PICICA: "“Um
poder judiciário forte deve estar preparado para tomar decisões
consideradas impopulares, que não agradem os reclamos moralistas e
punitivistas da sociedade”, ressalta o jurista e professor."
Poder Judiciário viola a Constituição e expõe sua face justiceira aos holofotes da mídia. Entrevista especial com José Carlos Moreira da Silva Filho
“Um
poder judiciário forte deve estar preparado para tomar decisões
consideradas impopulares, que não agradem os reclamos moralistas e
punitivistas da sociedade”, ressalta o jurista e professor.
Imagem: Vermelho.org |
“Passar um dia sequer preso, tendo a sua liberdade restringida e, no caso específico do sistema carcerário brasileiro,
outros direitos básicos além da liberdade, tendo em vista a completa
falência das instituições carcerárias, é algo tão grave que suscitou do
Poder Constituinte uma questão de princípio, exposta de modo literal no
texto constitucional, e declarada cláusula pétrea, a garantia do Habeas Corpus e a presunção da inocência”, alerta o pesquisador em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Para o professor, a medida revela uma relação perversa entre o sistema judiciário e o midiático,
onde a isenção pode sair comprometida. “Estamos assistindo a uma
guinada do sistema de justiça brasileiro de julgador para condenador, de
equidistante e imparcial, para um Poder que se articula com a mídia e
com espectros políticos bem definidos e parciais. Assistimos a uma
promiscuidade talvez nunca antes presenciada no país entre a ação da
imprensa brasileira, que vem se pautando por muitos factoides que ela
mesma fabrica, e o sistema de justiça no país, incluindo aí o Ministério Púbico”, frisa.
Em se aplicando essa interpretação para outros processos, o horizonte que se vislumbra continua desfavorável para os “alvos” preferenciais do sistema judiciário no país, favorecendo a manutenção e aprofundamento das desigualdades
ao atingir “aqueles que desde sempre são selecionados pelo sistema
punitivo, sejam aqueles que serão encarcerados antes do tempo, sejam os
demais que já se encontram encarcerados em difícil situação de
integridade das suas necessidades fundamentais, que já disputam pouco
espaço e estruturas que passarão a ser ainda mais ‘concorridas’”,
explica o professor.
O pesquisador ainda constata que “tal
decisão favorece o ativismo judicial, desfavorece a integridade
constitucional e fomenta esse novo/velho perfil moralizante, midiático e
justiceiro que o Poder Judiciário vem assumindo”.
Trata-se de um aspecto importante para analisar a fundo a atuação desse
sistema e a manutenção da democracia no país.
José Carlos Moreira da Silva Filho
é graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB, tem mestrado
em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina - UFSC e doutorado em Direito das Relações Sociais pela
Universidade Federal do Paraná - UFPR. Atualmente é Vice-Presidente da
Comissão de Anistia, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -
PUCRS e Bolsista Produtividade em Pesquisa Nível 2 do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
Confira a entrevista.
Foto: Leslie Chaves / IHU |
José Carlos Moreira da Silva Filho - Tratando especificamente da medida adotada neste caso concreto, o do Habeas Corpus - HC nº 126.292,
que poderá impactar diretamente casos futuros a serem julgados pela
Corte e pelas instâncias inferiores, inicio mencionando que as
estatísticas de acolhimento pelos tribunais superiores dos recursos interpostos após condenação criminal em segunda instância apontam para o índice aproximado de 25% [1].
Isto quer dizer que cerca de 25% das
pessoas que são condenadas em segunda instância conseguem reverter este
resultado quando interpõem recursos junto aos Tribunais Superiores
(Superior Tribunal de Justiça - STJ e Supremo Tribunal Federal - STF). Caso se mantenha para casos futuros o entendimento adotado pelo STF
na fatídica tarde do dia 17 de fevereiro de 2016, o que teremos será a
submissão dessas pessoas (repito, 25% do universo de pessoas condenadas
em segunda instância) a uma provação indevida e contrária ao Direito.
Passar um dia sequer preso, tendo a sua liberdade restringida e, no caso específico do sistema carcerário brasileiro,
outros direitos básicos além da liberdade, tendo em vista a completa
falência das instituições carcerárias, é algo tão grave que suscitou do
Poder Constituinte uma questão de princípio, exposta de modo literal no
texto constitucional, e declarada cláusula pétrea, a garantia do Habeas Corpus e a presunção da inocência.
Alguém poderá arguir que na prática os Tribunais de Justiça
já determinam a prisão dos réus mesmo sem o trânsito em julgado, ou
seja, mesmo na continuidade do exercício do direito de defesa com a
interposição de recursos. Mas há também - o que a decisão tomada pelo STF em 2009 no HC 84.078 exemplifica (decisão que vinha sendo a tônica constante na jurisprudência do STF,
agora contrariada pela decisão de 17 de fevereiro de 2016) - a
possibilidade de que por via de Habeas Corpus quem foi colocado na
prisão após condenação em segundo grau, mas ainda exerce o seu direito
de defesa junto aos tribunais superiores, seja posto em liberdade até
que o seu recurso seja decidido, o que se ocorrer favoravelmente (com
25% de chances de o ser) o coloca em liberdade permanentemente.
