fevereiro 24, 2016

Niilismo Passivo: Nada de Vontade. POR Rafael Trindade (RAZÃO INADEQUADA)

PICICA: "O último homem não quer valores nem divinos nem humanos, estamos para além do cristianismo, passamos pelo budismo e chegamos no fim: nenhum deus e um só rebanho. Até mesmo o mar secou! As duas formas anteriores ainda tinham em que se segurar, ainda tinham uma vontade de nada, mas o niilista passivo passa para o nada de vontade. É aquele que prefere extinguir-se passivamente. São mortos-vivos: “É preferível um nada de vontade do que uma vontade de nada!“, diz aquele que quer morrer. Nossos tempos expressam bem a depressão da qual Nietzsche falava, os valores ascéticos que nascem desta vontade que descende. Um mundo incapaz de erigir novos valores, que vira a vida contra si mesma, sem forças o bastante para levantar-se do chão" 


Eu vi descer sobre os homens uma grande tristeza. Os melhores entre ele se cansaram de suas obras. Uma doutrina surgiu, acompanhada de uma fé: ‘Tudo é vazio, tudo é igual, tudo foi!'” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, O adivinho
O niilismo atinge seu penúltimo estágio quando o relógio soa meia-noite. A hora onde a luz mais falta, a hora em que o niilismo encontra o fundo do poço em que mergulhou. As forças estão se desagregando, quase não há mais vontade, quase não há mais forças, a vida mesma está despedaçada e se decompondo em cada passo rumo ao salto final. O niilismo avança cada vez mais, estende seus tentáculos por todos os campos da vida humana. É um ponto onde não tem mais volta, a doença já se espalhou por todas as partes do corpo. O último dos homens está cansado até mesmo para suicidar-se, ele espera passivamente que o mundo leve sua alma, sua vida, sua dor.

O niilista passivo é a terceira das 4 formas de niilismo. Ele segue como um coveiro em um cemitério abandonado, cuida de um museu que ninguém mais visita e a poeira assenta sobre as obras esquecidas. “Todo o trabalho foi em vão“, lamenta-se o último dos homens, “tudo é vão, tudo é por nada“. Não há deuses, não há valores, não há destino, não há caminho seguro. O niilista passivo, nega por negar, já não há mais força. A religião não salva, a ciência não encontra respostas, o homem é mau. Moribundos, agonizantes, os últimos homens se arrastam sem rumo. O esforço para tomar o lugar de deus foi inútil, tudo é frágil, nada vale…
‘Ah, onde há ainda um mar onde possamos nos afogar?: eis como soa o nosso lamento – por sobre pântanos rasos. Em verdade ficamos cansados demais para morrer, ainda estamos acordados e prosseguimos vivendo – em sepulcros!” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, O adivinho

Werner Knaupp
– por Werner Knaupp

Não há forças nem mesmo para por fim ao próprio sofrimento. Somos carcaças apodrecendo em vida. As forças que formavam o homem, o caos que o habitava, se foram. O homem quer morrer, mas não tem forças nem mesmo para tal tarefa. Ele segue olhando para trás, dizendo “foi assim”, sem conseguir olhar para o que vem à frente. Este aceitar tudo, do jeito que é, de qualquer jeito; é a falsa afirmação, que está muito longe do Sim do amor-fati. A resignação é um parente falso da afirmação.

O último homem não quer valores nem divinos nem humanos, estamos para além do cristianismo, passamos pelo budismo e chegamos no fim: nenhum deus e um só rebanho. Até mesmo o mar secou! As duas formas anteriores ainda tinham em que se segurar, ainda tinham uma vontade de nada, mas o niilista passivo passa para o nada de vontade. É aquele que prefere extinguir-se passivamente. São mortos-vivos: “É preferível um nada de vontade do que uma vontade de nada!“, diz aquele que quer morrer. Nossos tempos expressam bem a depressão da qual Nietzsche falava, os valores ascéticos que nascem desta vontade que descende. Um mundo incapaz de erigir novos valores, que vira a vida contra si mesma, sem forças o bastante para levantar-se do chão.
Em todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada… Sempre, em toda parte, ouviu-se de sua boca o mesmo tom — um tom cheio de dúvida, de melancolia, de cansaço da vida, de resistência à vida” – Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, O problema de Sócrates, §1
Estamos em estado terminal. Aos poucos, a vontade de potência se esgota no niilismo, ela vaza, escoa, procura afirmar-se em outros lugares. O homem cada vez mais doente tem cada vez menos capacidade de afirmar-se. A chama se apaga, surge a escuridão sem fim. Mortos-vivos não encontram vida dentro de si (mesmo ela estando lá), mas ainda se movem.
E continuamos. É tempo de muletas. Tempos de mortos faladores e velhas paralíticas” – Carlos Drummond de Andrade, Nosso Tempo
Dor torturante do vazio, homens metafísicos se castigam até evanescerem. Vontade de Nada é a vontade e ser outro. O Nada de vontade é a vontade que já se desfez, encontrou novos caminhos, abandonou o corpo doente. O niilismo atravessa de ponta a ponta a existência até escapar de volta para ela. Nietzsche ensina, através do eterno retorno, a atravessar o niilismo de ponta a ponta, levá-lo até suas últimas consequências.

Um niilista completo pode voltar a ser um niilista reativo ou negativo, pode encontrar uma igreja, um ídolo, um “sentido”, ou pode atravessar todas as etapas do niilismo e sair do outro lado, fazer a volta completa, e aprender a transvalorar valores. Este é o caminho que Nietzsche propõe em sua última forma de niilismo, quando ele é vencido por si mesmo. Atravessar a noite, desafiar o niilismo, desfazer-se das forças do negativo: encontrar o grande meio dia, o instante onde a sombra é mais curta.

> Texto da série: 4 Formas de Niilismo <

Ilustração por Kai Ti Hsu
– Ilustração por Kai Ti Hs


Fonte: RAZÃO INADEQUADA

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