fevereiro 01, 2016

Por que continuamos a gritar: FORA VALENCIUS! Por Deborah Sereno (JORNALISTAS LIVRES)

PICICA: "Trabalhar no território é ir para a rua construir possibilidades de produção de vida para uma população extremamente vulnerável, significa um trabalho coletivo e de corresponsabilização e presença. Trabalho artesanal. Intersetorial porque implica a articulação com diferentes áreas como Educação (Educação Inclusiva), Cultura, Trabalho (Economia Solidária), entre outros. Dizemos então que a Reforma Psiquiátrica é um processo complexo e a construção dessas redes é a maior complexidade." 

Por que continuamos a gritar: FORA VALENCIUS!

Deborah Sereno*, especial para os Jornalistas Livres 
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Desde a audiência em 10 de dezembro de 2015, com representantes de mais de 600 entidades e movimentos sociais, quando o Ministro da Saúde Dr. Marcelo Castro anunciou a nomeação de seu amigo, o psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho para o cargo de Coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, essas mesmas entidades, junto aos trabalhadores de saúde mental, usuários e familiares, estudantes e professores universitários de diversas áreas da saúde gritam de diversas maneiras em diferentes locais: “FORA VALENCIUS!”


A nomeação de Valencius Wurch ameaça (e ultraja!) seriamente a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Vale repetir seu lastimável currículo: Valencius foi diretor do maior manicômio privado da América Latina, a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. A instituição foi fechada judicialmente em 2012 por violações dos direitos humanos. Entenda-se com isso maus tratos físicos, práticas recorrentes de eletrochoque, falta de comida, falta de colchões, falta de roupas, internações de longuíssimas durações (décadas!), excesso de medicalização. Violações cujos efeitos eram (e ainda são) devastadores para os internos, cronificantes, de despersonalização, dessubjetivação, aniquilamento do sujeito. Basta um Google no nome da instituição e os relatos e imagens que se vê são aterradores. Aterradores e terrificantes como tudo o que já sabemos, já vimos ao vivo com nossos próprios olhos e no cinema, nos documentários, na literatura sobre os horrores dos manicômios. São verdadeiros campos de concentração.


Por isso usuários, familiares, trabalhadores da saúde mental, movimentos sociais, estudantes e professores universitários, gritamos nas ruas de diversas capitais, nas redes sociais, na ocupação dentro da sala da Coordenação de Saúde Mental em Brasília, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no Fórum Social Mundial em Porto Alegre e continuaremos a gritar até que ele saia: MANICÔMIO NUNCA MAIS! FORA VALENCIUS!


O Manifesto de Bauru, primeiro documento brasileiro a pedir a extinção dos manicômios e denunciar a estrutura opressiva destas instituições e a produção social da loucura foi elaborado durante o II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, em 1987. Com o slogan POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS! instituiu-se o 18 de maio como o Dia da Luta Antimanicomial, comemorado todos os anos em todo Brasil.


O passo seguinte, a tramitação da Lei Paulo Delgado (n.3657/1989), que dispunha “sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais”, tramitou por 12 anos no Legislativo, sendo duramente atacada pelo lobby formado por psiquiatras, professores de psiquiatria e diretores de hospitais psiquiátricos, entre eles o Dr. Valencius. Em entrevista ao Jornal do Brasil em junho de 1995, ele criticou “o caráter ideológico e não técnico” dos fundamentos da reforma, os quais se baseariam “em situações ultrapassadas”.


Como efeito dessa pressão, a Lei Nacional de Reforma Psiquiátrica 10.216/2001 que foi aprovada é uma modificação do projeto original. A Lei 10216 regula a Politica Nacional de Saúde Mental e “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. A progressiva extinção dos hospitais psiquiátricos preconizada na Lei Paulo Delgado, deu lugar à reorientação do modelo assistencial e manteve as estruturas hospitalares como um dos recursos integrantes desse modelo. A Lei 10216 garante os direitos dos usuários de saúde mental, regula as internações involuntárias e compulsórias e visa ao tratamento extra-hospitalar, em liberdade, de base comunitária, no território, como política pública de saúde mental do SUS. A rede de serviços substitutivos de pequena e média complexidade para atendimento psicossocial no território, criada desde então, tem reconhecimento internacional por instituições como OMS, OPAS e serve de referência para outros países. A eficiência dessa rede é atestada pela profusão de trabalhos acadêmicos e científicos sobre o tema e mantém seu vigor pela força da militância e pelo esforço dos trabalhadores, usuários e familiares, os que mais reconhecem seus benefícios.


