fevereiro 14, 2016

O que o samba pode te ensinar. Por Stephanie Ribeiro ( BLOG DA REDAÇÃO)

PICICA: "Não pense que a denúncia da desigualdade surgiu com o rap. Vasto repertório de canções expressa, há décadas, re-existência e criatividade dos negros, num país que os queria apenas como braços" 



O que o samba pode te ensinar

160211-Martinho

Não pense que a denúncia da desigualdade surgiu com o rap. Vasto repertório de canções expressa, há décadas, re-existência e criatividade dos negros, num país que os queria apenas como braços

Por Stephanie Ribeiro, do site Alma Preta | Edição de Imagem: Vinícius de Almeida | Imagem: Elifas Andreato


(Um texto para o meu avô, que aos domingos
colocava um álbum do Martinho da Vila
e me tirava pra dançar)


Como já disse Nina Simone, é dever do artista mostrar os tempos em que vivemos. Com os cantores de samba não foi diferente. Ao contrário do que muitos imaginam, não foi só quando surgiu o rap que o negro passou a fazer críticas e denúncias ao contexto social que estamos inseridos.

São canções feitas há anos, nas décadas de 1950 a 80, que se hoje fossem escutadas por nós ainda fariam sentido e seriam facilmente identificadas com nossas atuais vivências. A origem do samba por si só explica o porquê esse ritmo negro fala tanto sobre nós:

“Uma das formas mais comuns pelas quais os negros reafirmavam seus laços de amizade e cooperação ocorria durante as festas nas casas das “tias” ou das “vovós”. As casas das “tias” e das “vovós” eram grandes pontos de encontro daquelas comunidades. Durante essas festas, ocorria a celebração de rituais religiosos, o oferecimento de variados pratos de comida e a execução de diferentes manifestações musicais. Usualmente, aqueles que frequentavam essas festam diziam que frequentavam o “samba” na casa da vovó (ou da titia). Dessa maneira, antes de surgir a música “samba” o termo era sinônimo de festa. Outros pesquisadores do assunto ainda relatam que o termo “samba” tem origem no termo africano “semba”, que era comumente utilizado para designar um tipo de dança onde os dançarinos aproximam seus ventres fazendo uma “umbigada”. Segundo o dicionário Aurélio o termo originário ainda significa “estar animado” ou “pular de alegria”.

Não precisamos sequer de um explicação tão grande, basta escutar as canções de Martinho da Vila “Batuque na Cozinha” ou “Segure Tudo” e identificar a batida de terreiro, que já entenderíamos de onde vem o samba. É uma música feita sobre nós negros numa época em que essa era uma forma de explicitar a vida cotidiana do preto pobre brasileiro, os marginalizados que viviam nas periferias formadas no pós-abolição. E como muita coisa não mudou, ainda hoje temos nossa realidade refletida em algumas canções.

Por exemplo, hoje muito se fala de apropriação cultural, mas o sambista Geraldo Filme na canção “Vai Cuidar da Sua Vida” já cantou:

“Crioulo cantando samba/ Era coisa feia / Esse é negro é vagabundo / Joga ele na cadeia / Hoje o branco tá no samba / Quero ver como é que fica / Todo mundo bate palmas / Quando ele toca cuíca.”


O mesmo sambista na canção “Garoto de Pobre” esmiuçou sobre a realidade do pobre brasileiro:

“Garoto de pobre / só pode estudar / em escola de samba / Ou ficar pelas ruas / jogado ao léu (…) Ele desce dos morros / ele vem das vilas / e chega a cidade / alegra os turistas / recebe os aplausos da sociedade”

Em tempos onde ficamos compartilhando em redes sociais fotos de crianças negras trabalhando nas ruas, com textos bonitos, precisamos escutar mais o que Geraldo Filme cantou.  E assim começar a questionar essa realidade na qual estamos inseridos para não acreditarmos que tais atos e “textos bonitos” são empatia.

Bezerra da Silva já mostrou como as pessoas quando não romantizam a pobreza, criminalizam-na, como na música “Vítimas da Sociedade”:

“Se vocês estão a fim de prender o ladrão / Podem voltar pelo mesmo caminho / O ladrão está escondido lá embaixo / Atrás da gravata e do colarinho (…) / Só porque moro no morro / A minha miséria a vocês despertou / A verdade é que vivo com fome / Nunca roubei ninguém, sou um trabalhador / Se há um assalto à banco / Como não podem prender o poderoso chefão / Aí os jornais vêm logo dizendo que aqui no morro só mora ladrão.”

Ele ainda conclui:

“Somos vítimas de uma sociedade / Famigerada e cheia de malícias / No morro ninguém tem milhões de dólares / Depositados nos bancos da Suíça.”

As letras denunciam situações até sobre a forma como o samba foi apropriado e seus cantores embranquecidos para que o gênero fosse aceito:

Samba / Negro, forte, destemido / Foi duramente perseguido / Na esquina, no botequim, no terreiro / Samba /Inocente, pé-no-chão / A fidalguia do salão / Te abraçou, te envolveu / Mudaram toda a sua estrutura / Te impuseram outra cultura / E você nem percebeu.”

A música acima “Agoniza Mas não Morre” de Nelson Sargento, facilmente explica o que aconteceu com o Blues, Rock e vem acontecendo com o Funk e até mesmo com o Rap.