Um dos argumentos ventilados pelo Ministro Teori Zavascki,
relator do HC 126.292, é o de que após a segunda instância não cabem
mais análises de provas e da materialidade do fato, cabendo apenas a
discussão de questões de direito. Ora, esta separação artificial e
espartana entre questão de fato e questão de direito violenta a
realidade da vida e já havia sido magistralmente denunciada por autores
de fôlego da hermenêutica jurídica, dentre os quais destaco Castanheira Neves e Friedrich Muller [2].
Como separar a avaliação jurídica de um
fato das normas que o condicionam? O sentido da norma depende da
tessitura trazida pelos fatos concretos, não se pode simplesmente
"higienizar" um caso propondo uma análise normativa independente do
próprio caso. Eis mais um exemplo da patológica distinção entre teoria e
prática, um dos maiores males que hoje aflige qualquer processo
educativo, de pesquisa ou de construção do conhecimento. Tanto é assim
que, repita-se, 25% dos recursos que chegam aos tribunais superiores ensejam a libertação do réu.
Do mesmo modo, é equivocado o argumento de querer justificar a execução provisória
após condenação em segunda instância, mesmo com recurso pendente para
os tribunais superiores, recorrendo a uma analogia do que determinou a lei da ficha da limpa,
visto que aqui não se trata propriamente de uma consequência de caráter
penal e de privação da liberdade, mas sim de uma condição de
elegibilidade, uma condição eleitoral. São matérias muito distintas.
“A relativização da presunção de inocência realizada pelo STF é um mal em si” |
IHU On-Line – Essa medida pode
agravar o contexto do sistema carcerário no que diz respeito ao uso
excessivo das prisões provisórias?
José Carlos Moreira da Silva Filho –
Este é outro aspecto grave que deve ser examinado é o efeito imediato
dessa decisão, caso ela venha a se consolidar, para casos futuros. O Brasil hoje tem cerca de 600 mil pessoas encarceradas
(o terceiro país do mundo em número de pessoas presas e talvez o maior
em termos de aceleração dos índices de crescimento do encarceramento),
das quais cerca de 40% estão em prisão provisória, o que mais do que exemplifica o completo abuso desse instituto.
Isto é, não só temos pessoas que são
presas antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, mas também
pessoas que são presas sem sequer terem sido julgadas. Esta última
situação deveria ser uma exceção relacionada aos casos de flagrante e
real necessidade da prisão provisória, no entanto, trata-se de um
procedimento banalizado e que se mantém para muito além do prazo legal
máximo estabelecido, às vezes por anos [3].
Afora isso, qualquer pessoa minimamente informada sabe muito bem que os presídios e celas do Brasil são verdadeiras masmorras que violam diuturnamente a legislação de execução penal e a própria Constituição
ao não garantirem aos apenados e internos as mínimas condições de
dignidade. O sistema está completamente falido, as instalações caem aos
pedaços, o crime, a violência, a ignomínia são a moeda corrente desses
lugares fétidos, insalubres e degradantes.
O curioso é que o próprio STF reconheceu recentemente essa situação calamitosa do sistema prisional, como se viu na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 347, interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade - PSOL.
Não faz muito tempo, foi em setembro de 2015, que o STF, secundando a
inovação colombiana, decretou o "estado de coisas inconstitucional"
determinando medidas de intervenção orçamentária e estrutural no próprio
sistema prisional, o que resultou na exigência aos juízes da realização da audiência de custódia e na liberação da verba do Fundo Penitenciário para a sua finalidade precípua, sem qualquer tipo de contingenciamento.
Como o próprio Presidente da Corte, Ricardo Lewandowski, esclarece, o “estado de coisas inconstitucional” "foi uma medida desenvolvida pela Corte Nacional da Colômbia
a qual identificou um quadro insuportável e permanente de violação de
direitos fundamentais a exigir intervenção do Poder Judiciário de
caráter estrutural e orçamentário" [4].
Diante disso, pergunta-se: qual é a lógica em se determinar que um sistema prisional
falido, abarrotado de presos, seja ainda mais precarizado com a prisão
dos milhares de réus que hoje aguardam seu recurso de terceira instância
em liberdade? O STF que tomou a decisão no HC 126.292 não parece ser o mesmo STF da ADPF 347. Diria que são até mesmo verdadeiras antíteses.
Mas afora a inutilidade e o caráter
brutal, violento e precário - similares ao próprio "estado de coisas" do
sistema prisional brasileiro - a que ficam reduzidos direitos e
garantias com esta decisão, está uma questão ainda mais grave, objeto do
segundo olhar que proponho na resposta a esta pergunta: o mortal
atentado à Constituição de 1988 no que ela tem de mais
elevado e democrático, perpetrado exatamente pelos que têm a missão de
protegê-la como principal razão de ser do seu ofício cotidiano.
IHU On-Line - Como essa nova jurisprudência se relaciona com a Constituição Federal? Que conflitos emergem?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Como procurei frisar antes, a relativização da presunção de inocência realizada pelo STF,
chancelando prática que vinha anteriormente combatendo, é um mal em si.
Mas agora afirmo que dentro desse mal há ainda outro maior, e que vem
se amoldando em uma cadeia de eventos que não se iniciaram em 17 de
fevereiro de 2016, mas que remontam às próprias origens do texto
constitucional e ao processo de redemocratização do país.
