PICICA: "O ano de 1926 estava prestes a
começar e, com ele, os efeitos da Grande Guerra se acentuavam. Como todo
trauma, as repercussões ainda ecoavam – e ecoariam – por muitos anos. O
filósofo alemão Walter Benjamin ainda viria a escrever “O narrador”,
texto de 1936, no qual constatará o fim da experiência compartilhada,
uma forma muito própria de descrever os efeitos do individualismo. É
sobre essa passagem da vida comunitária para a vida individual que trata
a última temporada de Downton Abbey, em cartaz no GNT."
O ano de 1926 estava prestes a
começar e, com ele, os efeitos da Grande Guerra se acentuavam. Como todo
trauma, as repercussões ainda ecoavam – e ecoariam – por muitos anos. O
filósofo alemão Walter Benjamin ainda viria a escrever “O narrador”,
texto de 1936, no qual constatará o fim da experiência compartilhada,
uma forma muito própria de descrever os efeitos do individualismo. É
sobre essa passagem da vida comunitária para a vida individual que trata
a última temporada de Downton Abbey, em cartaz no GNT.
Para esse novo começo, vão saindo de cena os antigos comandantes. A primeira a se ressentir da perda do seu lugar de poder é a velha condessa, magistralmente interpretada por Maggie Smith, cuja participação é marcada por uma maravilhosa coleção de frases irônicas em relação aos novos tempos, como “pensar duas vezes sobre o mesmo assunto está super-valorizado atualmente”. Ela perde a autoridade sem perder protagonismo na série, apenas aceitando, não sem alguma resistência, que os tempos são outros.
Mulheres assumem, de forma muito sutil, posições feministas, e a emancipação vai chegando, como ainda hoje, de forma mais fácil para a elite, de forma mais penosa para as classes mais baixas. Nesse quesito, é exemplar a conquista da liberdade de Lady Mary, aquela que seria a nova viúva no poder. Seu vestuário, desde o início muito luxuoso, vai se traduzindo em outras formas de elegância. Os cabelos são mais curtos e as gravatas entram no figurino como símbolo de igualdade, fazendo pensar que o estereótipo da feminista feia, bruta e sem charme só pode ter sido mesmo inventado pelo machismo.
A rigor, todos os desfechos das trajetórias de vida – seja dos nobres, seja dos empregados – indicam o primado do indivíduo sobre a comunidade. O fim desse mundo compartilhado que Abbey narra tão bem é hoje um tema importante na filosofia política. Autores como Judith Butler, Jacques Rancière e Antonio Negri, entre outros tantos, estão pensando sobre o fim da noção de indivíduo – esta que aparece na temporada final de Abbey como sinal de autonomia e liberdade –, não para um retorno nostálgico de uma forma comunitária que também era autoritária, mas a fim de recuperar algo de bom da dimensão do comum.
Trata-se de um debate que opõe os liberais, para os quais a vida é individual, e para mantê-la devem ser feitos todos os esforços em prol daquele indivíduo, aos chamados comunitaristas, para quem a vida é coletiva, inseparável das relações sociais, afetivas e familiares envolvidas. Na Inglaterra do início do século passado, retratada em Abbey, a vida era prioritariamente coletiva, marcada pelas exigências do que significava estar em comunidade. Ainda que esta comunidade pudesse oferecer algum tipo de proteção – a mesma que foi posta abaixo no final dos anos 1960, quando implodiriam as hierarquias e instituições por elas sustentadas –, cobrava um preço alto por isso.
No entanto, os 90 anos que nos separam da cena final de Downton Abbey também mostraram os limites e alto preço de fundamentar a existência apenas em roteiros individuais. De certa forma, a recuperação do comum só tem algum sentido por não ser uma visão nostálgica dos tempos passados, mas estar carregada de um ideal de comunidade na qual se possa compartilhar a condição precária de todo vivente. Ao invés da busca por proteção, o caminho é necessariamente comum, errante e alegre, como num bom bloco de carnaval.
