EQUÍVOCO DA TROPA
Edmar Oliveira
Vi uma entrevista do José Padilha na TV em que ele dizia ser um cidadão politicamente inviável: - " Fui acusado de ser radical de esquerda em '174', por fazer o filme do ponto de vista do bandido. Agora sou acusado de radical de direita por 'Tropa de Elite".
Não concordo com este julgamento. Padilha é viável como um radical do cinema-documento. Ele e seus pares, destacando Marcos Prado na produção desse filme e que foi o cineasta-verdade do cortante "Estamira", são responsáveis por boa parte da safra preciosa do cinema nacional contemporâneo. O cinema deles é bom. Este é um ponto.
Agora, Padilha, obra de arte é coisa sobre a qual não se tem controle. Depois que ela cai na boca do povo é que ressoa no autor reformada ou deformada como um corpo estranho. Na música, por exemplo, a linda "Sabiá", de Chico e Tom Jobim, foi vaiada no papel de uma canção alienada, no momento que se estava precisando contestar a ditadura. "Pra não dizer que não falei das flores", do Vandré, virou uma bela canção de liberdade, apesar da pobreza melódica em tom de canção marcial. Brigas da arte com o seu tempo. No cinema, Clint Eastwood, ao levar seu cowboy, bem formatado por Sergio Leoni, para a São Francisco do século XX, no personagem Dirty Harry, colou sua mensagem no justiceiro durão. Bem ao gosto do público americano, que aplaudiu também o canastrão Charles Bronson ou o bom ator Bruce Willis travestidos em coisas do tipo "Duro de Matar". Só depois que escapou desta "aprovação popular", na qual o personagem era mais importante que o filme e o ator, Eastwood é reconhecido como um mestre da direção em clássicos como "Os Indomáveis", "Entre Meninos e Lobos" e "Menina de Ouro". O problema do "Dirty Harry", que teve continuações, era a "mensagem" do personagem que interessava ao público muito mais que a obra e o ator.
Parece que autores e atores de "Tropa de Elite" foram surpreendidos por esta mensagem da força do Capitão Nascimento. Famosa é a declaração de Vagner Moura, que sentiu náuseas com sabor do pastel de cordeiro da festa de estréia, por se dar conta de que as barbaridades do seu personagem excitavam a platéia. Padilha declarou que, na sua escala de valores éticos, a tortura é pior que a corrupção. Mas o filme faz sucesso aí, no "Dirty" Nascimento. E não importa se Bruce Moura ou Vagner Bronson, o público tirou da tela, para dar vida própria, foi o "Nascimento Duro de Matar". E a partir deste momento, o filme deixa de ter importância como obra de arte e passa a ser apenas um veículo para uma discussão política e social.
Ninguém se deu conta que tinha uma multidão desejosa de um herói do tipo Nascimento. E ele nasceu para delírio e gozo da tropa de equívocos, vítima e algoz da falta de segurança desta grande metrópole. O Capitão fala na primeira pessoa: faz uma ilação simplória entre ONGs e intelectuais com o tráfico; separa os corruptos dos justiceiros durões; acha inevitável para a segurança de uns, ser necessária a insegurança de outros (os da zona do conflito, os mais pobres); entende que se a culpa é evidente, o justiçamento se justifica; a tortura pode ser usada para manifestar a evidência. Enfim, Moura dá vida a um Capitão do Bope, com sua visão idiossincrática da realidade. O problema é que ele sai da tela, toma vida e representa uma tropa sedenda de justiça rápida, mesmo que alguns erros possam ser cometidos. Ainda mais que estes erros não são tão graves, pois há indícios de relações: quem mora na favela conhece o tráfico, quem usa drogas ou não se importa permite o tráfico. No fundo, eu e o Nascimento estamos livres destas relações perigosas e protegendo a sociedade de iguais a nós. Caveira!
