PICICA: "“O que está se fazendo na
Amazônia com essas dezenas de barragens, além de danos irreversíveis
para a população da região, pode trazer danos irreparáveis para todo o
país”, alerta o procurador da República."
Estado de exceção e o licenciamento de usinas hidrelétricas na Amazônia: os fins justificam os meios? Entrevista especial com Luís de Camões Lima Boaventura
“O que está se fazendo na
Amazônia com essas dezenas de barragens, além de danos irreversíveis
para a população da região, pode trazer danos irreparáveis para todo o
país”, alerta o procurador da República.
Rio Tapajós tem sua biodiversidade ameaçada Foto: www.missaopaz.com |
Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, o jurista, que atua junto ao Ministério Público Federal em Santarém, Pará, e acompanha os processos relativos às usinas do Rio Tapajós;
ressalta que tanto o governo, quanto as empresas, desrespeitam a
legislação se utilizando de subterfúgios antidemocráticos empregados sob
as “brechas” das leis.
De acordo com o procurador, entre os artifícios mais utilizados está “o dispositivo jurídico chamado Suspensão de Segurança,
que permite ao presidente de um tribunal superior suspender qualquer
decisão judicial que ordene ajustes nos projetos, sob o argumento de que
se eles não forem construídos isso afeta a economia, a ordem, a saúde e
a segurança pública. É um dispositivo remanescente da ditadura,
que tem uma característica preocupante, porque ele mantém qualquer
decisão de um processo judicial suspensa até o trânsito em julgado da
ação. Como no Brasil os trâmites judiciais são conhecidos pela lentidão, isso permite que uma usina como a de Belo Monte, por exemplo, seja construída desesrespeitando a lei ambiental, a Convenção 169 e até a Constituição Federal”, explica.
Especificamente sobre o processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, o qual Boaventura acompanha mais de perto, as duas principais irregularidades detectadas foram a não realização da consulta prévia aos povos afetados e as pressões de embargo ao processo de demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, onde vivem os índios Munduruku
e que seria alagada pela usina. Para o procurador, o governo comete um
grave equívoco ao entender que a não demarcação de terras permitiria a
retirada dos indígenas da área, pois, de acordo com esse raciocínio,
eles deixariam de estar protegidos pela Constituição, que proíbe a remoção desses povos originários em razão das obras. “O simples fato de esse entendimento existir dentro do governo brasileiro é um total absurdo e flagrante desrespeito ao texto constitucional.
A terra indígena, mesmo não estando demarcada, permanece terra
indígena. O fato de o governo brasileiro não reconhecer esse direito, no
intuito de viabilizar decisões políticas previamente tomadas e de
cunho, no mínimo, duvidoso no que tange à verdadeira necessidade e
potencialidade energética do país, é uma afronta a toda a sociedade
brasileira”, analisa.
Essa mentalidade tem se repetido em processos de licenciamento para outras usinas, dentre outras irregularidades. Segundo o jurista, a questão de fundo
desses conflitos que dizem respeito a todos os brasileiros é: “A quem
interessam tais barragens? Essa é a pergunta que a sociedade brasileira
deve se fazer, e não aceitar a resposta pronta de que são necessárias
para gerar energia. Existem alternativas a esses
empreendimentos, mas elas não são acionadas porque existe uma pressão
muito forte para se insistir no modelo de obras faraônicas longe dos
centros consumidores. A título de informação, o Tribunal Superior Eleitoral
registra que há décadas o setor empresarial que mais financia as
campanhas políticas é o da construção civil. Estaria aí a razão para
essa opção, política e pouco técnica, de investir em obras
megalomaníacas? A sociedade precisa abrir os olhos e refletir acerca
disso”, adverte.
Luís de Camões Lima Boaventura
é graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR.
Atualmente é procurador do Ministério Público Federal em Santarém, Pará,
onde acompanha os processos relativos às usinas hidrelétricas do Rio
Tapajós.
Confira a entrevista.
