai sangrando diante de uma grande imprensa virulenta, da reação indignada das elites, das tentativas dos fluxos globais domesticarem e capturarem os avanços, da distorção desenvolvimentista das pautas sociais, das alianças mal-ajambradas ou estrategicamente equivocadas. As transfusões que essa força histórica precisa talvez sejam as novas mobilizações 2.0, da cultura digital, do 15-M, da Praça Tahrir. Lamentavelmente, o governo parece não ter nenhuma leitura dos novos movimentos.
A questão que se põe é: dada a situação das lutas no Brasil, pode-se descartar como um todo o governo Lula/Dilma, como um espaço de construção da esquerda? Essa esquerda que trabalha com o governo, por dentro dele, ou através dele, ela se reduziu tão-somente aos rituais do poder, à burocracia acrítica, à dinâmica autorreplicante das eleições, à impotência prática e paralisia teórica? Que a democracia representativa contamina o exercício do poder não há dúvida, já que a corrupção lhe é sistêmica e iniludível. Mas pergunto: tomando isto por premissa e não conclusão, é mesmo indisputável que a prática institucional do governo não passa de um jogo entre pessoas no poder e pessoas querendo esse poder?, bem como os golpes e escaramuças entre os dois lados, como se lê nas páginas de política dos jornalões? Sem qualquer constituição de um genuíno contrapoder?
Eu acho que não. Não estamos na mesma situação que a Espanha, a Itália, a Grécia. Aqui, ainda há “gordura para queimar”, como costuma me alertar o amigo petista David Carneiro.
Se aceitássemos a divisão maniqueísta entre “governistas” e “antigovernistas”, seríamos obrigados a admitir que, se por um lado, talvez na composição do governo não haja mesmo uma maioria da esquerda; por outro, é certo que a maioria da esquerda brasileira adere, no cômputo geral, a esse projeto historicamente construído de democratização. E aqui aderir não significa defendê-lo e sustentá-lo, ao estilo soviético (no mau sentido da palavra), como se estivéssemos juntos-e-misturados ao governo, numa interminável e tediosa campanha eleitoral. Aderir, aqui, significa crer na necessidade de disputá-lo, de ocupar para que não seja totalmente subjugado, na chance histórica de tentar articular e construir também por dentro dele, nas suas frinchas e ambiguidades. Quer dizer: chegar junto. Sem denuncismos bobos e indignações impotentes. A revolta não é só Antígona, não é só o grito do excluído e a justa resistência à tirania, mas também Prometeu: técnica e artifício. Significa reconhecer que nem tudo está perdido, que o sonho não acabou, que as lutas dos trabalhadores desde os anos 1980 também correm por dentro das dinâmicas de governo e estado, apesar de todos os contragolpes e derrotas e desilusões. E mais do que isso, admitir que o desencanto acrítico e a-histórico, quando não simplesmente moral, conduz a um processo de demonização tão estúpido quanto aquele de beatificar Lula ou o governo que encabeçou.
Deveria ser de outro jeito, numa democracia representativa? Ela está aí, mudá-la só pode ser mudar de dentro. Por dentro e além do governo, por dentro e além do estado. Os problemas estão mal-colocados. Não é reforma x revolução, mas que reformas queremos, que revolução queremos. É viver e atuar politicamente na fugidia brecha entre correlação de forças e vontade política, — um jogo ardiloso, múltiplo, repleto de armadilhas e maquinações. Todavia, é preciso jogá-lo, porque é assim mesmo.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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