A Constituição Federal de 1988, gravada simbolicamente na retina dos que foram contemporâneos à sua promulgação com a imagem de Ulysses Guimarães
erguendo-a sob a cabeça ao som de aplausos, gritos e êxtases, traduz o
marco simbólico e legal da passagem da ditadura para a democracia, do
Estado de exceção para o Estado de Direito. Tal marco é reconhecido em
seu próprio texto quando no Art.8 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias determina o direito de reparação para os que foram
perseguidos políticos até a data da sua promulgação, demarcando o
instituto da anistia em sintonia com os cânones democráticos e
libertários. Por meio deste artigo, o Estado brasileiro se reconhece
devedor de uma indenização aos que outrora perseguiu, ou seja, reconhece
a ilicitude dos seus atos de perseguição e deles procura se distanciar.
Em muitos outros artigos da Constituição
se pode reconhecer a distância valorativa, simbólica e literal que a
nova ordem constitucional quer tomar do Estado ditatorial. Resultado de
extensa e legítima mobilização social organizada, já treinada pelos
embates das lutas pela anistia nos anos 70 e pelas diretas já
nos anos 80, a nova Constituição nasce pródiga em direitos e garantias,
tanto de ordem individual quanto social, estabelecendo inclusive o
princípio da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental e o
princípio da prevalência dos direitos humanos em suas relações
internacionais.
A nova Constituição
inicia pelo que há de mais essencial nesse novo esforço de fundar
juridicamente uma sociedade democrática e mais igualitária: os
princípios, direitos e garantias fundamentais. Aqui reside parcela
majoritária e inegociável da identidade constitucional firmada no
processo Constituinte, e exatamente por isto ela foi blindada contra
qualquer possibilidade de reforma constitucional, estando suscetível
teoricamente apenas a uma nova, legítima e eventual Constituinte,
devendo ainda observar os compromissos internacionais já assumidos e
adotados pelo Estado brasileiro. Tal blindagem é conhecida pelo nome de
"cláusulas pétreas" (Art.60, §4º), entre as quais está a impossibilidade
de reforma para diminuir ou abolir "os direitos e garantias
individuais" (Art.60, §4º, IV).
Ocupam lugar de honra no Art.5º da Constituição (dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) os dispositivos que trazem garantias aos indivíduos diante do poder punitivo do Estado. Tais garantias são demarcadas em diversas outras legislações pelo mundo e em tratados internacionais de Direitos Humanos,
mas no caso brasileiro elas apontam diretamente para a experiência de
arbítrio e não contenção do poder punitivo que o país experimentou ao
longo das mais de duas décadas de regime ditatorial.
“A casta judicial entendeu-se como instância máxima de interpretação sobre a moralidade nacional e sobre as demandas populares, e assim se manteve na democracia” |
A sombra da ditadura
Não é por acaso que o grande marco do endurecimento da ditadura foi o AI-5, com a supressão da possibilidade do Habeas Corpus
para os que estavam presos acusados de subversão. Prender sem mínimos
critérios, com violência, tortura, arbítrio, muitas vezes de modo
clandestino, era prática adotada pelos agentes de segurança e chancelada
de roldão pelo Poder Judiciário brasileiro, que com as devidas exceções postou-se passivo e conivente diante da exceção.
Em tese de doutorado magistral defendida em dezembro do ano passado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, Vanessa Dorneles Schinke
evidencia o alto nível de cumplicidade predominante no judiciário
brasileiro com o arbítrio, e isto em diferentes níveis, desde discursos
laudatórios à ditadura e duros com aos que a ela se
opunham inseridos em suas sentenças até as participações festivas e
permanentes em cursos de formação na Escola Superior de Guerra, em
solenidades oficiais, em documentos institucionais, e isto em todos os
níveis, inclusive e especialmente nas instâncias intermediárias e
superiores.
Contudo, o mais sintomático dessa
cumplicidade se deve a um caráter quase que estruturante do próprio
funcionamento da corporação judicial no Brasil. Apegada aos seus
procedimentos, ao seu modus operandi burocrático e ao apagamento contextual do arsenal legislativo à sua disposição, a casta judicial brasileira
evitou embates diretos com os governantes ditatoriais e com toda a
ordem de interesses sociais que por eles eram representados,
considerando em suas decisões, sem a menor cerimônia, a convivência
saudável entre a Constituição de 1946, os Atos Institucionais, a Constituição outorgada de 1967 e de 1969, e toda a legislação já existente.
Não se via contradição lógica entre Atos Institucionais e a Constituição
que feriram de morte, não se via problema na revogação por decreto
autoritário de inúmeras normas da Constituição em vigor, mesmo as da
outorgada. É como se tudo que o Estado produzisse e envolvesse fosse um
direito de fato, assumido sem mais como fundamento jurídico de decisões
judiciais.
Uma vez ocorrida a transição democrática
com a promulgação da nova ordem constitucional, tal transição não se
fez acompanhar de uma intensa, ampla e necessária depuração
institucional do passado autoritário através de mecanismos de justiça de transição.
A aplicação de tais mecanismos (comissões de reparação, comissões de
verdade, julgamento dos agentes públicos que praticaram crimes contra a
humanidade, abertura de arquivos, depurações administrativas, reformas
institucionais, políticas de memória e memorialização, entre outros) foi
tardia e parcial no Brasil e continua em franco desenrolar, sujeita a chuvas e trovoadas.
Um dos setores que permaneceu incólume nesse processo transicional que ainda vivenciamos foi justamente o Poder Judiciário.
