PICICA: O editorial do jornal Amazonas em Tempo, de hoje, relembra a figura do Delegado José Ribamar Afonso, a propósito do tratamento por ele dispensado aos motoristas insubordinados do trânsito da Manaus dos anos 1970, que lhe valeu o título de "Delegado do Diabo". O apelido, omitido elegantemente no editorial, fôra surrupiado pela imprensa local da imprensa carioca que assim nomeava o Delegado Fontenelle, este sim o "diabo" em pessoa no trato com o insubordinado trânsito do Rio de Janeiro. Ambos entrararam para a vasta galeria do folclore nacional dos homens que cumpriam duramente seus ofícios. Mas o nosso delegado se distinguia numa particularidade: convivia com a diferença como poucos. Refiro-me aos cuidados que pessoalmente oferecia a uma "louca de rua" conhecida como Gaivota, que aparece aqui num registro memorável do meu considerado Isaac Amorim, fotógrafo amazonense que vive em Brasília, e que carrega em seu curriculum outros dois feitos extraordinários: foi câmera do documentário "Mater Dolorosa", do artista plástico Roberto Evangelista, e do documentário sobre o I CECLAT (Conferência das Classes Trabalhadoras), dirigido por Narciso Lobo, de cuja equipe participaram Simão Pessoa, Marcia Serôa Brandão e este que vos escreve. O documentário está perdidinho da silva. Voltando à vaca fria. Todos os dias Ribamar, que morava na Av. Getúlio Vargas, quase esquina da rua Henrique Martins, oferecia um prato de comida para Gaivota, sempre acompanhada de seus cachorros. Ela recusava receber de suas mãos a oferta; mas assim que o prato era depositado no chão começava o banquete, dividindo-o com seus acompanhantes. Gaivota morreria nos anos 1980, embora não raro a memória afetiva de alguns amigos insistam em dizê-la viva, escorraçada do centro da cidade pelo inferno provocado pelo trânsito. Ribamar também nos deixaria, nos anos 1990. Depois da sua morte - ia longe a morte da cidade que vivemos nossa infância -, foi cortada uma frondosa árvore situada defronte à sua residência, que ele pessoalmente cuidava, adornando-a com trepadeiras. A cidade habituou-se com o desaparecimento de suas árvores, sobretudo as que o comércio destruiu impunemente, para dar lugar às suas placas de propaganda de gosto duvidoso. Consta ainda no histórico do personagem uma rara biblioteca de quadrinhos, cujo destino é ignorado. Grande José Ribamar Afonso. Só não acho justo invocar sua memória para enfrentar a "insubordinação" dos motoristas de hoje, posto que o contexto é diferente. Se é fato que há um traço de incivilidade na cultura dos motoristas da atualidade, que remontaria ao nosso passado, o que dizer do descaso das autoridades com a via pública, pessimamente sinalizada, com ruas e avenidas esburacadas, além de um planejamento fajuto do trânsito manauara, agravado pela aposta na circulação do veículo individual em detrimento do coletivo? Devagar com o andor. Ribamar era um homem inteligente demais para deixar de perceber a complexidade dessas relações, e jamais iria permitir a separação entre esses elementos que tem dado um nó nos administradores públicos, incapazes de oferecer soluções estruturais - salvo ações pontuais - para a população manauara.
Gaivota - Foto: Isaac Amorim - imagem postada em http://www.isaacamorim.com.b
Delegado José Ribamar Afonso
Seg, 08 de AgostoLá pelos idos dos anos 1970, Manaus ainda não se transformara no grande estacionamento que é hoje. Não havia obrigatoriedade de freqüentar uma auto-escola para tirar uma carteira de habilitação. Mas o trânsito da cidade já era insubordinado e continuou a se desenvolver assim até se tornar nesse caos nosso de cada dia.
Nessa época, um advogado, na função de delegado de trânsito, José Ribamar Afonso, ia, ele mesmo, conferir o nível de infrações. Não conversava. Chamava o guincho e multava. E pronto, estava resolvido o problema. Claro, os motoristas não morriam de amores por esse delegado que, nas horas vagas, reunia uma das maiores coleções de histórias em quadrinhos do país. Havia campanhas nos bastidores para tirá-lo do cargo.
Esse flash da história vem a propósito da situação atual do trânsito e do número de campanhas de conscientização dos motoristas sobre questões pontuais, como não ultrapassar sinal vermelho, não estacionar em vagas para deficientes nem na faixa do pedestre, coisas que qualquer pessoa que tenha só a metade do cérebro é capaz de reconhecer.
O índice de acidentes tem demonstrado que esse nível de tolerância com os infratores não tem dado resultado nem vai dar, a curto, médio e longo prazos. Está na hora do guincho e da multa. Os motoristas de Manaus saem da auto-escola, mas não passam no “exame da ordem”. São reincidentes e a pressão sobre eles é mínima. Falta vontade política, como refere o técnico Luis Miura, 62, que foi diretor de trânsito de Brasília, Boa Vista (RR) e Maringá (PR).
Ele passou dois anos em cada uma dessas cidades e reconhece que o “brasileiro se deixou dominar pela máquina. Tudo é feito em função do automóvel”. Combateu especialmente a falta de sinalização nas faixas e a alta velocidade dos automóveis – além, é claro, da falta de educação. “O motorista brasileiro é mal educado em qualquer lugar”, diz.
Sem jamais ter conhecido José Ribamar Afonso, Miura, tem o mesmo ponto de visto do delegado amazonense: “O brasileiro tem essa cultura. No geral,só faz se for punido”. Então, que se lhe faça a vontade. E deixa reclamar da “indústria da multa”. Saudoso José Ribamar Afonso.
Fonte: Amazonas em Tempo
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