Boaventura na audiência pública do dia 29-01-2016 Foto: mabnacional.org.br |
Luís de Camões Lima Boaventura - Na verdade, o complexo todo previsto pelo governo para a bacia do Tapajós, com usinas nos rios Teles Pires, Jamanxim, Juruena e Tapajós, soma 42 usinas. Por enquanto, estão sendo elaborados estudos de três usinas (São Luiz do Tapajós, Jatobá e Chacorão) no rio Tapajós. Também já foram concluídas algumas etapas do processo de andamento das obras de três usinas no Rio Teles Pires,
principal formador do Tapajós. O governo trabalha sim com a previsão de
construir todas as 42 usinas desse complexo, o que é muito preocupante,
porque os impactos são dramáticos para a região, para os povos que
vivem nela e com possibilidade de efeitos danosos para toda a Amazônia, pela importância ecológica do Tapajós. Vale lembrar que um dos maiores mosaicos de áreas especialmente protegidas do Brasil está no Tapajós.
IHU On-Line – Entre as denúncias
feitas sobre o projeto de construção da Usina Hidrelétrica São Luiz do
Tapajós é que os trâmites estão sendo realizados sem a consulta aos
povos impactados pelo empreendimento. A audiência pública promovida no
dia 29-01-2016, teve o objetivo de se aproximar dessas comunidades para
discutir as implicações da obra?
Luís de Camões Lima Boaventura
- A audiência pública do dia 29-01-2016 não teve nada a ver com o
governo, nem com o licenciamento ambiental da usina, é uma audiência
promovida pelo Ministério Público Federal - MPF na
tentativa de informar a sociedade sobre o que apuramos até agora de
irregularidades no projeto da usina. Além disso, não se deve confundir a
audiência pública promovida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA com a consulta prévia, uma confusão que o governo já tentou fazer no caso de Belo Monte. Ambas são exigências legais no licenciamento de obras de grande impacto, mas de naturezas totalmente distintas.
A audiência pública é uma etapa do
licenciamento ambiental, que deveria ser participativa, mas na prática
tem sido meramente informativa, e o pior, com informações unilaterais,
em que os municípios afetados são visitados pelo IBAMA e
pelos empreendedores, muitas vezes apenas alguns dos municípios e não
todos, para ouvir explicações sobre o projeto e ter acesso aos estudos
de impacto ambiental. A consulta prévia é feita aos povos e populações
tradicionais, no caso do Tapajós, povos indígenas e ribeirinhos, diretamente afetados pelo empreendimento. A consulta prévia é prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT
e tem o caráter de assegurar a esses povos o direito de decidir sobre o
próprio futuro em vez de ter o futuro colocado em risco por
empreendimentos impostos pelo governo brasileiro ou pelas empreiteiras.
Além de uma exigência prevista em acordo internacional, a consulta prévia no caso de São Luiz do Tapajós já foi ordenada pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ. Tanto os índios Munduruku,
que teriam três aldeias alagadas em caso de construção da usina, quanto
os ribeirinhos, que são chamados de beiradeiros do Tapajós, já
apresentaram ao governo federal seus protocolos de consulta, em que
informam de que maneira querem ser consultados. Mas até agora o governo
não tomou nenhuma providência para realizar efetivamente a consulta e
assegurar os direitos dessas populações.
IHU On-Line – Quais as
principais irregularidades e impactos que o Ministério Público Federal
aponta no projeto de construção da Usina Hidrelétrica São Luiz do
Tapajós?
“A terra indígena, mesmo não estando demarcada, permanece terra indígena” |
Luís de Camões Lima Boaventura - São duas graves irregularidades já apontadas pelo MPF
em processos judiciais. Uma é a ausência de consulta prévia aos povos
indígenas impactados, a qual mencionei antes. A outra irregularidade,
que é uma injustiça realmente preocupante, é a existência de pressões de
setores do governo para impedir a Fundação Nacional do Índio - FUNAI de prosseguir com a demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, onde moram índios Munduruku e que seria alagada pela usina.
O entendimento desses setores do governo parece ser o de que, sem a terra demarcada, os Munduruku não estariam mais protegidos pela Constituição, já que a Carta Magna
proíbe a remoção de povos indígenas, o que teria que acontecer com os
Munduruku para dar lugar à usina hidrelétrica. O simples fato de esse
entendimento existir dentro do governo brasileiro é um total absurdo e flagrante
desrespeito ao texto constitucional. A terra indígena, mesmo não
estando demarcada, permanece terra indígena. O fato de o governo
brasileiro não reconhecer esse direito, no intuito de viabilizar
decisões políticas previamente tomadas e de cunho, no mínimo, duvidoso
no que tange à verdadeira necessidade e potencialidade energética do
país, é uma afronta a toda a sociedade brasileira.
