maio 16, 2009

30 anos da Lei Franco Basaglia

Há dez anos atrás, estive em Trieste, pela segunda vez, como convidado, para participar do congresso: Franco Basaglia: La Communità Possibile, realizado de 20 a 24 de outubro de 1998, nas comemorações dos 20 anos da Lei 180, que se tornou conhecida como, Lei Franco Basaglia. Naquela ocasião, escrevi um texto, que foi lido, vertido para o italiano e, depois, publicado, o qual se iniciava com a conhecida poesia de Carlos Drummond de Andrade, que, em italiano se chamou: Nel mezzo del cammin c’era uma pietra/c’era uma pietra nel mezzo del cammin.

Hoje, estamos juntos aqui, comemorando os 30 anos da lei, mas, na verdade, não é somente a lei, que estamos comemorando, mas sim, homenageando aquele grupo de italianos e italianas, que muito tempo antes, começou a criar, em Gorizia, as condições do que hoje chamamos de: PSIQUIATRIA DEMOCRÁTICA. Esta história, não será necessário repeti-la, já que todos a conhecem, pois, foi a partir dela que aconteceu a grande mudança que sacudiu todo o arcabouço esclerosado daquilo que se vinha fazendo em saúde mental até então, podendo ser classificada, até mesmo, como revolucionária. Basaglia e seus companheiros transformaram-se em um farol, a iluminar nossos caminhos, até o presente. A psiquiatria, como disse Basaglia, sempre colocou o doente mental entre parênteses, somente se preocupando com a doença. O que ele pretendia com a experiência de Trieste, era retirar aquelas pessoas dos parênteses em que foram colocadas pelos preconceitos com a doença mental.

Como os próprios italianos reconhecem, a psiquiatria, naquela época, na Itália, estava muito atrasada, em relação ao que já se fazia, especialmente, na Inglaterra e na França. Esse atraso foi uma das razões do importante impulso oriundo de Trieste. Denise Dias Barros, em seu livro, Jardins de Abel, citando Franco Rotelli, diz: “Tratamento é realargar os espaços de liberdade internos e externos do ser humano, no sentido de sua emancipação”, justificando o slogan libertário triestino: “A LIBERDADE É TERAPÊUTICA”.

Sou descendente direto de italianos. Corre em minhas veias o sangue italiano! Muitas vezes, já pensei e, até tentei estudar a língua italiana, porém, falta-me tempo e disciplina para tanto. Entretanto, consigo ler, razoavelmente bem, no idioma de Dante.

O filósofo italiano Norberto Bobbio, de quem sou um admirador, diz: “Ao contrário das tartarugas, que chegam a viver até, trezentos anos, o homem é mau, porque vive pouco. Quando começa a aprender, ele morre.” Espero viver suficiente tempo para estar presente às comemorações dos quarenta anos da lei e, quem sabe, poder me dirigir a vocês, na língua dos meus antepassados. Tinha um sonho que sempre me pareceu impossível: visitar Trieste e conhecer toda a experiência lá desenvolvida. Meu sonho foi realizado e, muito além do sonhado, pois, já estive lá, por duas vezes. Gostaria de, quem sabe, um dia poder voltar, mais uma vez, mas desta, na companhia de meu filho, para que ele soubesse a razão de nunca mais ter sido internado em um hospital psiquiátrico.

Fui fortemente influenciado por leituras, textos e conferências, em diversas ocasiões e em diversos lugares, no Brasil e no mundo, por Franco Basaglia, pela Senadora Franca Basaglia e pelos doutores Franco Rotelli, Del’Acqua, Saraceno, Venturini, Tomazinni, Carena e outros, com os quais, convivi e dialoguei pessoalmente. O grande aprendizado de tudo isto para mim foi, que não devemos nos preocupar com a cura: Afinal, curar o que? Se, nem ao menos sabemos, por exemplo, se a esquizofrenia é uma doença... O que precisamos é criar para essas pessoas, um novo patamar de existência, novas possibilidades de vida, tendo a participação delas, na construção desses projetos.