É obvio que além de denunciar, os sambas também tomam como partido o enaltecimento da cultura negra. Uma das músicas que mais me emociona é “Orgulho Negro” da Jovelina Pérola Negra:

“Negro é raiz / Negro é raiz / Me orgulho por isso / me sinto feliz / Negro é raiz / Negro é raiz /Negro é raiz / Na senzala, o negro não tinha sossego / Ao ver a chibata / Tremia de medo / Fazia de tudo para não apanhar / Só sentia em seu rosto suor escorria / trabalhando embaixo do sol de meio-dia / Se sacrificando para se libertar / Recordando / O homem no tronco apanhando / os olhos dos outros só lacrimejando / pedindo clemência para ele descansar / É ou não é raiz?”



E nossa maravilhosa Dona Ivone Lara já cantou que o negro é a raiz da Liberdade, em “Sorriso Negro”:

“Um sorriso negro, um abraço negro / Traz….felicidade / Negro sem emprego, fica sem sossego / Negro é a raiz da liberdade/ (…) Negro que já foi escravo / Negro é a voz da verdade / Negro é destino é amor / Negro também é saudade.. (um sorriso negro!)”


Muitas pessoas falam de letras que são machistas e eu reconheço que tem sim sambas que reproduzem ideias que inferiorizam as mulheres, assim como em todos os gêneros musicais. Mas duvido que alguém encontre uma música na década de 50 como a de Cartola “Vou Contar Tintim por Tintim”:

“Eu fui tão maltratada / Foi tanta pancada / Que ele me deu / Que estou toda doída / Estou toda ferida / Ninguém me socorreu / Ninguém lá em casa apareceu / Mas eu vou ao distrito / Está mais do que visto / Isto não fica assim / Vou contar tintim por tintim / Tudo nele eu aturo / Menos tapas e murros / Isto não é para mim”

As sambistas mulheres negras também eram não só questionadoras como atemporais nas questões que envolvem o universo feminino. Chiquinha Gonzaga em “Dois Corações” já dizia:

“Dei o meu a aquele ingrato / Que não soube me amar / Conheci duas meninas / Todas as duas eu quero muito bem / Uma mais do que a outra / Uma mais do que a outra / E a outra mais do que ninguém”

E tem até trechos empoderadores como na canção “Luz do Repente” da já supracitada Jovelina Pérola Negra:

“Eu sou partideira da pele mais negra / Que venho, que chego para improvisar / Já vi partideiro que nunca vacila / Entrando na fila, querendo versar / Mas dou um aviso que meu improviso / É sério, é ciso, não é de brincar / Otário com aço, eu mando pro espaço / Versando, eu faço o bicho pegar”



Vamos entender que se fala na origem do samba atrelada a uma mulher, a tão citada por alguns sambistas: Tia Ciata. Ela seria a dona do quintal “Berço do Samba”, mas também segundo alguns, era uma das que cantavam sambas anteriormente à década de 50, por isso não coloquei nesse texto nada que fixe a origem do samba exatamente. Acredito que ele tem origens negras, portanto, me dói quando vejo pessoas dando a Noel Rosa um título de grande nome desse gênero musical num país onde Geraldo Filme já disse: “Sambista de rua morre sem glória”

Por fim:

“Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo sim senhor /Quero mostrar ao mundo que tenho valor / Eu sou o rei do terreiro / Eu sou o samba / Sou natural daqui do Rio de Janeiro / Sou eu quem levo a alegria / Para milhões de corações brasileiros / Salve o samba, queremos samba / Quem está pedindo é a voz do povo de um país / Salve o samba, queremos samba / Essa melodia de um Brasil feliz”

Sim Zé Kéti, a “Voz do Morro” é o samba.

Eu cresci escutando sambas como os então citados, principalmente Martinho que era um dos grandes ídolos do meu avô Daniel. Foi “Canta Canta Minha Gente” que me inspirou para esse texto. E hoje eu percebo a importância de ter tido uma figura como ele na minha vida, que me tirava para dançar, que me fazia rir quando dançava miudinho, que me ensinou que nem todos os homens vão me tratar mal, enquanto meu pai se esquecia da minha existência… Meu avô foi também a minha referência negra dentro de casa. E hoje eu lamento muito não poder mostrar para ele a mulher, que ele também educou.

Nós negros crescemos acreditando num passado perdido e triste quando na verdade muitos lutaram por nós. Essas letras mostram uma intelectualidade ritmada, um pensar nosso. Para mim hoje é fácil saber que eu vou ser arquiteta, porque meu avô pintava paredes, porque minha bisavô lavava roupa para fora, porque alguém sobreviveu mesmo quando nós negros éramos tratados como escravos. Eu acho que temos que entender o passado para viver o presente e conquistar um futuro. Por isso busquei inspiração nas letras de samba, que são heranças que negros nos deixaram e precisamos usá-las…

Para o meu avô eu cantaria Cartola: “Você também me lembra a alvorada / Quando chega iluminando / Meus caminhos tão sem vida…”

E ele me responderia:

“Canta Canta, minha Gente / Deixa a tristeza pra lá / Canta forte, canta alto / Que a vida vai melhorar (…) Cantem o samba de roda / O samba-canção e o samba rasgado / Cantem o samba de breque, / O samba moderno e o samba quadrado.”



Stephanie Ribeiro é estudante de Arquitetura e Urbanismo na PUC de Campinas. Ativista feminista negra, já teve textos seus postados no site da revista Marie Claire, Blogueiras Negras, Géledes, Confeitaria, Modefica, Imprensa Feminista, Capitolina, entre outros. Em 2015, recebeu da Assembleia Legislativa de São Paulo a Medalha Theodosina Ribeiro, que homenageou seu ativismo em prol das mulheres negras.

É também uma das fundadoras do projeto Afronta – http://www.afronta.org/.

Fonte: BLOG DA REDAÇÃO

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