PICICA: "O título sugestivo de “O olho e o
espírito”, último ensaio de Maurice Merleau-Ponty, escrito em 1960, nos
dá pistas para o objeto de sua investigação. Que tipo de relação podemos
estabelecer entre “o olho e o espírito”, ou, igualmente, entre “ver e
pensar”, especialmente em nossa tentativa incessante de atingir o “ser”
das coisas? O que representa a pintura quando pensamos nessa tentativa,
que é (ou parece ser) a de todas as artes e ciências? O que significa,
por fim, ver?"
Maurice Merleau-Ponty: o que significa “ver”?
O título sugestivo de “O olho e o
espírito”, último ensaio de Maurice Merleau-Ponty, escrito em 1960, nos
dá pistas para o objeto de sua investigação. Que tipo de relação podemos
estabelecer entre “o olho e o espírito”, ou, igualmente, entre “ver e
pensar”, especialmente em nossa tentativa incessante de atingir o “ser”
das coisas? O que representa a pintura quando pensamos nessa tentativa,
que é (ou parece ser) a de todas as artes e ciências? O que significa,
por fim, ver?
Em geral, a ciência tem tratado dos
assuntos que lhe dizem respeito com uma distância que a caracteriza
enquanto tal. Ela “manipula as coisas e renuncia a habitá-las”, isto é,
ao mesmo tempo em que aborda seus objetos de estudos com esta distância,
aborda-os como se eles estivessem predestinados às possibilidades de
nosso conhecimento, “ao mesmo tempo como se ele [pensamento científico]
nada fosse para nós e estivesse no entanto predestinado aos nossos
artifícios”[1].
A ciência moderna, contudo, é muito mais
“flexível” e pode-se dizer que esta, de certa forma, não esqueceu suas
origens se comparada à ciência clássica, que em seu exercício buscava
algo de transcendental. Ela passou a ser muito mais crítica em relação a
si mesma e a seus métodos, e a entender-se como produto de um mundo
preexistente. Para Merleau-Ponty, a ciência não pode, em sua busca por
compreender as coisas em si mesmas, se desvencilhar de um mundo dado,
sensível e percebido por um corpo; “não esse corpo possível que é lícito
afirmar ser uma máquina de informação, mas esse corpo atual que chamo
meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e meus
atos”[2]. Isto é, não um corpo ideal e potencialmente onisciente, mas o corpo real e tangível.
Na pintura, contudo, essa interação com o
mundo que se dá por intermédio do corpo faz-se muito mais evidente,
pois “é oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em
pintura”[3].
É fato que não há pintura sem pintor; ainda assim, o pintor não é este
observador distante que se prosta frente ao visível. Em um quadro,
sujeito e objeto se fundem. Ambos estão imbricados, o que faz com que a
visão de algo, como a de uma paisagem por um pintor, não seja um tipo de
“representação do mundo”, como diz o autor, mas sim certo movimento do
observador em direção ao mundo com o qual ele coexiste.
Consequentemente, ao perceber o mundo, percebo-me. Não observo
as coisas com distância: estou fundido a elas e elas a mim. “Digo de uma
coisa que ela é movida, mas, meu corpo, ele próprio se move, meu movimento se desenvolve.”[4], e esta é uma qualidade própria do ver.
E, ainda a propósito da pintura, não a observamos de longe (ou pelo
menos não deveríamos). Mesmo a interação mais ingênua e despretensiosa
de alguém com uma obra acontecem por meio do corpo que percebe todas as
suas qualidades.
É por esta razão que a pintura não pode
ser universal: porque nenhuma de suas tentativas captará as coisas em si
mesmas, e sim suas particularidades, percebidas sempre por intermédio
do artista, o que faz com que cada obra produzida não seja um progresso
ou um retrocesso de nossa busca em direção ao ser, mas sempre uma fração
nova de um todo inapreensível em si mesmo.
O pintor é, portanto, aquele que mais propriamente consuma o ato de ver,
já que é por meio desta interação com os objetos de sua pintura, com
este permear as coisas e deixar ser permeado por elas, que ele dá luz à
sua arte, visão única de um corpo único em interação inevitável com o
mundo. Por isso Merleau-Ponty expressa tanta admiração pela obra de
Cézanne, pintor francês do século XIX: pois, tendo ficado conhecido por
pintar diversas vezes a mesma montanha Sante-Victoire e por explorar
possibilidades absolutamente novas da cor e da perspectiva, ele parece
ser aquele que melhor captou a relação de movimento entre os corpos
observador e observado, retratando “o instante do mundo”.
Referências
[1] ↑ MERLEAU-PONTY, M., O olho e o espírito – Cosac Naify, 2004, p.15.
[2] ↑ O olho e o espírito… p. 17.
[3] ↑ O olho e o espírito… p.18.
[4] ↑ O olho e o espírito… p.19.
[2] ↑ O olho e o espírito… p. 17.
[3] ↑ O olho e o espírito… p.18.
[4] ↑ O olho e o espírito… p.19.
***
Artigos populares parecidos
Fonte: COLUNAS TORTAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário