Os amazonenses, e os brasileiros de modo geral, correm o risco de não conhecer esse documentário comprometido com a minha e a tua vida se as empresas de comunicação não manifestarem interesse na sua exibição.
A coisa é tão grave que mereceu um artigo do meu compadre e amigo José Ribamar Bessa Freire, o imortal criador da Coluna Taquiprati, publicada aos domingos no jornal Diário do Amazonas. Se você precisa de mais um argumento para compreender a gravidade da situação, ouça o que disse uma professora da UERJ, de passagem por Manaus, ao estilo bem brasileiro: "A Suez (empresa beneficiada com a privatização da água no Amazonas) chegou por aqui?... Vocês estão f...".
Caramba! O filme do Jorge Bodanski "Iracema" foi proibido no Brasil na época do regime militar, fez o maior sucesso na Europa, e só depois foi aclamado por público e crítica em terras tupiniquins. "L'acqua invisibile" foi bem recebido na Itália. Quando virá para Brasil? Alôôôô, TVs Culturas!... Alôôô, jornalistas do meu Brasil! Hoje estão privatizando as águas do Amazonas, amanhã suas cidades poderão ser as próximas vítimas. Quem se habilita a colocar os autores do filme em contato com as TVs públicas brasileiras?
Saiba mais lendo a sinopse do filme e um artigo inédito de Andrea Palladino escrito para o jornal "Il Manifesto". Acesse o site do "L'acqua invisibile" e veja trechos do filme.
FICHA TÉCNICA
Direção, fotografia e edição: Andrea Palladino e Astrid Lima
País de produção: Itália/Grã Bretanha
Produção: Boker Media Agency Ltd. e Associazione Liblab
Ano produção: 2005
Duração: 58 minutos
Formato original: HDV (1080i)
Músicas: Il sesto continente, de Carlo Micheli / Porto de lenha, de Aldisio Filgueiras e Torrinho
Sinopse
Manaus é a capital geográfica e cultural da Amazônia brasileira. Está situada no encontro dos rios Negro e Amazonas que formam a maior bacia de água doce do mundo. Em Manaus 300.000 pessoas estão vivendo há anos uma paradoxal emergência hídrica: a distribuição da água - privatizada no ano 2000 - alcança somente os bairros centrais e residenciais e a água potável custa mais que na Europa.
História
Em 2005 a Câmara Municipal de Manaus decidiu de abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito para indagar sobre os motivos da falta de água na cidade. A companhia privada responsável da gestão na capital amazonense, "Águas do Amazonas" do grupo francês Suez, declara que os investidores decidiram reduzir os fundos destinados à expansão da rede. A mesma companhia apresentou um pedido de revisão dos termos do contrato de concessão onde solicitava ao Estado cobrir boa parte dos investimentos necessários. Na cidade, no entanto, aumentam as doenças ligadas ao uso de água não tratada (quem não recebe água em casa é obrigado a utilizar poços não controlados), muitas famílias se colocam em fila na frente dos poços enquanto outras enfrentam contas astronômicas (mais de 100 euros ao mês em alguns casos). Como sair dessa situação? A cidade de Manaus realiza um modelo europeu de privatização que não pode funcionar em um país em via de desenvolvimento, onde ao lado de um forte crescimento demográfico encontramos uma das piores distribuição de renda do Brasil. Porto de lenha tu nunca serás Liverpool: cada cidade, cada cultura deve encontrar na própria história, na própria cultura, os recursos e a projetualidade para responder aos desafios da globalização.
Autores
Astrid Lima - brasileira, apresentou, produziu e dirigiu diversos programas televisivos. Em 1992 venceu os prêmios Profissionais do Ano da rede Globo (Brasil), Galo de Ouro no Festival de Gramado (Brasil) e Leão de Bronze no International Advertising Festival di Cannes (França) com o spot "Burning Flag" sobre a destruição da floresta amazônica
Andrea Palladino - italiano, estudou direção e roteiro em Roma e Paris. Formou-se como documentarista em "Ipotesi Cinema" de Ermanno Olmi. Realizou diversos documentários na Itália e no Brasil, onde fez parte da Associação Brasileira de Vídeo Popular.
Produção
Boker Media Agency - sociedade de produção criada em 2005, com sede em Londres. "Água Invisível" faz parte de um projeto de produção de documentários sobre a geopolítica da água.
