Caro amigo,
No início dos anos 90, desencantado com a cena política na área de saúde mental, entrei em licença para tratamento de interesse particular, sem ônus para o estado, e abri um restaurante na rua dos Barés, onde nasceram minha mãe Tereza, minhas tias Pátria e Luzitânia, eu e minha irmãs Elizabeth e Lilian, entre os anos 30 e a gloriosa década de 50.
O novo prédio em nada lembra a humilde casa dos meus avós maternos Antônio e Teresa de Jesus Barbosa, ambos de origem lusitana, ela doméstica, ele funcionário da prestigiada firma do comendador J.G Araújo.
A casa modesta - para sempre nas minhas lembranças da infância - se distinguia de todas as outras por uma particularidade: era a única que à noite exalava um enebriante perfume - levado pelo vento encanado a partir da cabeceira da rua vindo do bairro de Educandos -, capaz de ser sentido lá pelas bandas do Mercado Adolpho Lisboa. A origem do aroma devia-se a uma imensa touceira de jasmin que se debruçava pelo muro da casa da minha primeira infância, numa época em que ainda nem se falava na qualidade de vida proporcionada pelos jardins e flores da nossa flora.
Nesse lugar, inteiramente modificado, criei então um restaurante, cujos movéis e decoração foram concebidos por um querido amigo de infância, da comunidade da praça de Nossa Senhora dos Remédios, arquiteto João Bosco Chamma. Sucede que, a pedido de vários amigos, entre eles o jornalista Ignácio Oliveira, o barman Álvaro Bandeira, o multimídia Simão Pessoa e o filósofo Antônio Paulo Graça (falecido), resolvi criar, informalmente, um clube do jazz, com audição todas as terças-feiras à noite. A coisa pegou tanto que passei a abrir todos as noites o agora Bar e Restarante Patriamada (homenagem à minha amada tia Pátria, uma guerreira que não se deixou abater pela morte do pai e da mãe, e que em plena Segunda Guerra Mundial, quando genêros alimentícios eram escassos na cidade de Manaus, obrigando os mais humildes a se alimentar de carne de borrachos - filhotes de pombos - ela foi à luta montando a mais concorrida banca de tacacá da cidade, em frente à Faculdade de Direito, servindo por anos a fio quase três gerações da comunidade sírio-libanesa e portuguesa que residiam no entorno da Praça dos Remédios).
Imagine, querido amigo, uma região que durante o dia havia intensa movimentação de cargas para as embarcações do porto de Manaus, e que à noite tinha o silêncio quebrado por jazz, blues e bossa nova. Imagine, ainda, qual foi a primeira audição do Bar e Restaurante Patriamada: a divina Billie Holiday. Passavam das 6 e meia da tarde. O comércio havia fechado, o azul sumira do céu. As flores de jasmin não mais existiam, mas a voz melodiosa de Lady Day ecoava por quase toda a extensão da rua da minha infância, aguardando os apreciadores da boa música (sem desmerecer gênero algum).
Hoje, quando Nivya, Juan e eu tomamos café degustando um delicioso xis-caboquinho e ouvindo a divina Billie Holiday, que aniversariou no último dia 7 - dia do jornalista, dia mundial da saúde e dia do aniversário do seu programa "Momentos de Jazz" (What a lovely day!!!) fiquei a pensar na sua alegria pessoal, logo mais à noite, quando você levará ao ar o primeiro programa de "Momentos de Jazz", em seu décimo primeiro ano.
Quero mandar um afetuoso abraço, e o desejo de que você continue, com alegria, a deleitar todos seus ouvintes. Um programa de rádio que está a 11 anos no ar dá mais dignidadade à sociedade onde ele é produzido.
Quero aproveitar e recomendar aos que lerem essa carta para navegar no seu blog
( www.humbertoamorim.blogspot.com ) e se deleitarem, como esse velho militante das causas impossíveis, o belo exemplo de cidadania dado por Billie Holiday, exemplo que mudou para sempre a história da vida civil dos norte-americanos). Textos como o que você escreveu é que me faz aumentar a admiração pelo querido amigo.
Rogelio Casado, jazzófilo, bluseiro, bossa-novista, e roqueiro, que ninguém é de ferro.
Um comentário:
Meu caríssimo Rogélio,
Li e reli a carta-artigo que a mim dirigistes e quero que saibas que desta me considero orgulhoso dono, embora seja impossível impedir que seja compartilhada com outrem, tal qual o louco de Pireu na Atenas clássica, que se reclamava dono do porto e de todas as embarcações que o demandavam. Não importava que só tivesse na vida um cantinho qualquer para se abrigar, porquanto aquela posse ilusória valia mais que todo tesouro de Antictonia.
Graças a ti e a generosidade de tuas palavras sou agora também o novo louco de Pireu.
Postar um comentário