Agora, incidindo no mesmo erro dos que acham o filme bom por gostarem do Nascimento, há, no outro extremo, quem ache o filme ruim por discordarem do personagem. E estes não vêem o ator, que é muito bom, nem o filme, obra digna de um grande cineasta. O julgamento da direita e da esquerda não está na tela. As duas saíram do filme para brigar na platéia. E é claro que aqui fora precisamos de posições firmes do diretor e dos atores sobre as conseqüências do filme, no papel do cidadão politicamente viável. Separando o filme das conseqüências.
Estamos numa encruzilhada. O ovo da serpente está no ninho. O filme pode contribuir para a discussão do problema e ajudar a mostrar o equívoco do Capitão Nascimento. Como um bom filme, que mostrou esse equívoco simplista da resolução de problemas complexos pela via da repressão policial. Ou se deixar levar pelo personagem e seu sucesso e fazer o nascimento da serpente da vingança, com continuações indecorosas para a TV. São as conseqüências fora da tela que vão determinar os papéis do filme no imaginário do presente momento político. Estes papéis, que podem ser assumidos no presente, em nada abalam a consistência da obra de arte no futuro, afinal "O Nascimento de uma Nação" de Griffith, cinematograficamente é muito bom... (e com trocadilhos, por favor).
06/10/2007
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A cultura brasileira, representada por duas obras-primas
''O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias' mostra a ditadura por um garoto; em 'Tropa de Elite', o Brasil de hoje
Jurandir Freire Costa* - Estadão
SÃO PAULO - Dois filmes brasileiros, O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, e Tropa de Elite, de José Padilha, candidataram-se a representar o Brasil na competição pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. O primeiro foi escolhido, dividindo as opiniões divulgadas pela mídia.
Deixo a quem compete o trabalho de dizer qual deles dispõe das qualidades técnicas e artísticas com mais chances de premiação. De minha perspectiva, importante é discutir a imagem da cultura brasileira apresentada pelos dois. Desse aspecto, julgo que ambos sejam extremamente bem-sucedidos.
No filme de Cao Hamburger, o Brasil dos anos 70 é visto pelo olhar de um garoto, cujos pais são obrigados a fugir da repressão policial no período da ditadura militar. A criança deveria ser deixada com o avô, que, nesse entretempo, morre. Sozinho e sem ter a quem recorrer, o menino é cuidado pela comunidade judaica, à qual o avô pertencia. No final, a mãe retorna. O filme dá a entender que tanto ela quanto o marido haviam sido torturados e o último havia morrido. O menino é exilado com a mãe e, ao se despedir carinhosamente dos que o ajudaram - em especial do velho vizinho do avô, figura central no enredo -, pensa em off que "ser exilado é ter um pai que se atrasa tanto, tanto, que nunca chega".
Tropa de Elite, ao contrário, mostra o Brasil de hoje. Precisamente, o Rio de Janeiro de 1997, por ocasião da visita do papa João Paulo II. O pano de fundo é totalmente diverso: favelas, tráfico de drogas, corrupção policial e, por fim, as entranhas do Bope, a tropa policial de elite que dá título ao filme. Se o inferno tivesse alguma feição, com certeza seria algo semelhante ao que o diretor nos faz ver.
Realidade
Nos guetos marginais das favelas, miséria socioeconômica e miséria moral dão-se as mãos na corrida desenfreada de delinqüentes e policiais para provar quem consegue ser mais violento. Tortura, sanguinolência, delação, falta de escrúpulos, tudo fede à mais estúpida desumanidade.
José Padilha não poupa talento e recursos dramatúrgicos para deixar-nos cara a cara com o que de mais macabro produzimos em matéria de desrespeito à vida e à dignidade da pessoa. Instituições falidas e indivíduos desencantados debatem-se como moscas tentando escapar da maligna teia de destruição que se contrai e os tritura de forma inexorável. É o lado do Brasil cronicamente inviável, fluindo num jorro de imagens que comovem, dão repulsa e fazem pensar.
A pergunta é inevitável: o que nos aconteceu entre 1970 e 2007? Várias hipóteses podem ser levantadas. A que mais facilmente vem à tona é de ordem político-econômica. Perdemos, afirmam alguns, as aspirações da geração 1968. Nosso destino histórico foi entregue à sede de lucros materiais e o resultado veio a galope: individualismo à outrance, consumismo, cinismo, evasão pelo entretenimento e adoração drogada do próprio corpo.
