PICICA: "O
Psicótico não é um eremita. A solidão não lhe apraz e Freud chegou
mesmo a dizer que, até na confusão alucinatória mais aguda, o Eu não
está todo no sintoma. Quanto a Lacan, todos sabem que ele incentivou
desde cedo os analistas a se deixarem ensinar pelos psicóticos,
declarando que foi Marguerite Anzieu, ou melhor, sua Aimée, quem o
conduziu a Freud. Em particular, a “poesia involuntária” de Aimée,
conforme o termo forjado pelos surrealistas e que dele obteve total
aquiescência."
A Psicose e seus enlaces
Vera Pollo
verapollo8@gmail.com
O Psicótico não é um eremita. A solidão não lhe apraz e Freud chegou mesmo a dizer que, até na confusão alucinatória mais aguda, o Eu não está todo no sintoma. Quanto a Lacan, todos sabem que ele incentivou desde cedo os analistas a se deixarem ensinar pelos psicóticos, declarando que foi Marguerite Anzieu, ou melhor, sua Aimée, quem o conduziu a Freud. Em particular, a “poesia involuntária” de Aimée, conforme o termo forjado pelos surrealistas e que dele obteve total aquiescência.
Ora,
se Freud debruçou-se sobre a paranoia e redigiu um texto até hoje
atual, no exato momento em que lhe chegaram às mãos as Memórias de
Daniel Paul Schreber [1], Lacan surpreendeu-se ao ver como o sintoma
paranoico de Marguerite revertia-se “em efeitos de criação [...] efeitos
literários.” [2]
Em
psicanálise, a noção de “enlace” - ato ou efeito de enlaçar ou de
enlaçar-se - tal como nos ensina o Aurélio [3], ganha relevo na teoria
lacaniana dos discursos e prolonga-se em seu ensino com os Nós. Estes
lhe possibilitaram contribuições inéditas, envolvendo conceitos tão
importantes como o de fala-a-ser [4], com que Lacan se referia ao inconsciente dispensando o prefixo negativo, e o de sinthoma,
que designa um enlace não exclusivo da psicose, mas capaz de garantir a
subjetivação do psicótico em um modo não delirante. [5]
Desde então, tornou-se possível dizer que uma psicanálise opera sobre o nó do fala-a-ser (le parlêtre) por meio de seus ditos e pela letra (par la lettre)
como lugar do dizer. Pois se a fala faz nascer a verdade em sua
dinâmica evanescente, o escrito a interroga, por ser da ordem da lógica e
alcançar o real.
A
prática psicanalítica verifica que, estruturado como uma linguagem, o
inconsciente é “o que se lê”. Freud concluiu bem cedo que as imagens do
sonho são um sistema de escrita e devem ser tomadas como letras. Já
Lacan afirmou ter aprendido com Joyce que existem dois tipos de escrita:
uma que resulta da precipitação dos significantes e outra que funciona
como uma abertura para o real. Diferentemente da primeira, a segunda não
serve para ordenar o pensamento, é vazia de sentido. Segundo Lacan
[6], “o ponto em que, em qualquer uso da língua, se dá a oportunidade de
que se produza o escrito” é justo a barra que separa o significante [o
que se ouve] do significado [o que se lê] corresponde.
Não
é preciso ir muito longe, para que se perceba que o recurso espontâneo à
escrita, enlace do sujeito ao Outro das letras, representa para muitos
psicóticos o anseio em produzir uma fixão de
gozo, circunscrevendo o jorro por vezes ininterrupto e enigmático dos
significantes. Desprovidos da amarra fálica, não fazem ponto de basta na
fala. Nem no corpo.
Como
salienta Lacan na lição final do “Seminário, livro 3” [7] devemos
prestar atenção ao momento em que a psicose de Schreber se declara. Em
mais de uma ocasião, ele estivera na situação de tornar-se pai, sem que
isso acontecesse. Mas, ao ver-se subitamente investido de uma função
socialmente relevante, ocupando uma posição hierarquicamente superior à
de homens com vinte anos a mais do que ele, nessa perturbação da ordem
das gerações, processa-se a “colisão” do sujeito com “o significante
inassimilável”, a partir do qual ser-lhe-á preciso reconstituir um pai. E
Schreber o fará. Como? Por intermédio da escrita do delírio.
O que acontece com o nó do fala-a-ser na psicose?
A rejeição do pai impostor, sua desqualificação, relembra Bousseyroux [8]
é “a condição subjetiva e histórica, na história do sujeito, da escolha
da psicose”. Outra coisa é a condição histórica do desencadeamento:
encontro no real com Um-pai como “sem razão”. No caso de Schreber, encontro com o professor Flechsig.
Aproximando-se
cada vez mais de Joyce, Lacan pôde não apenas delinear com rigor a
diferença entre o significante, o significado e a letra, como produzir a
condensação lalíngua e, com ela, igualar a interpretação analítica ao “tour de force
do poeta.” Ao analista, já não basta contrariar o sentido produzindo
equívocos, é preciso – ensina Joyce – fazê-lo fracassar. É preciso
esvaziar o duplo sentido do significante, para que se produza uma
significação nova.