Associação LibLab - é coprodutora de Água Invisível.
Quanto pode valer a água na maior bacia de água doce do mundo? Para os habitantes de Manaus, cidade com a face voltada para a gigantesca massa de água do encontro dos rios Negro e Solimões, o acesso ao "ouro azul" custa caro. Mais caro de quanto paga um habitante de Roma. Desde que a distribuição da água foi dada em concessão à Suez - em junho de 2000 - os moradores de uma das maiores cidades amazônicas pagam até 40% a mais de muitos cidadãos europeus. E, em muitos casos, a água não chega nas casas: deve ser carregada cada manhã em camburões dos poços artesianos e transportada por crianças, mulheres e anciãos, por quem tem algumas horas de tempo para enfrentar filas e gincanas entre estradas arruinadas.
Sobre 1.600.000 habitantes, cerca de 300 mil não têm acesso à agua, que chega sobretudo a quem tem possibilidades de pagá-la e onde já existia uma estrutura de distribuição. Eram os anos da privatização dos serviços públicos quando o então governador Amazonino Mendes,
ordenando que a Assembléia legislativa fosse circundada por policiais, aprovou a lei que transformou a distribuição da água em um business, sobre o Rio Amazonas.
"Naqueles anos, um real valia quanto um dólar - explica Samuel Hanam, ex vice-governador - e as empresas estrangeiras eram atraídas pela perspectiva de investir no Brasil". A privatização caiu imediatamente sobre os serviços essenciais que, em um país de 179 milhões de habitantes em forte crescimento, é uma torta particularmente apetitosa. Manaus havia uma companhia de água publica conhecida desde sempre pela sua crônica ineficiência: privatizar, na época, significou criar na população a expectativa por um serviço melhor.
"Ter uma companhia pública em pessimas condições fazia parte do jogo - recorda Eron Bezerra, deputado do PC do Brasil. Os políticos neo-liberais desmantelaram o serviço público para facilitar a chegada das companhias privadas". Para a Suez foi um bom negócio: a companhia
de água - depurada dos débitos - foi comprada por 193 milhões de reais, em contraste com o valor contábil estimado em 480 milhões.
Um bom negócio para a classe politica
A Suez afirma não ter mais possibilidade de investir e, portanto, não poder alcançar os objetivos de cobertura da população indicados no contrato de concessão. O Estado, por outro lado, não pode investir visto que a multinacional francesa adquiriu o monopolio por 45 anos. Além disso a situação da rede de esgosto (também incluída no contrato de concessão) é dramática: menos de 10% da população é ligada ao sistema que, em boa parte, é ainda aquele construído pelos ingleses um século atrás. As doenças relacionadas à água (verminose, malária, dengue, hepatite A e infecções gastro-intestinais) aumentaram e preocupam cada vez mais os médicos locais.
O município, renovado dois anos atrás e guiado por um prefeito apoiado pela esquerda, tentou entender o que não funcionou no processo de privatização deixado em herança pela administração precedente. Durante a audição na Comissão de Inquérito Parlamentar promovida pela Câmara dos Vereadores, o presidente de "Águas do Amazonas" explicou como a Suez tenha considerado estratégico melhorar a qualidade da água, investindo na reestruturação das estações de tratamento (ETA). Nesse sentido os investimentos existiram, o sistema de tratamento foi melhorado pela Degremont, sociedade - sempre do grupo Suez - que se ocupa de instalações de potabilidade. No entanto, o objetivo de cobertura da quase totalidade da população explicitamente prevista no contrato não poderá ser alcançado, afirmou claramente o representante da Suez.
Fernando Paraguassu - presidente de Águas do Amazonas - na realidade vai muito além, afirmando que os verdadeiros problemas são para a própria empresa, que, na realidade, teria sido "enganada": "É como quando se compra um carro de segunda mão... as vezes se encontram
problemas que não se esperavam". A Suez acusa explicitamente o Estado do Amazonas de haver fornecido, na época da venda, dados não verdadeiros, que não refletiam a realidade da cidade. Quem percorre as ruas periféricas de Manaus - mesmo sem ser um experto de infra-estruturas e redes hidrícas - percebe perfeitamente que se trata de uma cidade em forte expansão, com uma dicotomia social terrível, com zonas de grande pobreza e de degradação urbana e social. Ora, então é possível que uma empresa consolidada e experta como a Suez se tenha deixado "enganar" pelo governo do Estado do Amazonas?