IHU On-Line – Que ações o
Ministério Público Federal tem empreendido em relação aos trâmites para a
construção das hidrelétricas no rio Tapajós?
Luís de Camões Lima Boaventura - Até agora são 23 processos judiciais apontando irregularidades nas usinas do Teles Pires e do Tapajós, nas quais o MPF
trabalha em conjunto por afetarem a mesma bacia. Além disso, fazemos o
acompanhamento dos trâmites administrativos do licenciamento, realizamos
reuniões com os afetados, com o governo e as empresas interessadas.
Também estamos presentes em assembleias realizadas pelos povos na área
de impacto e recentemente promovemos uma grande audiência publica em Santarém para debater esses projetos com a sociedade regional.
IHU On-Line - No Brasil, entre
outros problemas, os trâmites para a autorização da construção de usinas
hidrelétricas na Amazônia nunca respeitaram a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho - OIT, que versa sobre a proteção
dos direitos e a garantia da integridade dos povos indígenas. Que
subterfúgios o governo e as empresas envolvidas nessas de obras usam
para descumprir a lei? Que meios poderiam ser utilizados para exigir o
cumprimento da legislação?
Luís de Camões Lima Boaventura - Até agora o principal mecanismo utilizado pelo governo tem sido um dispositivo jurídico chamado Suspensão de Segurança,
que permite ao presidente de um tribunal superior suspender qualquer
decisão judicial que ordene ajustes nos projetos, sob o argumento de que
se eles não forem construídos isso afeta a economia, a ordem, a saúde e
a segurança pública. É um dispositivo remanescente da ditadura,
que tem uma característica preocupante, porque ele mantém qualquer
decisão de um processo judicial suspensa até o trânsito em julgado da
ação. Como no Brasil os trâmites judiciais são conhecidos pela lentidão, isso permite que uma usina como a de Belo Monte, por exemplo, seja construída desesrespeitando a lei ambiental, a Convenção 169 e até a Constituição Federal.
No caso de Belo Monte,
existem várias decisões em que dizem ser obrigatória a consulta aos
povos indígenas. Mas elas não têm validade enquanto o processo não
terminar. Para se ter uma ideia, apenas neste ano o processo deve chegar
finalmente ao Superior Tribunal Federal - STF.
Enquanto isso, a usina de Belo Monte está quase finalizada e todos os
especialistas apontam uma situação de etnocídio, que é a morte de
culturas indígenas, na região do Xingu. Lá também está em curso a morte
de um ecossistema extremamente biodiverso e relevante para o equilíbrio
ecológico da Amazônia. Ou seja, com a Suspensão de Segurança, o governo aposta na morosidade da justiça
para criar o fato consumado, independente de que efeitos esteja
causando nas regiões e povos atingidos e de que leis estejam sendo desrespeitadas.
A mesma coisa ocorreu nas usinas de Teles Pires, São Manoel e Sinop, também construídas com base em Suspensões de Segurança. No caso de São Luiz do Tapajós,
o feitiço virou-se, parcialmente, contra o feiticeiro. Temos uma
suspensão de segurança pedida pelo próprio governo, que foi concedida
pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça - STJ
na época, mas na decisão ele assinalou que a consulta prévia deveria ser
realizada antes de qualquer licença ser concedida. Por não ter
realizado até agora a consulta, o governo estará descumprindo uma
decisão judicial se qualquer licença for concedida ao empreendimento.
“Quando se trata de usinas hidrelétricas gigantescas na região amazônica, está criado um estado de exceção” |
Em outra Suspensão de Segurança, relacionada à Usina São Luiz do Tapajós, o governo conseguiu adiar a demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, que seria alagada pelo empreendimento. A Suspensão de Segurança é um instrumento autoritário
que subsiste na democracia permitindo a um presidente de tribunal
praticamente anular o processo judicial. Contraria o próprio sentido de
corte, onde as decisões devem ser tomadas de forma colegiada.