Nenhum juiz foi questionado ou denunciado por suas posições de apoio,
tanto político quanto jurídico, à ditadura e de inação diante da
tortura, do arbítrio e do assassinato da Constituição de 1946 e da ilegitimidade do poder político que passou a ser exercido.
As estruturas, mentalidades e
simbologias permaneceram intactas, com mudanças cosméticas que não
lograram democratizar o judiciário em suas próprias estruturas ou
torná-lo mais aberto às legítimas mobilizações populares organizadas
voltadas à reivindicação de direitos e ampliação das garantias, demandas
voltadas aos objetivos constitucionais de "construir uma sociedade
livre, justa e solidária" (Art. 3º, I) e de "erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (Art.3º,
III).
Em sintonia com a onipresença militar
em saber o que deveria ser exigido em termos de moralidade e desejo do
povo (ainda que contra a sua própria vontade, considerada imberbe e
imatura), a casta judicial entendeu-se como instância
máxima de interpretação sobre a moralidade nacional e sobre as demandas
populares, e assim se manteve na democracia, ainda que liberta da rédea
curta que lhe impunham os ditadores e militares poderosos.
Todavia, nada podia estar mais distante
das aspirações e demandas populares que uma casta moldada desde o
Império como um enclave elitista e conservador, pouco afeita ao
reconhecimento de um protagonismo político aos movimentos sociais.
O que temos hoje é uma crescente criminalização dos movimentos sociais
decretada pelo judiciário e uma sensibilidade impressionante aos
reclamos de lei e ordem, identificados com o desespero histérico de
camadas médias e altas da burguesia nacional diante do incessante
assédio aos seus bens e aos seus modos de vida, especialmente quando
operados por camadas pauperizadas e periféricas da sociedade, que hoje
abarrotam os presídios.
É sintomático que uma das razões oferecidas pelos Ministros que votaram com o relator no HC 126.292 foi a de se atender os reclamos da sociedade. E aí perguntamos: como se ausculta esse hipotético reclamo social? Qual o termômetro para medi-lo? A mídia? O senso comum? O poder superior do magistrado de agarrar no ar o sumo da moralidade social? Alguma pesquisa de opinião? O que leva um juiz a relativizar uma garantia constitucional expressa de modo literal e claro, ainda mais em sede de restrição de direitos quando se sabe que prevalece a interpretação restritiva, em nome de um reclamo social cuja densidade é incerta, etérea, vaporosa, quase esotérica? Aqui é bom lembrar de importante crítica formulada por Ingeborg Maus ao judiciário alemão do pós-guerra e que também serve para o nosso caso. Disse a socióloga alemã:
É sintomático que uma das razões oferecidas pelos Ministros que votaram com o relator no HC 126.292 foi a de se atender os reclamos da sociedade. E aí perguntamos: como se ausculta esse hipotético reclamo social? Qual o termômetro para medi-lo? A mídia? O senso comum? O poder superior do magistrado de agarrar no ar o sumo da moralidade social? Alguma pesquisa de opinião? O que leva um juiz a relativizar uma garantia constitucional expressa de modo literal e claro, ainda mais em sede de restrição de direitos quando se sabe que prevalece a interpretação restritiva, em nome de um reclamo social cuja densidade é incerta, etérea, vaporosa, quase esotérica? Aqui é bom lembrar de importante crítica formulada por Ingeborg Maus ao judiciário alemão do pós-guerra e que também serve para o nosso caso. Disse a socióloga alemã:
“Quando a justiça
ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da
sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social -
controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do
Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de
uma Justiça que contrapõe um direito "superior", dotado de atributos
morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é
notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de
integração social." [5]
Continuando com meu raciocínio neste segundo olhar que proponho, vejo essa decisão do STF em paralelo com aquela que tomou na ADPF 153 em 2010, ação que foi interposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB para questionar a compatibilidade da anistia concedida aos agentes da ditadura que praticaram crimes contra a humanidade diante da nossa Constituição. Poucos meses antes de ir a Plenário, quando o julgamento da ação já havia sido pautado, um dos Ministros do STF, Marco Aurélio Mello, em entrevista concedida em Rede Nacional ao repórter Kennedy Alencar, da Rede TV, afirmou que a ditadura
foi um "mal necessário". Tal declaração passou em brancas nuvens e
foram poucos os juristas que manifestaram o seu assombro diante da
afirmação insólita vinda de um Ministro da Corte guardiã da Constituição e dos seus valores.
Em um segundo momento, já no julgamento da ADPF 153 nos deparamos com a afirmação feita pelo Ministro Relator da ação, Eros Grau, e secundada pelo Ministro Gilmar Mendes, de que a Constituinte que gerou a Constituição
de 1988 não era soberana, já que nasceu com uma limitação imposta pela
Emenda Constitucional - EC 26/85 em relação à anistia. O detalhe
preocupante nessa tese é que a limitação ao Constituinte seria
proveniente de uma Emenda a uma Constituição autoritária e outorgada que
com ela partilha das mesmas características.
Nesse julgamento os valores e os sentidos da Constituição de 1988 foram afrontados e o STF simplesmente reprisou o entendimento que a própria ditadura estabeleceu sobre o significado da Lei de Anistia
de 1979 [6], isentando de qualquer responsabilidade e apuração judicial
os agentes públicos da ditadura que protagonizaram crimes contra a
humanidade contra aqueles que deveriam proteger na qualidade de agentes
públicos. Aquele acórdão, para além do seu resultado, traz afirmações e
fundamentações que já deveriam pôr de cabelo em pé a comunidade jurídica
comprometida com os valores democráticos em seu mais amplo sentido.