Para entender o que está por trás dessa estratégia aparentemente perdida da multinacional francesa precisamos voltar ao início de 2005 quando Águas do Amazonas finalmente mostrou as próprias cartas, apresentando ao município de Manaus um projeto de revisão do contrato
de concessão. A palavra de ordem é PPP, Parceria Público-Privado. Em 2002 o presidente da Suez, Gèrard Mestrallet, apresentou ao então presidente da Comissão Européia, Romano prodi, um "Apelo para uma verdadeira batalha da água": "Somos contra a privatização desse bem
natural e propomos às instituições públicas de criar ações conjuntas". Águas do Amazonas segue hoje essa linha, propondo ao poder público no Brasil de encarregar-se dos investimentos necessários para a expansão das redes de distribuição da água e do sistema de esgosto. Será papel da empresa privada, por outro lado, administrar as estruturas e recavar os lucros. Além disso, para evitar eventuais problemas em relação à qualidade do serviço, a Suez propõe de dividir a cidade em duas áreas: a área "consolidada", onde a água distribuida será potável e a área de "expansão" (isto é, boa parte da periferia) onde o respeito pelas normas de potabilidade não poderá ser garantido. Uma espécie de apartheid social da água.
O problema da água em Manaus - como em toda a América Latina - é, nesse aspecto, uma questão social e não mais econômica ou tecnológica. A água é um indicador de status: se é potável significa que foi paga, que se está no estreito grupo "consolidado". Se, ao contrário, se mora na periferia, ganhando um salário mínimo e não podendo se permitir de pagar contas que muitas vezes chegam a dezenas de euros ao mês, a água se transforma em um bem impossível de ser usada e provavelmente é veículo de doenças muitas vezes mortais.
O papel da sociedade civil
O modelo Suez de gestão da água prevê também - no âmbito da Parceria Público Privado - a participação da sociedade civil. Com um projeto que consentiu de vencer o World Business Award nos anos passados, a multinacional francesa se põe aos olhos da opinião pública como um modelo de business social. Uma publicação do World Business Council for Sustainable Development (organização formada por 180 empresas multinacionais com sede na Suíça) explica nos detalhes o modelo proposto pela Suez, fazer negócio com os pobres: " Trata-se estritamente de negócio, de novos negócios e de novos mercados, negócios os quais beneficiam os pobres e as empresas" (Haciendo negocios con los pobres. Una guia de campo, Wbcsd 2004). E como se faz negócios com os pobres no mercado da água? O caso Suez/Manaus é citado como exemplo. No ano 2002 - entendendo que somente com o consenso e a participação direta da população era possível fazer negócio com a água nas zonas mais pobres - a Suez, junto com a ong "Essor" e a cooperação francesa, criou uma associação de moradores em um dos bairros mais pobres da cidade. A associação se ocupa da distribuição das contas de água, do recolhimento de dados dos novos clientes, de convencer quem tem dívidas acumuladas com a companhia a tentar pagar através de prestações, de mediar todas as situações que possam criar problemas. Em troca a associação recebe 2% do faturado efetivamente pagado na zona. Em outras palavras, é o teu vizinho quem vira representante da companhia de água e quem te convence que é justo pagar.
A Suez cita o projeto como exemplo: mediante um fornecimento de 12 metros cúbicos de água por mês a cada família a conta tem um valor fixo de 16 reais. Na realidade a água fornecida à população do Mauzinho é decisivamente superior (pelo menos 50 metros cúbicos) mas a
companhia fecha um olho, visto que a experiência cobre relativamente poucas famílias. O projeto vira, desse modo, a demonstração de que fazer negócio com os pobres convêm a todos: a partir do momento que são os próprios cidadãos a distribuir as contas (e a ganhar em percentual) a taxa de inadimplência caiu abaixo da média. É também verdade que a associação incentiva a população a denunciar o vizinho em casos de "gatos". Um verdadeiro negócio mas não para os pobres.
Andrea Palladino
Publicado no jornal "Il Manifesto" - 10/03/2006.
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