Joyce foi justamente um homem do sonoro. Que se leia, por exemplo, a Introdução de Bernardina da Silveira para sua versão brasileira de Um retrato do artista quando jovem. Ao falar sobre Finnegans Wake, o próprio Joyce declara que o aspecto musical é fundamental em sua obra. À pergunta que lhe faz Terence Gervais
sobre o livro ser uma mistura de literatura e música, responde
categoricamente: “Não. É pura música.” Insatisfeito, o outro acrescenta:
“Mas, não há níveis de sentido a serem explorados?” “Não, não. Seu
objetivo é fazer você rir”, responde aquele que se auto intitulou “um
palhaço irlandês.”
Joyce
não era louco, ele o teria sido, se não tivesse corrigido “o erro do
nó”. Eis uma das propostas de Lacan. No início do “Seminário 23”,
estudando o nó borromeano, ele verifica que a nomeação não é suficiente
para que o Real, o Simbólico e o Imaginário se auto/individualizem.
Confundem-se. Cada aro do nó é na verdade um toro, portanto, um furo.
Para que se individualizem, é preciso que o sintoma, como simbólico ( Σ
), duplique o aro do Simbólico; ou que o sintoma, como real, duplique o
Real. Em um caso, como no outro, o sintoma corrige o erro do nó. Isso
significa que o erro em um ponto do nó não é suficiente para que não
haja mais nó. O nó borromeano é uma cadeia e pode deixar de sê-lo quando
há erro, mas pode voltar a sê-lo, e assim permanecer, se um sinthoma a
repara.
O erro do nó em Joyce deve-se ao fato do Real não passar duas vezes por cima do Simbólico, mas apenas uma.
Há, em Joyce, uma carência do pai, o que Lacan chama de Verwerfung de
fato. Por um lado, Joyce era sobrecarregado de pai e seus textos dão
testemunho disso, mas ele o era justamente em decorrência desta
carência. Que se atente, por exemplo, a algumas passagens-vozes de Um retrato.
Stephen se refere a uma voz mundana ordenando que erguesse “com seu
trabalho a condição degradada de seu pai e, nesse ínterim, a voz de seus
colegas de colégio instava para que ele fosse um camarada decente [...]
E era o alarido dessas vozes de ressonância-oca que o fazia se deter irresolutamente em busca de fantasmas” [9].
Um
pouco adiante, é o pai quem lhe diz: “Estou falando com você como
amigo, Stephen. Não acredito em desempenhar o papel do pai severo. Não
acredito que um filho deve temer seu pai. Não, eu o trato como seu avô
me tratava quando eu era mocinho. Éramos mais como irmãos do que como pai e filho”(Idem, p.102).
O
erro do nó lhe trazia como consequência a frouxidão do corpo e do
Imaginário, a qual foi corrigida pelo Ego de artista. Nos termos de
Lacan, esta frouxidão, “doença da mentalidade”, foi a razão pela qual
Joyce recusou a psicanálise.
Além
de sua Arte-Sinthoma, Joyce empregou mais um recurso de enodamento,
suas epifanias enodavam o inconsciente e o Real. Apoiando-se na doutrina
de São Tomás de Aquino, Joyce define suas epifanias como “o instante
no qual aquela qualidade suprema da beleza, a radiação límpida da imagem
estética, é apreendida luminosamente pelo espírito que foi atraído por
sua totalidade e fascinado por sua harmonia, é a estase silenciosa e
luminosa do prazer estético, um estado espiritual muito semelhante à
condição cardíaca que o fisiologista italiano Luigi Galvani, empregando
uma frase quase tão bela quanto a de Shelley, chamou de encantamento do
coração” (Idem, p.225)
Desde Stephen Hero, obra de juventude que corresponde à primeira versão de Um retrato do artista,
o herói declara sua disposição de lutar com todas as sua armas contra o
reino da evidência e do senso comum. Talvez por isso, Lacan [10] tenha
declarado não saber ao certo se Joyce escrevia para libertar-se do
parasita falador ou para deixar-se invadir por propriedades de ordem
essencialmente fonêmica da fala, sua polifonia.
O
fato é que sua arte é tão particular que faz as vezes de um quarto aro,
mantendo juntos o Real, o Simbólico, e o Imaginário: R.S.I. Heresie, heresia, pois Joyce teve uma educação religiosa, mas serviu-se logicamente do que recebeu como sintoma por meio dela.
Com
sua arte-sinthoma, produto de seu Ego de artista, Joyce construiu um
nome e compensou a carência paterna, ao mesmo tempo em que construiu um
laço que ultrapassa várias gerações, fazendo existir mundo afora uma
multidão de joycianos.
[1]
FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de
um caso de paranoia (Dementia paranoide). Obras Completas. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1911/1976, vol.XII.
[2] LACAN, Jacques. De nossos antecedentes. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1966/1998, p. 70.
[3] Buarque de Holanda, Aurélio. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira (s/d).
[4]
Coforme proposta de tradução de parlêtre proposta por Antonio Quinet
em seu Seminário intitulado “Poesia, letra e lalíngua”, em 07 de outubro
de 2015, na sede de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de
janeiro.
[5] BOUSSEYROUX, Michel. Lacan Borroméen. Creuser le noeud. Point Hors Ligne. Éditions érès, 2014.
[6]
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20 : mais, ainda. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2ª edição revista, 1972-73/1985, p. 48.
[7] LACAN, Jacques Le Séminaire, livre III: les psychoses. Paris : Ed. du Seuil, 1955-1956/1975.
[8] BOUSSEYROUX, Michel. Op Cit., p.167.
[9]
JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. Tradução: Bernardina
da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 94.
[10] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1975-1976/2007, p.93)
Fonte: STYLETE LACANIANO
Nenhum comentário:
Postar um comentário