PICICA: "Sua trajetória é instrutiva. Com poucos recursos e muito empenho, o
filme começou a ser realizado em 2010 e ficou pronto em 2013. Lançado no
acanalhado circuito exibidor brasileiro em 2014, não chegou então a 4
mil espectadores. No exterior, porém, seguiu conquistando corações e
mentes – e prêmios. Aclamado pela crítica, ganhou os dois prêmios
principais (júri e público) no maior festival de animação do mundo, o de
Annecy, e desde então foi visto por 100 mil espectadores na França e
vendido para mais de oitenta países. Há poucos dias venceu também nos
EUA o Annie (o “Oscar da animação”) na categoria melhor longa
independente."
Os muitos prodígios de O menino e o mundo
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 12.02.2016
Torcer para um filme, ator ou
diretor ganhar o Oscar é algo um tanto pueril. Torcer por razões
nacionalistas ou patrióticas, então, beira a estupidez. Quando um filme
do clã Barreto foi indicado na categoria produção estrangeira, lembro-me
de ter visto seu diretor na televisão dizendo: “Vamos buscar esse
caneco”, como se fosse um futebolista partindo para a Copa do Mundo.
Cinema não é isso – ou melhor, é também isso, mas esta é a parte que
menos me interessa nele.
Contudo, há um aspecto do Oscar que pode ser positivo: chamar a atenção para filmes bons que, sem esses holofotes, talvez passassem despercebidos. É o caso flagrante e escandaloso de O menino e o mundo, de Alê Abreu, indicado a melhor longa de animação.
Sua trajetória é instrutiva. Com poucos recursos e muito empenho, o filme começou a ser realizado em 2010 e ficou pronto em 2013. Lançado no acanalhado circuito exibidor brasileiro em 2014, não chegou então a 4 mil espectadores. No exterior, porém, seguiu conquistando corações e mentes – e prêmios. Aclamado pela crítica, ganhou os dois prêmios principais (júri e público) no maior festival de animação do mundo, o de Annecy, e desde então foi visto por 100 mil espectadores na França e vendido para mais de oitenta países. Há poucos dias venceu também nos EUA o Annie (o “Oscar da animação”) na categoria melhor longa independente.
Estudo de caso
Mas foi sem dúvida a indicação ao Oscar que suscitou um renascimento do filme no mercado brasileiro e na mídia. Relançado timidamente nos cinemas, já foi visto por 40 mil pessoas a acaba de chegar ao canal pago HBO, onde certamente multiplicará seu público.
Merece um estudo de caso que lance luz não apenas ao estrangulamento do circuito exibidor, mas também à passividade do público e às discutíveis prioridades de nosso jornalismo cultural. Mea culpa também (já que toda crítica deve conter alguma medida de autocrítica): não escrevi sobre o filme aqui quando foi lançado. Não me lembro quais foram os assuntos que ocuparam então este espaço, mas dificilmente seriam mais importantes, do ponto de vista da arte do cinema, que O menino e o mundo.
Com um atraso de séculos, vamos então ao filme.
O menino e o mundo é um prodígio, em primeiro lugar, por ter conquistado um lugar ao sol da animação passando ao largo da tecnologia digital de ponta que tem caracterizado a produção mais visível do gênero.
Menos do que as injunções econômicas que possam ter influído na opção por técnicas artesanais de criação e expressão, cabe destacar que tais técnicas servem perfeitamente ao espírito do filme. Ao usar lápis de cor, giz de cera, colagem e aquarela para contar a história de uma criança que sai em busca do pai e descobre o planeta, O menino e o mundo de certo modo assume em sua própria forma o universo do personagem, deixando-se fecundar por seu imaginário criativo. É como se o menino criasse sua própria narrativa, em primeira pessoa, com os meios à sua disposição.
Descoberta e invenção
Dá a impressão de um filme que se descobre e se inventa a cada passo, conduzido pelo olhar ora fascinado, ora assustado do menino diante das contradições do mundo. Estas estão todas presentes: a destruição da natureza, a exploração dos trabalhadores, a automação das relações humanas, a deterioração das cidades.
As formas, os traços, as cores não estão ali meramente para ilustrar uma história que poderia ser contada de outra maneira: eles criam a história, são sua substância. Um exemplo singelo é o das notas musicais que saem flutuando dos instrumentos como flocos coloridos, cada um com uma cor correspondente ao seu som – com exceção dos da banda militar, que são todos pretos.
O uso das colagens para compor máquinas e paisagens urbanas, a alternância entre as formas geométricas do trabalho organizado e os arabescos multicoloridos da festa e do afeto, a orquestração minuciosa dos ruídos, das vozes e da música, tudo se dá com um equilíbrio delicado entre rigor e liberdade, entre precisão e frescor.
Para além da história que se conta, há uma espécie de alegria intrínseca da forma, uma declaração de amor à própria arte, uma celebração do “desenho animado” no sentido literal da expressão.