A tese é discutível em alguns pontos, mas, certamente, há algo de verdade na explicação. A decadência da política - numericamente controlada por parlamentares que agem como mafiosos -, o endeusamento irracional da economia e a presença intrusiva da moral do espetáculo na vida cotidiana contribuíram, em muito, para o aparente aumento da insensibilidade em face do bem comum ou das carências do próximo.
José Padilha, entretanto, vai adiante. Quaisquer que tenham sido as causas da mudança, mostra ele, o efeito cultural foi além do imaginável. A desagregação da hierarquia dos valores éticos lesou o cerne da pessoa moral, ou seja, a capacidade que devemos ter de decidir entre o certo e o errado e dar sentido à própria vida. Em O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, os rivais políticos sabiam por que matavam e morriam.
Antecedentes
Os defensores da ditadura achavam que torturar e assassinar dissidentes significava proteger o Brasil do perigo comunista; os partidários da democracia ou do socialismo, por seu turno, queriam restaurar o Estado de Direito democrático ou realizar a revolução. Na bela metáfora da ida para o exílio, posta na boca do garoto, isto fica patente.
A esperança de um mundo melhor confundia-se com a expectativa do reencontro com o pai. O reencontro, embora indefinidamente adiado, já era presentemente vivido. Dizer que o exílio era a condição de quem esperava por um pai que nunca chegava era dizer que depois do exílio o pai e seus ideais poderiam vir a ser reabilitados.
Em Tropa de Elite, essa moral comum às utopias messiânicas dá lugar à mais desoladora desistência. Policiais corruptos ou justiceiros, marginais e estudantes usuários de drogas ilegais não sabem o que buscar, exceto sobreviver hoje e amanhã.
Agem como sonâmbulos presos num pesadelo. Tudo que importa é abolir o tráfico ou manter o tráfico. Nenhum dos personagens parece sentir-se exilado, pois o deserto ético transformou-se no último horizonte de suas existências. No que dizem, palavras como violência e paz, justiça e injustiça, autoridade e obediência, soam vazias e apenas fazem eco a sentimentos de vingança, ressentimento, culpa ou autopunição. Criaturas supérfluas em um mundo supérfluo.
É aqui que o corte entre os dois filmes salta aos olhos. Visto com mais atenção, Tropa de Elite poderia ser grafado no plural, sem perda de conteúdo. Na verdade, as supostas elites retratadas no filme são duas: a policial e a universitária. O detalhe nada tem de irrelevante. Nele se repete um dos mais lastimáveis fenômenos da cultura brasileira, qual seja, a recalcitrante incapacidade de nossa autodeclarada elite de agir, de fato, como uma legítima elite. Elite - faça-se justiça à tradição lingüística - é o conjunto dos melhores.
E os melhores, no credo democrático-humanitário, são os que mais contribuem para fortalecer os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Ora, a pretensa elite nacional jamais se conduziu segundo esses princípios, donde a relação promíscua que sempre manteve com o que a polícia pode ter de mais abusivo e imoral.
Inicialmente, o retrógado senhoriato rural, candidato bastardo à elite, usou a polícia para confinar a realidade dos guetos pobres nas letras de samba e desfiles de carnaval. Foi a época de ouro das "anedotas, champanhotas" e do famigerado "sorry, periferia". Na atualidade, a sandice cultural mudou de tom, mas fundamentalmente continuou a mesma.
Retratos
A polícia foi, de novo, usada para deixar que os mesmos guetos se convertessem em entrepostos de drogas ilegais. Só que a criatura fugiu ao controle do criador. Os piores do andar de baixo - como reza o preconceito - se deram conta, rapidamente, de que podiam extorquir e explorar quanto quisessem os piores do andar de cima.
