fevereiro 02, 2016

Maurice Merleau-Ponty: o que significa “ver”? (COLUNAS TORTAS)

PICICA: "O título sugestivo de “O olho e o espírito”, último ensaio de Maurice Merleau-Ponty, escrito em 1960, nos dá pistas para o objeto de sua investigação. Que tipo de relação podemos estabelecer entre “o olho e o espírito”, ou, igualmente, entre “ver e pensar”, especialmente em nossa tentativa incessante de atingir o “ser” das coisas? O que representa a pintura quando pensamos nessa tentativa, que é (ou parece ser) a de todas as artes e ciências? O que significa, por fim, ver?"


Maurice Merleau-Ponty: o que significa “ver”?



Merleau-Ponty, 1908 - 1961. Imagem: The Montreal Review.
Merleau-Ponty, 1908 – 1961. Imagem: The Montreal Review.

O título sugestivo de “O olho e o espírito”, último ensaio de Maurice Merleau-Ponty, escrito em 1960, nos dá pistas para o objeto de sua investigação. Que tipo de relação podemos estabelecer entre “o olho e o espírito”, ou, igualmente, entre “ver e pensar”, especialmente em nossa tentativa incessante de atingir o “ser” das coisas? O que representa a pintura quando pensamos nessa tentativa, que é (ou parece ser) a de todas as artes e ciências? O que significa, por fim, ver?

Em geral, a ciência tem tratado dos assuntos que lhe dizem respeito com uma distância que a caracteriza enquanto tal. Ela “manipula as coisas e renuncia a habitá-las”, isto é, ao mesmo tempo em que aborda seus objetos de estudos com esta distância, aborda-os como se eles estivessem predestinados às possibilidades de nosso conhecimento, “ao mesmo tempo como se ele [pensamento científico] nada fosse para nós e estivesse no entanto predestinado aos nossos artifícios”[1].

A ciência moderna, contudo, é muito mais “flexível” e pode-se dizer que esta, de certa forma, não esqueceu suas origens se comparada à ciência clássica, que em seu exercício buscava algo de transcendental. Ela passou a ser muito mais crítica em relação a si mesma e a seus métodos, e a entender-se como produto de um mundo preexistente.  Para Merleau-Ponty, a ciência não pode, em sua busca por compreender as coisas em si mesmas, se desvencilhar de um mundo dado, sensível e percebido por um corpo; “não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma máquina de informação, mas esse corpo atual que chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e meus atos”[2]. Isto é, não um corpo ideal e potencialmente onisciente, mas o corpo real e tangível.

Na pintura, contudo, essa interação com o mundo que se dá por intermédio do corpo faz-se muito mais evidente, pois “é oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura”[3]. É fato que não há pintura sem pintor; ainda assim, o pintor não é este observador distante que se prosta frente ao visível. Em um quadro, sujeito e objeto se fundem. Ambos estão imbricados, o que faz com que a visão de algo, como a de uma paisagem por um pintor, não seja um tipo de “representação do mundo”, como diz o autor, mas sim certo movimento do observador em direção ao mundo com o qual ele coexiste. Consequentemente, ao perceber o mundo, percebo-me. Não observo as coisas com distância: estou fundido a elas e elas a mim. “Digo de uma coisa que ela é movida, mas, meu corpo, ele próprio se move, meu movimento se desenvolve.”[4], e esta é uma qualidade própria do ver. E, ainda a propósito da pintura, não a observamos de longe (ou pelo menos não deveríamos).  Mesmo a interação mais ingênua e despretensiosa de alguém com uma obra acontecem por meio do corpo que percebe todas as suas qualidades.

É por esta razão que a pintura não pode ser universal: porque nenhuma de suas tentativas captará as coisas em si mesmas, e sim suas particularidades, percebidas sempre por intermédio do artista, o que faz com que cada obra produzida não seja um progresso ou um retrocesso de nossa busca em direção ao ser, mas sempre uma fração nova de um todo inapreensível em si mesmo.

O pintor é, portanto, aquele que mais propriamente consuma o ato de ver, já que é por meio desta interação com os objetos de sua pintura, com este permear as coisas e deixar ser permeado por elas, que ele dá luz à sua arte, visão única de um corpo único em interação inevitável com o mundo. Por isso Merleau-Ponty expressa tanta admiração pela obra de Cézanne, pintor francês do século XIX: pois, tendo ficado conhecido por pintar diversas vezes a mesma montanha Sante-Victoire e por explorar possibilidades absolutamente novas da cor e da perspectiva, ele parece ser aquele que melhor captou a relação de movimento entre os corpos observador e observado, retratando “o instante do mundo”.

Monte Sainte-Victoire (1887), Paul Cézanne.

Referências

[1] ↑ MERLEAU-PONTY, M., O olho e o espíritoCosac Naify, 2004, p.15.
[2] ↑ O olho e o espírito… p. 17.
[3] ↑ O olho e o espírito… p.18.
[4] ↑ O olho e o espírito… p.19.
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Fonte: COLUNAS TORTAS

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