O menino e o mundo não é um milagre surgido do nada. É resultado de um longo processo de trabalho e aprendizado da animação brasileira, em particular de Alê Abreu, que está na batalha há duas décadas (seu primeiro curta, Espantalho, é de 1998). Tomara que seus belos frutos se tornem novas sementes.
Pensando bem, acho que vou torcer por O menino e o mundo no Oscar. Não pelo Brasil, mas pelos meninos – e pelo mundo.
* O filme está em cartaz no cinema do IMS. Clique aqui para ver o horário das sessões.
Contudo, há um aspecto do Oscar que pode ser positivo: chamar a atenção para filmes bons que, sem esses holofotes, talvez passassem despercebidos. É o caso flagrante e escandaloso de O menino e o mundo, de Alê Abreu, indicado a melhor longa de animação.
Sua trajetória é instrutiva. Com poucos recursos e muito empenho, o filme começou a ser realizado em 2010 e ficou pronto em 2013. Lançado no acanalhado circuito exibidor brasileiro em 2014, não chegou então a 4 mil espectadores. No exterior, porém, seguiu conquistando corações e mentes – e prêmios. Aclamado pela crítica, ganhou os dois prêmios principais (júri e público) no maior festival de animação do mundo, o de Annecy, e desde então foi visto por 100 mil espectadores na França e vendido para mais de oitenta países. Há poucos dias venceu também nos EUA o Annie (o “Oscar da animação”) na categoria melhor longa independente.
Estudo de caso
Mas foi sem dúvida a indicação ao Oscar que suscitou um renascimento do filme no mercado brasileiro e na mídia. Relançado timidamente nos cinemas, já foi visto por 40 mil pessoas a acaba de chegar ao canal pago HBO, onde certamente multiplicará seu público.
Merece um estudo de caso que lance luz não apenas ao estrangulamento do circuito exibidor, mas também à passividade do público e às discutíveis prioridades de nosso jornalismo cultural. Mea culpa também (já que toda crítica deve conter alguma medida de autocrítica): não escrevi sobre o filme aqui quando foi lançado. Não me lembro quais foram os assuntos que ocuparam então este espaço, mas dificilmente seriam mais importantes, do ponto de vista da arte do cinema, que O menino e o mundo.
Com um atraso de séculos, vamos então ao filme.
O menino e o mundo é um prodígio, em primeiro lugar, por ter conquistado um lugar ao sol da animação passando ao largo da tecnologia digital de ponta que tem caracterizado a produção mais visível do gênero.
Menos do que as injunções econômicas que possam ter influído na opção por técnicas artesanais de criação e expressão, cabe destacar que tais técnicas servem perfeitamente ao espírito do filme. Ao usar lápis de cor, giz de cera, colagem e aquarela para contar a história de uma criança que sai em busca do pai e descobre o planeta, O menino e o mundo de certo modo assume em sua própria forma o universo do personagem, deixando-se fecundar por seu imaginário criativo. É como se o menino criasse sua própria narrativa, em primeira pessoa, com os meios à sua disposição.
Descoberta e invenção
Dá a impressão de um filme que se descobre e se inventa a cada passo, conduzido pelo olhar ora fascinado, ora assustado do menino diante das contradições do mundo. Estas estão todas presentes: a destruição da natureza, a exploração dos trabalhadores, a automação das relações humanas, a deterioração das cidades.
As formas, os traços, as cores não estão ali meramente para ilustrar uma história que poderia ser contada de outra maneira: eles criam a história, são sua substância. Um exemplo singelo é o das notas musicais que saem flutuando dos instrumentos como flocos coloridos, cada um com uma cor correspondente ao seu som – com exceção dos da banda militar, que são todos pretos.
O uso das colagens para compor máquinas e paisagens urbanas, a alternância entre as formas geométricas do trabalho organizado e os arabescos multicoloridos da festa e do afeto, a orquestração minuciosa dos ruídos, das vozes e da música, tudo se dá com um equilíbrio delicado entre rigor e liberdade, entre precisão e frescor.
Para além da história que se conta, há uma espécie de alegria intrínseca da forma, uma declaração de amor à própria arte, uma celebração do “desenho animado” no sentido literal da expressão.
O menino e o mundo não é um milagre surgido do nada. É resultado de um longo processo de trabalho e aprendizado da animação brasileira, em particular de Alê Abreu, que está na batalha há duas décadas (seu primeiro curta, Espantalho, é de 1998). Tomara que seus belos frutos se tornem novas sementes.
Pensando bem, acho que vou torcer por O menino e o mundo no Oscar. Não pelo Brasil, mas pelos meninos – e pelo mundo.
* O filme está em cartaz no cinema do IMS. Clique aqui para ver o horário das sessões.
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: BLOG DO IMS
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