Na ADPF 153 anistiou-se
simbolicamente o poder punitivo descontrolado do Estado ditatorial em
plena democracia. No HC 126.292 o poder punitivo do Estado democrático
foi ampliado e chancelado ao arrepio do que diz o Art.5º, LVII, rompendo
com uma cláusula pétrea em plena democracia, e tal qual os agentes da
ditadura que praticaram um crime de Estado contra aqueles que deveriam
proteger, os Ministros do STF praticaram um atentado frontal à
integridade da Constituição que juraram proteger.
“Não é de hoje a abertura judicial para violentar o texto constitucional” |
No final de 2015 também já se antevia claramente a ausência de desconforto do STF
em violentar o sentido claro e expresso do texto constitucional, e
relacionando-se mais uma vez com a privação da liberdade, dessa vez de
um Senador da República.
O Senador Delcídio do Amaral,
independentemente dos malfeitos nos quais possa estar envolvido, é um
Senador eleito pelo voto popular, devidamente diplomado. O art.53, §2º
da Constituição afirma que desde a expedição do diploma
os senadores não podem ser presos, a não ser no caso de "flagrante de
crime inafiançável".
Em seguida diz que quando ocorrer a
prática de tal crime por algum Senador, os autos serão remetidos ao
Senado em 24 horas para que pela maioria de seus membros confirme-se ou
não a prisão. O grande problema é que o fato pelo qual o Senador
Delcídio foi preso não constitui a hipótese, não sendo, a meu ver, nem
flagrante e nem crime inafiançável, logo violaram a Constituição tanto o
STF, que decretou essa prisão, quanto o próprio Senado, que a
confirmou.
Tal fato é de grande gravidade em termos de integridade e respeito à Constituição e já abre claramente o flanco para que no Brasil possa ocorrer algo parecido com o que houve em Honduras,
isto é, a deposição de um Presidente eleito pelo voto popular por
determinação judicial, com frágil amparo na ordem constitucional e
operada por funcionários públicos (sim, os juízes o são) que não foram
eleitos para determinarem em nome da vontade popular quem devem ser os
seus governantes.
Vemos, no presente, manobras nessa direção claramente assumidas por um juiz ativista e "guardião da moral" como Sérgio Moro e vistas com simpatia por Ministros do Tribunal Superior Eleitoral, como Gilmar Mendes,
que, por sua vez, não poupa declarações e pronunciamentos, muitos
feitos em julgamento, que comprometem flagrantemente a imparcialidade
que um magistrado, ainda mais do STF, deve praticar.
Noto, portanto, que não é de hoje a abertura judicial
para violentar o texto constitucional e ocupar o seu lugar por meio da
sua sentença moralizante e superior até ao próprio Constituinte.
Trata-se de um processo que precisa ser reconhecido, detectado,
diagnosticado, denunciado e combatido. Uma coisa é a Constituição
ser violada por um cidadão, governante ou parlamentar, estando todos
sujeitos ao controle judicial cuja função é exatamente coibir tais
violações, outra coisa é o próprio Poder Judiciário em sua instância máxima decidir violar uma cláusula pétrea expressa da Constituição, como ocorreu no HC 126.292,
rompendo inclusive com o princípio de vedação do retrocesso em matéria
de direitos fundamentais, com sua própria jurisprudência pacificada e
trazendo evidente insegurança jurídica.
Diante da violação explícita da nossa Constituição
no que ela tem de mais essencial (afinal se esta garantia for hoje
relativizada qualquer uma pode ser), ainda que operada pelo órgão
judicial máximo do país, cabe opor o legítimo direito de resistência, de
todas as formas em que for possível. Vejo aqui um claro paralelo com a
possibilidade de desobediência civil. Mas, antes disto, é preciso notar
que tal decisão por enquanto só vale para aquele caso e que, ademais, é
passível de controle em sede judicial internacional. Fato que já
movimenta o Conselho Federal da OAB na direção de uma provocação ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, e que já gerou uma condenação ao Brasil no caso Guerrilha do Araguaia determinando que o acórdão do STF na ADPF 153 não fez o controle de convencionalidade (ou seja, foi contrário ao Pacto de San José da Costa Rica e à própria e copiosa jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
à qual o Brasil se submeteu de livre e soberana vontade) e que são
nulas quaisquer disposições de anistia para crimes contra a humanidade.
É provável que se prosperar uma causa que questione a decisão tomada pelo STF no HC 126.292 a Corte Interamericana de Direitos Humanos também condene o país e aponte mais uma vez que o STF não realizou o obrigatório controle de convencionalidade.
IHU On-Line – Que questões embasam essa mudança na legislação e que objetivos elas pretendem cumprir?
José Carlos Moreira da Silva Filho -
Não houve uma mudança na legislação, mas apenas uma interpretação do
STF que desborda, a meu ver, dos seus limites razoáveis. Na verdade,
houve uma tentativa anterior de alterar a Constituição pela via legislativa, buscando estabelecer que o trânsito em julgado
se desse após a decisão tomada pela segunda instância, proposta
defendida inclusive por um Ex-Presidente da casa, o então Ministro Cezar Peluso.