Com tantas Suspensões de Segurança a favor do governo nos casos de usinas hidrelétricas na Amazônia, o Judiciário vem criando uma situação paradoxal, em que a própria justiça está impedida de cobrar o cumprimento das leis. Na prática, quando se trata de usinas hidrelétricas gigantescas na região amazônica,
está criado um estado de exceção, uma suspensão da Constituição e das
leis, que beneficia algumas empreiteiras e causa prejuízos graves para a
coletividade.
IHU On-Line – Os indígenas da
região da bacia do Tapajós já elaboraram documentos com reivindicações e
protocolos de consulta sobre o projeto para a construção das
hidrelétricas. Esses documentos são considerados na esfera política e
judicial dos trâmites para a regulamentação das obras? De que modo são
utilizados?
Luís de Camões Lima Boaventura - Esses protocolos são fundamentais no processo de consulta prévia e estão previstos na própria Convenção 169,
que em seu artigo 6º aponta que a consulta deve ser culturalmente
adequada, respeitando as tradições políticas e a língua de cada povo
consultado. O protocolo deve ser respeitado, porque a única forma de
assegurar uma consulta culturalmente adequada é de acordo com o que os
próprios povos consultados dizem, dentro do espírito geral da Convenção 169,
que é de assegurar o direito de autodeterminação dos povos e populações
tradicionais. Se os protocolos não forem respeitados, se o tempo que o
povo precisa não for respeitado, se a língua do povo não for respeitada,
não se está fazendo uma consulta, mas sim novamente impondo uma forma etnocêntrica de decisão.
Os protocolos foram entregues pelos Munduruku e pelos beiradeiros do Tapajós, em janeiro de 2015, diretamente ao ministro Miguel Rossetto, na época ministro da Secretaria Geral da Presidência. Até agora não houve nenhuma resposta do governo federal a eles, mas pelo menos o governo não pode mais insistir numa grosseira ilação
que alguns de seus integrantes chegaram a fazer em público e em autos
judiciais, de que os índios não queriam ser consultados. Essa suposição é
até ofensiva, porque os Munduruku são um povo de tradição guerreira,
que tem sido incansável na defesa de seu território, de seu rio, de suas
florestas, viajando do Tapajós a Paris para defender suas tradições. Eles jamais se recusariam a opinar sobre seu próprio futuro.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Luís de Camões Lima Boaventura - Sim. A audiência pública do último dia 29 de Janeiro, promovida pelo MPF em Santarém,
foi um momento muito rico em que a sociedade da região pôde ter acesso
aos fatos desses projetos hidrelétricos e se mostrou muito sensível ao risco que essas usinas representam se continuarem sendo construídas da maneira que até agora foram.
O assunto das hidrelétricas na Amazônia
na verdade interessa a todos os brasileiros, porque se trata de uma
região que vários estudos reconhecem como vital à sobrevivência de todo o
país. Uma região que é responsável pela umidade no sudeste e no sul do Brasil. Um conjunto de ecossistemas diversos e ricos sem os quais, muito provavelmente, São Paulo seria um deserto. Então o que está se fazendo na Amazônia com essas dezenas de barragens,
além de danos irreversíveis para a população da região, pode trazer
danos irreparáveis para todo o país. Por isso tantas ilegalidades em
todos os projetos.
Se houvesse cumprimento das leis, os
projetos seriam decretados inviáveis. A quem interessam tais barragens?
Essa é a pergunta que a sociedade brasileira deve se
fazer, e não aceitar a resposta pronta de que são necessárias para gerar
energia. Existem alternativas a esses empreendimentos, mas elas não são
acionadas porque existe uma pressão muito forte para se insistir no
modelo de obras faraônicas longe dos centros consumidores.
Essa pressão vem de empreiteiras que o Brasil conhece muito bem. Veja, só em relação a São Luiz do Tapajós, oito das nove empresas até agora diretamente interessadas na implantação da usina estão sendo investigadas na Operação Lava-Jato, que tem descortinado laços ilícitos dessas empreiteiras com o governo e os partidos políticos. A título de informação, o Tribunal Superior Eleitoral registra que há décadas o setor empresarial que mais financia as campanhas políticas é o da construção civil.
Estaria aí a razão para essa opção, política e pouco técnica, de
investir em obras megalomaníacas? A sociedade precisa abrir os olhos e
refletir acerca disso.
(Por Leslie Chaves)
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Fonte: IHU
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