Foto: Rogelio Casado, Urucurituba/AM, 1982
Uricurituba é a terra natal do médico psiquiatra Silvério Tundis (falecido), com quem dividi a responsabilidade em dar os primeiros passos na construção da Reforma Psiquiátrica no Amazonas, no final dos anos 70, início dos anos 80, quando aceitei sua indicação para assumir a direção clínica do então Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, no governo do Professor José Lindoso.
A seu pedido, no ano de 1982, na companhia da médica Ana Johnson, hoje residente em Brasília, rumamos para a nova Urucurituba. A cidade havia sido transferida por estar localizada num trecho de difícil navegação do caudaloso Rio Amazonas. Muitas vidas foram ceifadas na travessia do rio até a antiga sede do município. Humildes ribeirinhos que usavam como transporte frágeis canoas foram as principais vítimas.
A decisão de mudança da sede do município foi corajosa, porém uma tragédia foi substituída por outra. Explico-me. A nova cidade foi construída em cima de um cemitério indígena. Numa larga extensão do sítio onde a cidade foi edificada ainda era possível recolher os cacos de cerâmica indígena espalhados por todos os cantos, quebrados pelos tratores que fizeram o serviço de terraplenagem. Não foram poucos aqueles que, minimamente informados, derramaram lágrimas por um erro perpetrado por homens de uma época em que a ignorância andava de mãos dadas com indiferença à cultura dos povos que estão na base da formação ética das gentes que habitam a floresta.
Quando lá chegamos, com a intenção de realizar um trabalho de sensibilização cultural da sociedade civil e da sociedade política, nos foi contada uma incrível história de um menino visionário, através de quem foi localizada a primeira igaçaba (urna funerária indígena) das inúmeras contidas no sítio outrora sagrado onde os índios enterravam seus mortos.
O menino sonhava com uma irmã morta que pedia para ele cavar um buraco nos fundos da sua casa, justamente onde havia uma touceira de bananeira. Lá ele encontraria um objeto que continha um ancestral dos povos da região. O sonho recorrente não teve acolhida entre os familiares. Diante do descrédito, o menino passaria noites insônes e freqüentes estados febris. A mudança de comportamento inquietou os familiares. Convencidos de que o menino tinha fértil imaginação, deixaram para o tempo apagar - e não deixar vestígios na sua memória - tão exótico sonho.
Um dia o menino deixou de ir ao trabalho numa serraria, alegando mal-estar. Quando todos saíram para a lide diária extra-doméstica, correu para o quintal munido de uma enxada. Primeiro, desbastou a única touceira de bananeira existente no lugar, depois removeu-a inteiramente. Num dos golpes, um ruído diferente se fez ouvir. Alguma coisa se partira com a violência do golpe. Passou a cavucar com cuidado. Aos poucos foi surgindo o contorno arredondado de uma urna. O alvoroço do menino chamou a atenção dos vizinhos. Em pouco tempo uma multidão estava a admirar o precioso achado: uma igaçaba. Logo saberiam que ali estavam contidos os restos mortais de um índio em posição fetal, como é próprio dos rituais funerários da cultura indígena. Impossível conter os ímpetos da curiosidade animalesca que tomou conta da turba. Num gesto impensado, abriram a urna, que havia sido ferida de morte, e em pouco tempo os restos mortais do índio se desfez pela ação do oxigênio contido no ar.
Durante, muito tempo a urna, remendada em durepox, ficou exposta ao olhar público num tosco monumento (pequena cela com grade e cadeado) na principal praça da cidade, de frente para o majestoso rio Amazonas, num gesto tardio de recuperação da memória ultrada dos nossos ancestrais.
A partir daquela data, uma nova consciência brotaria entre urucuritubenses. Uma casa de cultura foi montada para recolher as urnas que iam surgindo na morada dos mortos daquele importante sítio histórico, além de outras peças do artesanato e dos utensílios indígenas.
Demorado, mesmo, foi a resposta das autoridades em preservar aquele patrimônio histórico. Graças à repercussão na imprensa amazonense à nossa visita à Urucurituba, as autoridades iniciaram o trabalho de recuperação e identificação da cultura que jazia nos subterrâneos daquele sítio arqueológico violado.
Por essa e por outras que o artista plástico Roberto Evangelista criou um dos mais belos vídeos sobre nossa cultura indígena, intitulada "Mater dolorosa". Nela, numa cena memorável, uma extraordinária revelação: no meio do Lago do Limão emerge a cabeça de uma família composta de três índios por entre 400 cuias que sobrenadam as águas tranquilas do lago. Eis um achado emblemático: nossa cultura está submersa, aos poucos ela sai do limbo a que estava relegada. Custa nada relembrar: todo dia é dia de índio.
Rogelio Casado
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