Caso tal proposta vingasse, penso que não haveria ofensa frontal à Constituição.
Importa entender que o trânsito em julgado acontece quando não mais é
possível qualquer outro recurso. Se o legislador assim entendesse, ele
poderia diminuir ou alterar a quantidade de recursos hoje existentes no
âmbito do processo penal, vedando, por exemplo, a via do Recurso Especial (STJ) e do Recurso Extraordinário (STF), e alterando o momento processual no qual ocorreria o trânsito em julgado, que neste caso seria a decisão da segunda instância.
Contudo, tal proposta foi rejeitada pelo Poder Legislativo,
que optou pela manutenção da amplitude recursal para os que buscam se
defender diante do poder punitivo do Estado. Caso prevaleça a decisão
que o STF tomou no dia 17 de fevereiro de 2016, ficará mais do que comprovado o exercício do ativismo judicial,
como se legislador ele fosse, e, o que é pior, pelo caminho escolhido
nesta decisão, nem mesmo o legislador poderia assim determinar, visto
que se trata de cláusula pétrea.
Explicando melhor, é possível alterar pela via legislativa o momento processual em que ocorrerá o trânsito em julgado,
mas não é possível determinar que a presunção de inocência acabe antes
que se dê o trânsito em julgado. Hoje o trânsito em julgado só se
consolida com a decisão dos recursos eventualmente interpostos junto aos
tribunais superiores, daí porque fere o Art.5º, LVII ("ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória") a execução provisória da pena antes que os recursos sejam
julgados e decididos.
Que fins justificam a medida
Quanto aos objetivos que medidas como
essa buscam cumprir, estamos assistindo a uma guinada do sistema de
justiça brasileiro de julgador para condenador, de equidistante e
imparcial, para um Poder que se articula com a mídia e com espectros
políticos bem definidos e parciais. Assistimos a uma promiscuidade
talvez nunca antes presenciada no país entre a ação da imprensa
brasileira, que vem se pautando por muitos factoides que ela mesma
fábrica, e o sistema de justiça no país, incluindo aí o Ministério Púbico.
São vazamentos
seletivos, declarações de efeito, constantes aparições na mídia e em
grandes eventos, espetacularizações, violações de sigilos e de devidos
processos que favorecem apenas um espectro político e desfavorece o
outro. O problema não é haver ou não uma investigação, mas sim um
esforço hercúleo para condenar apenas alguns que representam o espectro
político adversário, a utilização da delação premiada de modo opressivo,
com prisões indefinidas decretadas até que o preso fale algo que se
encaixe na narrativa ou na expectativa do juiz, o que enquanto não
ocorrer impede a sua libertação em grande parte dos casos.
Tal seletividade indica a exceção e não o Estado Democrático de Direito,
pois neste deve prevalecer a igualdade de todos perante a lei. O
magistrado não deve se comportar como um justiceiro, mas como alguém que
deve julgar de modo imparcial, mantendo reserva e distanciamento dos
holofotes. A impressão que hoje se tem da atuação jurisdicional é de um
certo gosto pela tribuna televisionada, pela entrevista no jornal, pela
reportagem do noticiário. E aí todos querem sair bem na foto.
Ora, um poder judiciário
garantista e democrático é justamente aquele que não pode transigir
diante da ofensa de direitos fundamentais e da integridade
constitucional, ainda que uma massa ignara e desconexa representada e
insuflada por orquestrações midiáticas assim o exija. Um poder
judiciário forte deve estar preparado para tomar decisões consideradas
impopulares, que não agradem os reclamos moralistas e punitivistas da
sociedade. Caso perca tal condição, não mais poderá exercer a sua função
contramajoritária.
A disposição ativista do sistema de justiça no Brasil, que não tem titubeado em investir contra a própria Constituição
e seu patrimônio simbólico, não é um problema deste ou daquele
Ministro. Notamos que mesmo juristas considerados sensíveis às pautas de
igualdade e emancipação social, conhecidos por entendimentos que buscam
a direção democrática e o discurso dos direitos humanos e da vedação do
retrocesso, como a meu ver seriam o caso de Luis Roberto Barroso e Luis Edson Fachin, não hesitaram em relativizar o princípio da presunção da inocência no HC 126.292, com todas as consequências que já expus antes.
“Mantém-se o caráter centralizador, verticalizante e oligárquico da estrutura judicial no Brasil” |
O Ministro mais veemente na defesa do princípio tal qual resta esculpido no texto constitucional, Marco Aurélio Mello,
foi justamente o mesmo Ministro que havia afirmado em 2010 que "a
ditadura foi um mal necessário". Temos portanto um problema sistêmico
que atinge o sistema de justiça desenhado na Constituição de 1988. É
forçoso reconhecer que esse mesmo desenho não trouxe instrumentos aptos a
realizarem a necessária depuração em relação ao judiciário burocrático e
opaco da ditadura. Apesar da EC 45/2004 e da criação do Conselho Nacional de Justiça - CNJ,
insuficientes por si só para dar conta da tarefa, mantém-se o caráter
centralizador, verticalizante e oligárquico da estrutura judicial no
Brasil.