Como disse Basaglia, na apresentação do livro, A Instituição Negada: “É muito simples para o stablishment psiquiátrico definir nosso trabalho como desprovido de seriedade e de responsabilidade científica. É um juízo que nos lisonjeia, pois, finalmente nos identifica com a falta de seriedade e de respeitabilidade, desde sempre, atribuída ao doente mental e a todos os rejeitados”... Ainda, citando Basaglia: “Usa-se muito a arte do louco pintor, músico, poeta, etc., mas não é desse tipo de louco que quero falar: quero falar daquele que, não é nada disso, na realidade, daquele que não é nada. É esse o que fica esquecido dentro do manicômio”.

Poderia fazer um depoimento pessoal, falando de minha convivência com meu filho, André, além de, com muitos outros usuários, durante todos estes anos, mas, quero aproveitar esta oportunidade, única para mim, para falar da importância deste histórico encontro, em Salvador, que, como disse, Darcy Ribeiro: “Salvador, é a nossa Roma Negra”. Sei que, para quem não conhece minha história, este depoimento pessoal, seria válido, porém, não quero servir de exemplo para ninguém. Cada um precisa descobrir o seu próprio caminho. O meu método (ou falta de método) foi, o da “tentativa e do erro”. Fórmulas mágicas? Não existem! Fala-se tanto da família, da necessidade do envolvimento da família no tratamento... Essa é uma realidade, mas, de que família estamos falando? Daquela família nuclear? Daquela composta por papai, mamãe, titia, vovó? Não amigos, essa família, deixou de existir, no meu caso, assim como, no de tantos outros familiares da saúde mental. Quase sempre, essas famílias tornam-se desestruturadas... Melhor seria se, tais famílias se desintegrassem de vez, para que houvesse a possibilidade de compor outros grupos, ou seja, outras famílias. Já compuz inúmeras outras famílias, em determinados momentos e, em diversas outras situações.

Sofremos hoje, no Brasil, violento ataque da contra-reforma, verdadeiro terrorismo, que tenta desqualificar nosso modelo e tudo o que tem sido feito, em prol da saúde mental em nosso país. Não sabemos a razão para tal indignação. Trata-se de um inacreditável sectarismo rancoroso, uma enxurrada de inverdades que vão, desde o ataque direto e deslavado, até argumentações das mais sofisticadas, emitidas sob os holofotes da mídia, por pessoas que têm atrás de si, poderosas corporações, afirmando ser, “essa psiquiatria democrática, inventada na Itália, um enorme fracasso”.

Criticam-nos, por querermos acabar com a instituição: hospital psiquiátrico, mas, efetivamente, é isso mesmo o que desejamos! Não queremos tirar de ninguém, o direito de ser dono de um hospital desse gênero, apenas, não queremos ser subjugados com essa única forma de tratamento. Tem-se objetado que, com a supressão daquela instituição, instalar-se-ia, o caos total, cessando todo o atendimento em saúde mental, porém, o caos já se havia instalado, durante a sua existência, pois milhares de pessoas que por lá passaram, foram somente contidas e vigiadas, sem que tenham recebido tratamento algum. O hospital psiquiátrico, nunca desempenhou na história da psiquiatria, nenhuma concepção de tratamento, apenas, reduziu a dignidade pessoal, a simples valor de troca, em lugar das inúmeras possíveis formas de tratamento e erigiu a liberdade única e implacável do lucro. Sua prática criou todas as medidas repressivas, desvelando as demonstrações de brutalidade perpetuadas por essa instituição de não-tratamento. Portanto, a supressão do hospital psiquiátrico não é equivalente à supressão da loucura e, consequentemente, do seu tratamento. Por sua posição histórica, o hospital psiquiátrico estava fadado, mais cedo ou mais tarde, a mostrar sua ineficiência. Não devemos nos reprimir por desejarmos o fim do hospital psiquiátrico, pois que, nele, o passado, domina o presente. Aqueles que defendem o hospital psiquiátrico, defendem concepções ultrapassadas, relações imutáveis e esclerosadas, com as quais, não concordamos. A sociedade que defendia o hospital psiquiátrico, foi enganada! É esta sociedade que precisa ser mudada, levando-a a entender algo como: “tudo o que é estável e sólido, se desmancha no ar”. Toda essa crítica radical que fazemos ao hospital psiquiátrico foge à norma, ao pré-estabelecido, e isto, assusta muito...