Imagem de divulgação da sexta temporada de Downton Abbey
A série conta a história de uma família aristocrática britânica cuja vida social é coletiva. Cabe aos aristocratas uma responsabilidade sobre o condado onde estão suas terras. Cabe a todos os outros viverem sob a responsabilidade da família do conde Graham e, naturalmente, sob seu comando. Ao longo das temporadas, essa vida comunitária vai sendo abalada, primeiro pela guerra, e em seguida, como consequência inesperada, pelas aspirações pessoais de cada personagem. O fim da série é também o início de uma nova era, como se o século XX estivesse se iniciando ali, naquela festa de ano novo do último episódio.Para esse novo começo, vão saindo de cena os antigos comandantes. A primeira a se ressentir da perda do seu lugar de poder é a velha condessa, magistralmente interpretada por Maggie Smith, cuja participação é marcada por uma maravilhosa coleção de frases irônicas em relação aos novos tempos, como “pensar duas vezes sobre o mesmo assunto está super-valorizado atualmente”. Ela perde a autoridade sem perder protagonismo na série, apenas aceitando, não sem alguma resistência, que os tempos são outros.
Mulheres assumem, de forma muito sutil, posições feministas, e a emancipação vai chegando, como ainda hoje, de forma mais fácil para a elite, de forma mais penosa para as classes mais baixas. Nesse quesito, é exemplar a conquista da liberdade de Lady Mary, aquela que seria a nova viúva no poder. Seu vestuário, desde o início muito luxuoso, vai se traduzindo em outras formas de elegância. Os cabelos são mais curtos e as gravatas entram no figurino como símbolo de igualdade, fazendo pensar que o estereótipo da feminista feia, bruta e sem charme só pode ter sido mesmo inventado pelo machismo.
A rigor, todos os desfechos das trajetórias de vida – seja dos nobres, seja dos empregados – indicam o primado do indivíduo sobre a comunidade. O fim desse mundo compartilhado que Abbey narra tão bem é hoje um tema importante na filosofia política. Autores como Judith Butler, Jacques Rancière e Antonio Negri, entre outros tantos, estão pensando sobre o fim da noção de indivíduo – esta que aparece na temporada final de Abbey como sinal de autonomia e liberdade –, não para um retorno nostálgico de uma forma comunitária que também era autoritária, mas a fim de recuperar algo de bom da dimensão do comum.
Trata-se de um debate que opõe os liberais, para os quais a vida é individual, e para mantê-la devem ser feitos todos os esforços em prol daquele indivíduo, aos chamados comunitaristas, para quem a vida é coletiva, inseparável das relações sociais, afetivas e familiares envolvidas. Na Inglaterra do início do século passado, retratada em Abbey, a vida era prioritariamente coletiva, marcada pelas exigências do que significava estar em comunidade. Ainda que esta comunidade pudesse oferecer algum tipo de proteção – a mesma que foi posta abaixo no final dos anos 1960, quando implodiriam as hierarquias e instituições por elas sustentadas –, cobrava um preço alto por isso.
No entanto, os 90 anos que nos separam da cena final de Downton Abbey também mostraram os limites e alto preço de fundamentar a existência apenas em roteiros individuais. De certa forma, a recuperação do comum só tem algum sentido por não ser uma visão nostálgica dos tempos passados, mas estar carregada de um ideal de comunidade na qual se possa compartilhar a condição precária de todo vivente. Ao invés da busca por proteção, o caminho é necessariamente comum, errante e alegre, como num bom bloco de carnaval.
Carla Rodrigues
Carla Rodrigues é professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ. Fez especialização, mestrado e doutorado em Filosofia na PUC-Rio e pós-doutorado no IEL/Unicamp. É coordenadora do laboratório de pesquisa Escritas - filosofia, gênero e psicanálise.
Fonte: BLOG DO IMS
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