Isso pode ser constatado, por exemplo,
na inexistência do sufrágio direto exercido pelos magistrados e
servidores para a escolha dos presidentes dos tribunais de justiça; no
controle dos órgãos de corregedoria pelos tribunais, conformando
uniformidades condizentes com o padrão político e ideológico adotado; na
presença diminuta de representantes das minorias sociais
na composição dos quadros (mulheres, negros, indígenas, LGBT's etc.);
no controle externo limitado, tímido, tardio, incompleto e claudicante;
na ausência de critérios que priorizem o conhecimento jurídico em torno
dos direitos humanos para a escolha dos Ministros da Suprema Corte (como ocorre em outros países como Argentina e Bolívia).
Acrescente-se a esse quadro o fato de
que o mesmo judiciário que se arvora em guardião moral máximo da
sociedade é aquele que vem, no mais acabado formato corporativo,
defender o recebimento de auxílio-moradia para
todos os magistrados, mesmo que possuam casa própria. É o mesmo
judiciário que não vê problema algum (e nisto não estão sozinhos, já que
outras carreiras públicas como Advocacia-Geral da União - AGU e Ministério Público - MP
buscam as mesmas benesses) em receber diversas "verbas indenizatórias"
que, somadas ao já alto salário, produzem o efeito prático da superação
dos valores estabelecidos pelo teto constitucional (muitas vezes
triplicando ou mais o valor já alto do teto), e sem que sobre tais
verbas, já que "indenizatórias", recaia sequer a incidência do Imposto
de Renda.
IHU On-Line - A partir dessa
decisão do STF, como passa a se situar na legislação o princípio da
presunção de inocência? Não há um choque entre essas duas medidas?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Na decisão tomada pelo STF no HC 126.292 não houve a declaração de inconstitucionalidade do Artigo 283 do Código de Processo Penal.
O artigo diz o seguinte: “ninguém será preso senão em flagrante delito
ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente,
em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no
curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou
prisão preventiva”. Assim, se tal dispositivo do Código de Processo
Penal não foi declarado inconstitucional, ele vale. A legislação,
portanto, só prevê duas hipóteses na qual está facultada a prisão antes
do trânsito em julgado de sentença penal condenatória:
prisão temporária ou prisão preventiva. Tal circunstância torna ainda
mais anômala e incompreensível a decisão tomada pelo STF no dia 17 de
fevereiro de 2016.
IHU On-Line – Em que medida essa
decisão pode resolver o problema da impunidade, conforme alega a
maioria dos juristas que votaram a favor desta medida?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Penso que de nenhum modo. Em primeiro lugar, penso que o problema da impunidade
no Brasil é mal dimensionado por declarações como esta e frequentemente
pelas coberturas midiáticas e policialescas do tema. Temos um sistema penal
que é seletivo, que no seu funcionamento, por diversas razões, desde a
formação policial até a atuação judicial e a cumplicidade dos demais
poderes instituídos, privilegia o perfil do jovem negro, pobre e periférico (basta visitar os presídios).
O sistema tem optado em seu funcionamento pelo encarceramento em massa
desse perfil. Já somos hoje o terceiro país do mundo em número de
encarcerados, sendo que, como já assinalado, cerca de 40% desse universo
são prisões provisórias. Diante desse quadro, quando se diz que no
Brasil campeia a impunidade é preciso no mínimo
explicar melhor o que se quer dizer. Analisando os tipos de crimes dos
que estão presos hoje no Brasil, nota-se, segundo dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias - InfoPen
divulgados no ano passado pelo Ministério da Justiça, que apenas 14%
dos encarcerados ali estão pela prática de homicídio, sendo que a maior
porcentagem dos crimes é o de tráfico de drogas (27%), seguido pelo de
roubo (21%).
Evidencia-se uma clara opção política
pela punição e combate ao crime de tráfico de drogas e a crimes contra o
patrimônio, opção que apenas timidamente vem sendo questionada,
deixando-se em segundo plano os crimes de homicídio. De outro lado,
percebemos que os chamados crimes de colarinho branco não chegam a 1% do
universo de presos (e quando assumem alguma proeminência midiática,
como se notou no caso da Ação Penal - AP 470 e vem se notando na Operação Lava-Jato,
o sistema continua a ser seletivo, fechando os olhos para os espectros
políticos protegidos e muitas vezes forçando condenações e prisões de
indivíduos vinculados aos espectros políticos demonizados).
Também é importante frisar que os agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade durante a ditadura
simplesmente nunca foram sequer investigados. Nota-se nisto uma
proximidade macabra com o atual baixíssimo índice de policiais
condenados pela prática de tortura ou homicídio, ainda que tal prática
seja apontada como elevada em diversos relatórios de Direitos Humanos.
Concluo dizendo que existe impunidade,
sim, no Brasil, mas voltada para aqueles que são selecionados pelo
sistema para não serem por ele atingidos, e que incluem aí os piores
crimes, como os crimes contra a humanidade. E, como o impressionante
aumento das taxas de encarceramento conjugado com o estado deplorável
das cadeias brasileiras vem nos aconselhando, precisamos urgentemente
investir em políticas desencarcerizantes. Temos que conquistar a
consciência de que o sistema penal não é solução para
os problemas sociais, de que a principal e mais eficiente forma de
combate à violência não deve ser o emprego de mais violência, e de
punições que nem sequer estão de acordo com o Direito, como ocorre no
confinamento em celas insalubres abarrotadas de pessoas que por vezes
não têm nem mesmo um lugar no chão para dormirem deitadas.