A memória de Basaglia precisa ser preservada; Basaglia precisa ser defendido. Basaglia – um nome, um som que ressoa em minha mente, em meu coração e em minha alma... Basaglia, nascido em Veneza em 1924, permanece vivo e atual, até o presente... Basaglia Vive! Foi esse meu encontro com Basaglia, a razão que permitiu meu envolvimento com estas questões, que tanto nos apaixonam. Foi a partir disso que pude começar a dialogar com a loucura, diálogo este, bastante difícil, visto, a sobrecarga que oferece, além do desgaste emocional em que vivemos, constantemente. Nosso familiar adoecido, encontra sempre inúmeras dificuldades, que dizem respeito à sua inserção social, à organização de sua vida cotidiana, à realização das tarefas do dia-a-dia, como: trabalho, higiene (tanto pessoal, quanto de sua moradia), etc. e, sendo assim, cada vez mais, somos obrigados a descobrir fórmulas quase mágicas, a fim de evitar o que, muitas vezes acontece: isolamento, distanciamento afetivo, vazio existencial, exclusão social, apenas, para citar algumas. Conforme Jonas Melman diz, em seu livro “Família e Doença Mental”, citando minha própria experiência: “Depois que conheceu o hospital psiquiátrico “por dentro”, ele nunca mais foi o mesmo. Parece que a força do encontro com essa realidade, provocou uma mutação em sua sensibilidade. Tentar transformar o manicômio e tudo o que ele representa, ganhou um sentido especial na sua vida.”

André, meu filho, esteve internado num hospital psiquiátrico, uma única vez, durante 30 a 40 dias, faz mais de vinte anos, quando eu desconhecia qualquer outra alternativa e, depois disso, nunca mais foi internado em nenhum manicômio. Outras formas de atenção foram sendo experimentadas, inicialmente, no inesquecível CAPS Dr. Luís da Rocha Cerqueira, conhecido como CAPS Itapeva, o primeiro CAPS brasileiro, isto, durante um longo período, enquanto morávamos em São Paulo. Foi ali que se deu inicio a esta extraordinária experiência que hoje vivo. Os anos foram se alongando, as crises continuam, porém agora, em outro nível, cada vez mais espaçadas e amenas. Hoje vivemos na cidade de São Vicente, à beira-mar, bem defronte ao mar, item este, da maior importância em sua melhora e, aonde ele continua seu acompanhamento, agora, pelo CAPS Mater do município, com excelentes resultados, tendo sido envolvido pelo clima, pela cidade, pelo território, pelo entorno e, principalmente, pelas pessoas.

Para terminar, quero deixar registrado, um lindo pensamento de Basaglia que, além de psiquiatra, foi um poeta e um revolucionário. Que este desejo de Basaglia seja o nosso lema, o nosso norte, a nossa bandeira:

“Quero ser um menestrel, mas, quando abandonar o palco, não quero que ele fique vazio.”

Grazie a tutti
Geraldo Peixoto

P.S.: Esta é parte de uma história que está sendo continuadamente, construída, feita e refeita, com muitas pessoas que passaram por minha vida: usuários, familiares, técnicos, além de, tantos outros, a qual veio a desaguar em minha companheira Dulce, também familiar e militante. Ela é quem pontua e põe em ordem meus espantos, meus sonhos e minhas utopias...

Obrigado por tudo, Dulce!
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