fevereiro 28, 2016

Umberto Eco, o professor que sabia tudo. Por Pepe Escobar (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Como semiólogo, ele zombou das redes sociais, dizendo que permitiram a invasão dos imbecis. Como romancista, notou que os velhos jornais “não são feitos para revelar, mas para encobrir notícias”"

Umberto Eco, o professor que sabia tudo


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Como semiólogo, ele zombou das redes sociais, dizendo que permitiram a invasão dos imbecis. Como romancista, notou que os velhos jornais “não são feitos para revelar, mas para encobrir notícias”

Por Pepe Escobar


Era uma vez na Renascença Italiana, intelectuais sérios erguiam os olhos para o polímata Pico della Mirandola, como “o último homem que sabe tudo”. Em nossa terra pós-moderna devastada, Il Professore (“o professor”) Umberto Eco (1932-2016) foi, pode-se dizer, o último homem pós-renascença que sabia tudo.

Filósofo, semiologista, professor de erudição épica, especialista em estética medieval, autor de ficção e não ficção, Eco oscilou gozosamente entre os papeis de “Apocalípticos e Integrados” – título de um de seus livros seminais (1964). O toque que é sua marca registrada é uma síntese deliciosamente erudita de trágico otimismo – como se fosse, ele, o sonhador erudito supremo.

Não só escreveu vários ensaios impagáveis de estética, linguística e filosofia e criticou em profundidade a midiaesfera global; foi também autor de ficção best-seller, de O Nome da Rosa (1980) – 14 milhões de exemplares vendidos – ao Pêndulo de Foucault (1988).

Antes de se tornar Il Professore, com status de ícone universal, Eco mergulhou fundo em Santo Tomás de Aquino, deixou de crer em Deus e separou-se da Igreja Católica (“Milagrosamente, Tomás de Aquino curou-me de minha fé.”) A tese de filosofia que apresentou em 1954 à Universidade de Turin – orientado por um mestre, Luigi Pareyson – estudava a estética de Santo Tomás.

Tiradas do caminho a culpa e as crucifixões – Eco estava pronto para se embrenhar pela avant garde. Opera Aperta (Obra Aberta) apareceu em 1962 – uma análise estruturalista da literatura baseada em James Joyce e que virou febre nas universidades de Paris a Berkeley nos anos 1960s e 1970s. O xis da questão era definir a arte. Eco propunha que a obra de arte traz uma mensagem ambígua, aberta a infinitas interpretações, porque muitos significados coabitam num único significante. Assim, um texto não é objeto acabado, mas “aberto”, que o leitor não pode apenas aceitar passivamente. O leitor tem de trabalhar também, para reinventar e interpretar o que leia.

Em 1971, Eco já ensinava ciências semióticas na faculdade de Letras e Filosofia de Bologna. Viu essa ciência experimental – lançada por Roland Barthes – como mais que um método; ela levou-o a experimentar além de todas as intersecções, entre culturas erudita e pop.

Bebendo freneticamente da cultura pop, Il Professore teria de acabar na TV, que se pôs a dissecar com milhão de bisturis; disso veio um coquetel tóxico de kitsch, futebol, cultura das celebridades, publicidade, moda – e terrorismo. O embrião desse frenesi crítico já estava ativado em Apocalípticos e Integrados.

A atitude apocalíptica da mídia-empresa reflete uma visão elitista e nostálgica de cultura; a atitude integrada privilegia o livre acesso aos produtos culturais, sem se preocupar com o modo como são produzidos. E foi o que levou Eco a propôr uma visão crítica de todos os meios da mídia-empresa, a qual, infelizmente, poucos tiveram coragem de aplicar.

Leia, e você viverá 5 mil anos

Eco foi leitor ávido, pelo menos dois jornais todas as manhãs. Adorava jactar-se de que vivia fiel à ideia de Hegel, de que ler jornais era “a oração diária do homem moderno”. E também escreveu para jornais – colunas e ensaios.

Como autor de ficção, foi totalmente pós-moderno. O pós-modernismo – infindavelmente discutido nos anos 1980s a-go-go – tentou estabelecer um pensamento crítico e irônico acima de toda a tradição de intertextualidade. Mas Eco sempre fez questão de destacar o quanto a própria noção de pós-modernismo era, ela mesma, confusa; na arquitetura, o pós-moderno não seguiu Le Corbusier; na literatura, não seguiu o nouveau roman, poderia até converter-se na escola crítica norte-americana aplicada à arte de narrar, baseada em Borges e Garcia Marquez.

Eco entendia que, se o pós-modernismo na literatura visasse a uma reflexão irônica sobre a pluralidade dos modos de narrar, a coisa toda teria de ter começado com Tristram Shandy, de Sterne, Cervantes e talvez Rabelais. Mas se James Joyce em Retrato do Artista quando Jovem é “moderno”, em Ulisses e Finnegans Wake/Finicius Revem é definitivamente pós-moderno.