A saída é a prevenção, a conquista da
igualdade material, a educação e a construção de uma sociedade mais
solidária, participativa e inclusiva, restando o sistema penal para os
casos mais extremos e excepcionais, se é que não podem ser tratados de
outro modo.
IHU On-Line - Como essa decisão impacta os diversos setores e estratos sociais? Quais devem ser os mais atingidos pela mudança?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Importante relembrar que a decisão tomada pelo STF no HC 126.292
só vale para aquele caso concreto, mas indica uma possibilidade
preocupante para o futuro. Caso venha a prevalecer este entendimento
para casos futuros, os mais impactados serão aqueles que desde sempre
são selecionados pelo sistema punitivo, sejam aqueles que serão
encarcerados antes do tempo, sejam os demais que já se encontram
encarcerados em difícil situação de integridade das suas necessidades
fundamentais, que já disputam pouco espaço e estruturas que passarão a
ser ainda mais "concorridas". E de modo mais amplo, tal decisão favorece
o ativismo judicial, desfavorece a integridade constitucional e fomenta esse novo/velho perfil moralizante, midiático e justiceiro que o Poder Judiciário vem assumindo.
“Os mais impactados serão aqueles que desde sempre são selecionados pelo sistema punitivo” |
IHU On-Line – Alguns
pesquisadores entendem que a decisão do STF não fere a democracia e
alegam que o Brasil estaria seguindo um padrão internacional a partir
dessa medida. De que maneira o senhor avalia esse posicionamento?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Respeito muito o importante trabalho que o jurista que emitiu tal opinião, Oscar Vilhena, vem realizando junto à organização não governamental Conectas, mas considero lamentável essa declaração. Quando o tema do qual estamos tratando são os direitos fundamentais, o país deve estar afinado com as suas garantias e direitos constitucionais na matéria e com as orientações presentes em tratados internacionais de direitos humanos, especialmente aqueles que ratificou e aprovou internamente.
José Carlos Moreira da Silva Filho - Respeito muito o importante trabalho que o jurista que emitiu tal opinião, Oscar Vilhena, vem realizando junto à organização não governamental Conectas, mas considero lamentável essa declaração. Quando o tema do qual estamos tratando são os direitos fundamentais, o país deve estar afinado com as suas garantias e direitos constitucionais na matéria e com as orientações presentes em tratados internacionais de direitos humanos, especialmente aqueles que ratificou e aprovou internamente.
O fato de um outro país, como os Estados Unidos, adotar um parâmetro diverso para o princípio da presunção da inocência guarda importância infinitamente menor para nós do que aquilo que a nossa Constituição estabelece como cláusula pétrea e que é reforçada por diferentes tratados internacionais, dentre os quais se destaca o próprio Pacto de San José da Costa Rica, ao qual o país aderiu. Oscar Vilhena, em sua entrevista, indica a possibilidade de que o decidido pelo STF
pudesse ser obtido pela via preferível de uma Emenda Constitucional
(hipótese que não creio ser possível diante da existência de cláusulas
pétreas), mas que mesmo não ocorrendo não chegaria a ferir a democracia.
Neste ponto discordo veementemente sem
possibilidade de contemporização. Para mim, não se trata de avaliar a
adequação ou oportunidade da medida em si (que acho bem questionável
como esclareci antes), mas, acima disso, de zelar pela integridade
constitucional, o que implica no respeito incondicional aos direitos e
garantias fundamentais da Constituição, blindados por cláusula pétrea.
Acho triste e preocupante, pré-democrático, que juristas conhecidos pela
defesa dos direitos humanos e juízes que deveriam proteger a Constituição façam pouco caso dos limites inquestionáveis da reforma constitucional. E isto, sim, fere a democracia!
Por Leslie Chaves
Notas do entrevistado:
[1] Ver detalhamento dessas estatísticas em pesquisa realizada pela FGV aqui.
[1] Ver detalhamento dessas estatísticas em pesquisa realizada pela FGV aqui.
[2] Ver: MÜLLER, Friedrich.
Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional,
I. Tradução de Peter Naumann. Porto Alegre: SAFE, 1995; MÜLLER,
Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2.ed. Tradução
de Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2000; NEVES, A. Castanheira.
Metodologia jurídica – problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora,
1993; NEVES, A. Castanheira. Questão-de-facto — questão-de-direito ou o
problema metodológico da juridicidade. Coimbra: Almedina, 1967.
[3] Neste sentido, ver pesquisa coordenada pelo Prof. Rogerio Dultra dos Santos
da UFF sobre excesso de prisão provisória no Brasil, apoiada pelo
projeto "Pensando Direito" da Secretaria de Assuntos Legislativos do
Ministério da Justiça, divulgada em 2015.
[4] Notícias do STF
[5] MAUS, Ingeborg.
Judiciário como superego da sociedade - o papel da atividade
jurisprudencial na "sociedade orfã". Tradução de Martonio Lima e Paulo
Albuquerque. Novos Estudos, n.58, p.183-202. nov. 2000.
[6]
Mais detalhes nessa linha sobre a incompatibilidade do acórdão produzido
na ADPF 153 com a Constituição de 1988 e com os Tratados e a
jurisprudência internacional de Direitos Humanos, ver os capítulos 3 e
10 do meu livro: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da.
Justiça de Transição - da ditadura civil-militar ao debate
justransicional - direito à memória e à verdade e os caminhos da
reparação e da anistia no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015.
Para ler mais:
Veja também:
Fonte: IHU
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