Daí para a emancipação da tutela policial o passo foi curto. Em duas ou três décadas, os guetos marginais passaram de quitanda de drogas a centros de treinamento intensivo em sordidez moral para policiais. A leviandade político-social continuaria impune, não fosse um fato novo: o montante de dinheiro circulante com o comércio de drogas permitiu que a nata da delinqüência se armasse até os dentes para defender a prosperidade de seus negócios.
Conclusão: a sociedade brasileira, uma vez mais, tem sua agenda de problemas comandada pela inconseqüência de uns poucos. O mesmo tipo de grupúsculo social, que outrora insistiu em negar a indecência humana das favelas, voltou a recorrer à truculência repressiva. Desta feita, para conter os excessos da aberração que pôs no mundo e acabou nos tornando reféns de bandidos e policiais corruptos.
Boa parte do desconforto provocado por Tropa de Elite vem do fato de percebermos que o odioso ciclo do crime não tem saída, posto que se alimenta da própria deterioração. Combater o comércio de drogas e armas com Bopes é querer extirpar a violência com mais violência, isto é, com mais da mesma coisa.
Faz sentido discutir com seriedade se a legalizaçãod as drogas ilegais seria um antídoto possível para a situação; insensato é persistirmos vendo o problema pelas lentes dos habitantes desse submundo.
Nesta guerra entre aspas, o inimigo não são os infelizes do lado de lá ou do lado de cá; o inimigo é a consciência degradada dos que consideram que, para o populacho, favela está de bom tamanho. Ou eliminamos essa mentalidade torpe de nossa vida cultural ou nos condenamos a suportar mais e mais carnificina.
Créditos
Um dos maiores méritos de Tropa de Elite é deixar claro que a banda podre da polícia nada mais é do que o espelho da banda podre de elites que usurparam o direito a portar um nome ao qual jamais fizeram jus. Policiais corruptos e brutalizados, marginais guetificados e usuários irresponsáveis de drogas ilegais não nasceram da cabeça de Zeus.
Eles são o refugo de uma ordem sociocultural que manteve o gozo dos direitos democráticos reservado a uma minoria civicamente analfabeta, moralmente míope e culturalmente descomprometida com a construção de uma nação brasileira digna deste nome.
Entretanto, se a "elite" perdeu a cabeça e alma, isso não quer dizer que tudo esteja perdido. Em uma espécie de contraponto à crua denúncia feita por José Padilha, Cao Hamburger assinala o contraste existente entre o Brasil dos restos humanos e o Brasil do cidadão comum. Este último cidadão, em 1970 como em 2007, apesar da pouca visibilidade social, não sucumbiu à moral da descrença.
Férias às tropas
Sua vida, na superfície, é prosaica, mas, no fundo, é o que mantém este país de pé. Trata-se do indivíduo ordinário, que não é santo ou herói, mas, simplesmente, alguém capaz de agir com correção e honradez, se a urgência da questão o exigir. Sem rompante ou bravata, ele cultiva as virtudes cívicas elementares, como apreço pelo trabalho, pela honestidade e pela decência.
Embora movido pelo egoísmo narcisista, pela tentação do oportunismo ou pela sedução do sucesso midiático, como qualquer um de nós, também sabe ser compassivo e solidário se assim for necessário. São esses brasileiros que no filme de Hamburger protegem o pequeno personagem, mesmo pondo em risco o próprio bem-estar.
São eles a verdadeira tropa de elite dos ideais democráticos de homens como frei Caneca e Joaquim Nabuco; é apostando neles que traremos de volta os órfãos ainda exilados do sonho Brasil.
Para os desesperados, isso é idiotice sentimentalóide de quem não vê que "este país não presta"; para os cínicos, a súmula da mediocridade piedosa. Penso de modo diferente. Penso que esses cotidianos exercícios de respeito pelo outro e de crença no próprio poder de mudar são a quintessência da riqueza material, moral, intelectual e espiritual de um povo.
Por meio deles, quem sabe, chegará o ano em que daremos férias às elites e às tropas que nos envergonham e nos privam de viver num país à altura da maioria de nós.
Dois filmes a serem vistos e revistos; dois grandes cineastas, eles sim, exemplos da elite que queremos ter.
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