PICICA: "Trabalhar no território é ir para a rua construir
possibilidades de produção de vida para uma população extremamente
vulnerável, significa um trabalho coletivo e de corresponsabilização e
presença. Trabalho artesanal. Intersetorial porque implica a articulação
com diferentes áreas como Educação (Educação Inclusiva), Cultura,
Trabalho (Economia Solidária), entre outros. Dizemos então que a Reforma Psiquiátrica é um processo complexo e a construção dessas redes é a maior complexidade."
Por que continuamos a gritar: FORA VALENCIUS!
Deborah Sereno*, especial para os Jornalistas Livres
27 Janeiro, 2016
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Desde a audiência em 10 de dezembro de 2015, com
representantes de mais de 600 entidades e movimentos sociais, quando o
Ministro da Saúde Dr. Marcelo Castro anunciou a nomeação de seu amigo, o
psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho para o cargo de Coordenador de
Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, essas
mesmas entidades, junto aos trabalhadores de saúde mental, usuários e
familiares, estudantes e professores universitários de diversas áreas da
saúde gritam de diversas maneiras em diferentes locais: “FORA
VALENCIUS!”
A nomeação de Valencius Wurch ameaça (e ultraja!)
seriamente a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Vale repetir seu
lastimável currículo: Valencius foi diretor do maior manicômio privado
da América Latina, a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, na Baixada
Fluminense, no Rio de Janeiro. A instituição foi fechada
judicialmente em 2012 por violações dos direitos humanos. Entenda-se com
isso maus tratos físicos, práticas recorrentes de eletrochoque, falta
de comida, falta de colchões, falta de roupas, internações de
longuíssimas durações (décadas!), excesso de medicalização.
Violações cujos efeitos eram (e ainda são) devastadores para os
internos, cronificantes, de despersonalização, dessubjetivação,
aniquilamento do sujeito. Basta um Google no nome da instituição e os
relatos e imagens que se vê são aterradores. Aterradores e terrificantes
como tudo o que já sabemos, já vimos ao vivo com nossos próprios olhos e
no cinema, nos documentários, na literatura sobre os horrores dos
manicômios. São verdadeiros campos de concentração.
Por isso usuários, familiares, trabalhadores da saúde
mental, movimentos sociais, estudantes e professores universitários,
gritamos nas ruas de diversas capitais, nas redes sociais, na ocupação
dentro da sala da Coordenação de Saúde Mental em Brasília, na Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro, no Fórum Social Mundial em Porto Alegre e
continuaremos a gritar até que ele saia: MANICÔMIO NUNCA MAIS! FORA
VALENCIUS!
O Manifesto de Bauru, primeiro documento brasileiro a
pedir a extinção dos manicômios e denunciar a estrutura opressiva
destas instituições e a produção social da loucura foi elaborado durante
o II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, em 1987. Com o
slogan POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS! instituiu-se o 18 de
maio como o Dia da Luta Antimanicomial, comemorado todos os anos em todo
Brasil.
O passo seguinte, a tramitação da Lei Paulo Delgado
(n.3657/1989), que dispunha “sobre a extinção progressiva dos manicômios
e sua substituição por outros recursos assistenciais”, tramitou por 12
anos no Legislativo, sendo duramente atacada pelo lobby formado por
psiquiatras, professores de psiquiatria e diretores de hospitais
psiquiátricos, entre eles o Dr. Valencius. Em entrevista ao Jornal do
Brasil em junho de 1995, ele criticou “o caráter ideológico e não
técnico” dos fundamentos da reforma, os quais se baseariam “em situações
ultrapassadas”.
Como efeito dessa pressão, a Lei Nacional de Reforma
Psiquiátrica 10.216/2001 que foi aprovada é uma modificação do projeto
original. A Lei 10216 regula a Politica Nacional de Saúde Mental e
“dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental”. A progressiva extinção dos hospitais psiquiátricos preconizada
na Lei Paulo Delgado, deu lugar à reorientação do modelo assistencial e
manteve as estruturas hospitalares como um dos recursos integrantes
desse modelo. A Lei 10216 garante os direitos dos usuários de saúde
mental, regula as internações involuntárias e compulsórias e visa ao
tratamento extra-hospitalar, em liberdade, de base comunitária, no
território, como política pública de saúde mental do SUS. A rede de
serviços substitutivos de pequena e média complexidade para atendimento
psicossocial no território, criada desde então, tem reconhecimento
internacional por instituições como OMS, OPAS e serve de referência para
outros países. A eficiência dessa rede é atestada pela profusão de
trabalhos acadêmicos e científicos sobre o tema e mantém seu vigor pela
força da militância e pelo esforço dos trabalhadores, usuários e
familiares, os que mais reconhecem seus benefícios.
