Foto: Sabrina Norat, Auditório Silvério Tundis, 21.04.2006
Sentado ali no meio do auditório Silvério Tundis, do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, pouco antes do meio-dia do dia 21 de abril de 2006, fotografando a última dinâmica de trabalho conduzida pelo musicoterapeuta Alvano Mutz, quando todos cantavam Travessia, de Milton Nascimento e Fernado Brant, tive a convicção de que havíamos retomado o curso da história da Reforma Psiquiátrica no Amazonas, com uma diferença: enquanto em janeiro de 1980 o clima era de gravidade, pois havíamos denunciado o conluio entre corrupção administrativa e violência aos direitos humanos no único serviço público de saúde mental do estado, desta vez, em abril de 2006, havia alegria e muito entusiasmo com a proximidade da implantação do primeiro CAPS na cidade de Manaus.
Tal era a alegria que emanava de cada um dos mais de 100 participantes da Oficina de Trabalho para Recursos Humanos da Rede de Atenção Diária em Saúde Mental, todos cantando a canção mais emblemática de geração de Silvério Tundis e Humberto Mendonça, que não pude deixar de lembrar dos meus dois amigos. Foram mais do que colegas de turma na Faculdade de Medicina. Com eles vivi a mais forte relação de amor e ódio que companheiros dos mesmos ideais podem compartilhar no plano da existência pessoal e dos projetos coletivos da nossa época.
O paulista Humberto Mendonça morou na residência oferecida aos estudantes de medicina no então Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, época em que a Secretaria Estadual de Saúde usava a mão de obra gratuita dos universitários vindos de fora do estado, contratando-os a preço vil como plantonistas do velho manicômio. Foi o primeiro estudante a denunciar a precarização do serviço, a indiferença para com os portadores de sofrimento mental. Conheci-o antes disso. Cursamos juntos o terceiro ano do segundo grau no Colégio Dom Bosco, onde nos preparamos para o vestibular. Com ele fiz minha residência médica em psiquiatria na cidade de Diadema/SP, na Comunidade Terapêutica Enfance e no Instituto de Psiquiatria Social (junto com a Associação Mineira de Psiquiatria e o Sociedade Brasileira de Psicodrama, ambas foram responsáveis pela vinda de Franco Basaglia ao Brasil em 1978). Sua morte em 1981, em São Paulo, deixou um vazio insubstituível. Seu desaparecimento prematuro aconteceu às vésperas de visitar os amigos e familiares que moravam em Manaus (os irmãos Jorge e Luís, ambos médicos, até hoje residem no Amazonas), quando eu e Silvério usaríamos todo nosso poder de persuasão para que ele voltasse a fixar residência em Manaus, e, mais do que isso, se incorporasse ao projeto de humanização e democratização do hospital psiquiátrico (estávamos a 6 anos do surgimento da bandeira mais radical do movimento dos trabalhadores de saúde mental: criar uma sociedade sem manicômios). Juntos aprendemos os primeiros passos na fotografia. Juntos divulgamos o jornal da imprensa nanica "Movimento". Juntos fizemos explodir em palmas o III Congresso Brasileiro de Psiquiatria, ocorrido na cidade do Ceará, em 1976, numa conjuntura de passividade do setor de saúde mental, especialmente entre os medalhões da psiquiatria tradicional. Juntos fomos pedir à benção do "velho" psiquiatra Luís Cerqueira, livre docente da Universidade de Ribeirão Preto, a caminho da Comunidade Terapêutica fundada por Osvaldo Di Loreto (o primeiro conhecemos no referido congresso, quando ele desceu as escadas do Centro de Convenções de Fortaleza, para me cumprimentar depois da leitura de um verdadeiro manifesto escrito por Humberto Mendonça - uma carta intitulada "Contribuição Crítica dos Estudantes Brasileiros ao III Congresso Brasileiro de Psiquiatria" -, e que li para um auditório lotado: "Vim lhe cumprimentar, meu jovem. Acabei de dizer para um antigo psiquiatra, que não sabe o que os jovens desejam, que ia lhe cumprimentar pois por causa de filhos-da-puta como ele esse mundo não muda" - foram com essas palavras que fomos "batizados" por um dos mais corajosos psiquiatras que conhecemos em vida, e que desde os anos 60 denunciava que o hospital psiquiátrico brasileiro estava doente) . Com Humberto Mendonça - o Beto - aprendi a sonhar com uma outra sociedade, mais fraterna, mais justa e mais solidária.
Com o amazonense Silvério Tundis, em plena vida profissional, dividi os primeiros passos na implantação da Reforma Psiquiátrica no Amazonas. Também o conheci no mesmo curso preparatório para o vestibular. Narrar todos os acontecimentos que vivi com Silvério daria um livro. Inúmeras eram suas qualidades, a alegria, talvez, a maior delas. Transitava entre as gentes da esquerda à direita com desembaraço sem igual. Por ambas foi paparicado, e só levou na cabeça com os últimos, que até hoje se apropriam da sua memória, sem que isso enriqueça seu vasto currículo em prol das lutas sociais. Na greve de fome que fiz em 1987, quando se prenunciava a estagnação por que passaria a saúde mental no Amazonas, decidi com outros companheiros pela sua saída de Manaus em busca de apoio para a causa; tamíamos o assédio da direita a querer lhe cobrar o preço dos homens que encarnam papéis que nem um outro poderia fazê-lo sem comprometer seus ideais e sua ética. Foi a única vez que vivemos à distância o duro percurso da Reforma Psiquiátrica dos anos 80. Sua morte no início dos anos 90 deixou o Salgueiro sem seu mais amoroso brincante, mas, sobretudo, deixou todos os que lhe conheceram órfãos do seu bom humor e do seu amor à vida.
A data de 21 de abril de 2006, no calor do encontro de mais de uma centena de novos profissionais cuidadores de saúde mental, ficará para sempre na minha memória. Sentado no chão, no meio do auditório Silvério Tundis, ouvindo uma das mais belas canções de dois integrantes do Clube da Esquina, senti que estava em comunhão com os ideais dos meus amigos. Um sentimento de paz me tomou inteiramente, certo de que continuo a honrar a memória dos meus mortos queridos. Absorto em minhas memórias, quase não me dei conta do gesto mais afetivo de que fui alvo ultimamente: Jaime Benarrós, médico psiquiatra, que liderou todo e desenvolvimento da Oficina de Trabalho, vendo-me que estava em estado de transe, correu em minha direção, sentou-se ao meu lado no chão, e começou a chamar um a um dos velhos e novos companheiros de trabalho para dividir comigo o chão que outrora abrigou anônimos cidadãos em intenso sofrimento mental. Eu, que raramente apareço em fotografias, tive arrancada das mãos minha máquina fotográfica, e eis-me aqui, fotografado pela terapeuta ocupacional Sabrina Norat, num dos mais belos momentos da minha história na Reforma Psiquiátrica do Amazonas. Valeu, companheiros! A luta e a vida continuam.
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