São conclusões baseadas em muito trabalho. E é importante que se fale dos trabalhadores de saúde mental: equipes interdisciplinares compostas por profissionais de saúde como terapeutas ocupacionais, psicólogos, fonoaudiólogos, psiquiatras, pediatras, fisioterapeutas, educadores físicos, oficineiros, enfermeiros, assistentes sociais e apoiadores, trabalhando em pé de igualdade. São as equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) que, instalados em números ainda insuficientes mas em pontos estratégicos da cidade, atendem demandas de saúde mental e de uso abusivo de álcool e outras drogas de crianças, jovens e adultos. São os CAPS também que apóiam e articulam a rede de cada usuário junto às equipes das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e aos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF) da Estratégia Saúde da Família (ESF), esses últimos na atenção básica. Vale citar o trabalho dos agentes comunitários de saúde, que batem de porta em porta todo mês em todas as casas para oferecer cuidado no território que ele próprio habita e sabe no corpo o que é viver ali. Também digno de menção, é o trabalho das equipes de acompanhantes comunitários das residências terapêuticas, que apoiam e participam da construção de cotidianos e das formas de morar de pessoas que passaram décadas nos manicômios. E por fim, as equipes de redutores de danos, que não se furtam, por exemplo, a entrar num cano, literalmente, para atender o jovem casal que vive ali, usuário de drogas, ela grávida. E não é que a equipe entra lá para tirá-los à força e colocá-los em alguma instituição onde ficarão trancados. Entram lá para saber se precisam de alguma coisa, se eles estão bem. Voltam noutro dia. E no outro… Isso é cuidado, vínculo, processo, construção de redes de referência, de apoio, de solidariedade, exatamente na direção oposta do confinamento e do isolamento promovido pelas internações em hospitais psiquiátricos.


Trabalhar no território é ir para a rua construir possibilidades de produção de vida para uma população extremamente vulnerável, significa um trabalho coletivo e de corresponsabilização e presença. Trabalho artesanal. Intersetorial porque implica a articulação com diferentes áreas como Educação (Educação Inclusiva), Cultura, Trabalho (Economia Solidária), entre outros. Dizemos então que a Reforma Psiquiátrica é um processo complexo e a construção dessas redes é a maior complexidade.


Com isso reconhecemos que ainda há muito a se fazer, desafios. Há também uma infinidade de tensões e conflitos de interesses em seu campo, tais como o subfinanciamento, a falta de investimento em novos serviços (é urgente a criação demais CAPS, mais Serviços Residenciais Terapêuticos, mais leitos em hospitais gerais); a precarização dos serviços, consequência do subfinanciamento; o cuidado com a saúde dos trabalhadores e das equipes; a gestão por Organizações Sociais (OS) e os diferentes modelos de cada OS, muitas vezes conflitantes com os objetivos da Reforma;a volta dos manicômios disfarçados de comunidades terapêuticas para tratamento de usuários de álcool ou outras drogas; as ameaças de retrocesso promovidas pela associação brasileira de psiquiatria e diretores de hospitais psiquiátricos inconformados com esta política antihospitalocêntrica e antimedicocêntrica.Preferimos mil vezes os conflitos, as tensões e as divergências de posições à verdade absoluta e o consequente silenciamento de vozes. Buscar soluções a esta pauta enorme (e há ainda outras, como a formação do trabalhador de saúde nas universidades, e mais…), dar lugar a isso, é disto que precisamos para seguir avançando ainda mais na consolidação desta politica publica. O momento é de avançar e não de recuar! Por isso gritamos: NÃO HAVERÁ RETROCESSO! FORA VALENCIUS!


* Deborah Sereno é Psicanalista, docente do Curso de Psicologia da FAHCS/PUCSP; doutoranda do Depto Psicologia Social PUCSP; Supervisora do Programa QUALIFICACAPS MS (2014-1015) sereno.deborah@gmail.com

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