São conclusões baseadas em muito trabalho. E é
importante que se fale dos trabalhadores de saúde mental: equipes
interdisciplinares compostas por profissionais de saúde como terapeutas
ocupacionais, psicólogos, fonoaudiólogos, psiquiatras, pediatras,
fisioterapeutas, educadores físicos, oficineiros, enfermeiros,
assistentes sociais e apoiadores, trabalhando em pé de igualdade. São as
equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) que, instalados em
números ainda insuficientes mas em pontos estratégicos da cidade,
atendem demandas de saúde mental e de uso abusivo de álcool e outras
drogas de crianças, jovens e adultos. São os CAPS também que apóiam e
articulam a rede de cada usuário junto às equipes das Unidades Básicas
de Saúde (UBS) e aos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF) da
Estratégia Saúde da Família (ESF), esses últimos na atenção básica. Vale
citar o trabalho dos agentes comunitários de saúde, que batem de porta
em porta todo mês em todas as casas para oferecer cuidado no território
que ele próprio habita e sabe no corpo o que é viver ali. Também digno
de menção, é o trabalho das equipes de acompanhantes comunitários das
residências terapêuticas, que apoiam e participam da construção de
cotidianos e das formas de morar de pessoas que passaram décadas nos
manicômios. E por fim, as equipes de redutores de danos, que não se
furtam, por exemplo, a entrar num cano, literalmente, para atender o
jovem casal que vive ali, usuário de drogas, ela grávida. E não é que a
equipe entra lá para tirá-los à força e colocá-los em alguma instituição
onde ficarão trancados. Entram lá para saber se precisam de alguma
coisa, se eles estão bem. Voltam noutro dia. E no outro… Isso é cuidado,
vínculo, processo, construção de redes de referência, de apoio, de
solidariedade, exatamente na direção oposta do confinamento e do
isolamento promovido pelas internações em hospitais psiquiátricos.
Trabalhar no território é ir para a rua construir
possibilidades de produção de vida para uma população extremamente
vulnerável, significa um trabalho coletivo e de corresponsabilização e
presença. Trabalho artesanal. Intersetorial porque implica a articulação
com diferentes áreas como Educação (Educação Inclusiva), Cultura,
Trabalho (Economia Solidária), entre outros. Dizemos então que a Reforma Psiquiátrica é um processo complexo e a construção dessas redes é a maior complexidade.
Com isso reconhecemos que
ainda há muito a se fazer, desafios. Há também uma infinidade de tensões
e conflitos de interesses em seu campo, tais como o subfinanciamento, a
falta de investimento em novos serviços (é urgente a criação demais
CAPS, mais Serviços Residenciais Terapêuticos, mais leitos em hospitais
gerais); a precarização dos serviços, consequência do subfinanciamento; o
cuidado com a saúde dos trabalhadores e das equipes; a gestão por
Organizações Sociais (OS) e os diferentes modelos de cada OS, muitas
vezes conflitantes com os objetivos da Reforma;a volta dos manicômios
disfarçados de comunidades terapêuticas para tratamento de usuários de
álcool ou outras drogas; as ameaças de retrocesso promovidas pela
associação brasileira de psiquiatria e diretores de hospitais
psiquiátricos inconformados com esta política antihospitalocêntrica e
antimedicocêntrica.Preferimos mil vezes os conflitos, as tensões e as
divergências de posições à verdade absoluta e o consequente
silenciamento de vozes. Buscar soluções a esta pauta enorme (e há ainda
outras, como a formação do trabalhador de saúde nas universidades, e
mais…), dar lugar a isso, é disto que precisamos para seguir avançando
ainda mais na consolidação desta politica publica. O momento é de
avançar e não de recuar! Por isso gritamos: NÃO HAVERÁ RETROCESSO! FORA
VALENCIUS!
* Deborah Sereno é Psicanalista, docente do Curso de
Psicologia da FAHCS/PUCSP; doutoranda do Depto Psicologia Social PUCSP;
Supervisora do Programa QUALIFICACAPS MS (2014-1015) sereno.deborah@gmail.com
Fonte: JORNALISTAS LIVRES
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