Mais cedo ou mais tarde, Il Professore teria de se ver frente à frente com o Sábio Total, Borges. Chegou à conclusão de que Borges deu significado a uma tradição ainda mais ancestral; a outra face da avant-garde, com, de um lado as rupturas dos futuristas e Dada, pinturas monocromas e abstratas; e, do outro lado, o surrealismo.

O Nome da Rosa é o romance pós-moderno consumado. Eco provoca o leitor a cada página, propondo charadas sem parar, uma alusão, um pastiche ou mera citação, tudo semeado ao longo de uma trama antiga investigada por um monge franciscano, avatar de Sherlock Holmes. O livro pode ser lido de, pelo menos, três modos paralelos: pode-se seguir a intriga; pode-se seguir o debate de ideias; ou se pode seguir as dimensões alegóricas tecidas num jogo múltiplo de citações sobre citações, “livro feito de livros”. E é onde temos Eco, leitor consumado de Borges.

Seu livro mais recente, Número Zero (2015) também é tumulto. Passa-se em 1992 em torno de uma sala de redação imaginária – e dispara dardos por toda a sumarenta história política, jornalística, judicial e conspiracional da Itália moderna – do escândalo Tangentopoli ao Gladio da OTAN; dos escândalos da Loja Maçônica P2 ao terrorismo das Brigadas Vermelhas. Ninguém jamais escreveu um thriller sobre jornalismo vagabundérrimo; é tarefa que teria mesmo de caber a Il Professore. Seu Rosebud: “A questão é que jornais não são feitos para revelar, mas para encobrir as notícias.”

Faz sentido também que, no fim, Eco tenha-se recusado a publicar pelo colosso midiático italiano Mondadori-Rcs. Daí que iniciou uma nova aventura, a editora Nave de Teseo (Barco de Teseu). Il Professore observou que “Teseu é pretexto, um nome como qualquer outro. Teseu não importa. O que importa é o barco.” Mais uma pegadinha semiológica.

Leitor empenhado até o fim, Eco disse certa vez que “quem não lê, aos 70 anos terá vivido uma vida só. Os que leem terão vivido 5 mil anos. Ler é a imortalidade em retrospecto.”

Assim, faz sentido que haja um Eco póstumo – Pape Satan Aleppe –, que será lançado na Itália, dentro de poucos dias. O volume reúne as colunas que Eco publicou na revista L’Espresso interligados pelo tema da sociedade líquida e seus sintomas; como ele mesmo anunciou, “a crise da ideologia, da memória, das comunidades às quais se pertence, a obsessão com a autopromoção.” E o que significa o título? Eco explicou, risonho, que é “citação evidentemente dantesca que nada significa e, assim, é suficientemente ‘líquida’ para caracterizar a confusão de nossos tempos.”

What’s in a Name? O que há num nome?*

Depois de, recentemente, receber uma laurea honoris causa em Comunicação e Cultura das Mídias em Turin, Eco provocou uma tempestade midiática, ao ridicularizar as redes sociais.

Disse que elas “deram direito de expressão a legiões de imbecis que, antes, só falavam no bar depois de um copo de vinho, sem perturbar o ambiente social. Agora, têm o mesmo direito de expressão que um Prêmio Nobel. Os imbecis invadiram tudo.”

Estava, claro, certíssimo. Qualquer um submetido aos absurdos da internet reconhece agora o quanto e como “a TV promoveu o idiota da vila, em relação ao qual o espectador sente-se superior. O drama da internet é que promoveu aquele idiota da vila ao status de enunciador da verdade.”

Acrescente isso à “confusão dos nossos tempos” que só se tornarão ainda mais confusos agora que perdemos o Grande Alquimista – homem do riso, agitador, mistura de pensador multiplural, doido pelo texto e leitor perenemente apaixonado. E daí, que nunca lhe tenham dado um prêmio Nobel? Borges também foi ignorado.

A última frase de O Nome da Rosa é “stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus“. “A rosa que houve agora existe só em nome, só temos nomes nus.” É variação de um verso de De Contemptu Mundi, de Bernard de Cluny, monge beneditino do século 12. Agora, nomes nus ecoam ecos uns dos outros, sob a sombra benigna do Eco dos ecos.


* É verso de Shakespeare, em Romeu e Julieta, ato 2, cena 2





Pepe Escobar


Jornalista brasileiro, correspondente internacional desde 1985, morou em Paris, Los Angeles, Milão, Singapura, Bangkok e Hong Kong. Escreve sobre Asia central e Oriente Médio para as revistas Asia Times Online, Al Jazeera, The Nation e The Huffington Post.

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