dezembro 20, 2009

Ministério da Saúde repete erros da campanha contra a AIDS, abusa do senso-comum, incentiva o proibicionismo e deixa irritado os redutores de danos

Um crack no senso-comum

Ministério da Saúde lança campanha contra o crack baseada na cultura do medo, se esquecendo de que a droga é um reflexo do social e do proibicionismo

Coletivo DAR

O Ministério da Saúde (MS) resolveu “se mexer” por estar vivenciando em todo o território nacional o que São Paulo presenciou na década de 1990: o surgimento e expansão do consumo do crack. Presente nas diversas camadas sociais, o crack foi levado a todo o país. Inclusive ao Rio de Janeiro, onde, apesar das tentativas do crime organizado de barrar sua entrada, o tráfico de rua o trouxe principalmente para a região central da cidade.

Esse alarde é sustentado pelo trabalho publicado em 2005 pelo Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) que indica 0,1% da população usuária da droga, aproximadamente 200 mil brasileiros. O que antes era característica das metrópoles hoje se instaura em cidades com menos de 100 mil habitantes. Assim, há a importância em debater, além de seus efeitos, a relação do usuário com a droga e com a sociedade.

Mediante esse fato, o MS resolveu fazer a sua parte e colocar em rede nacional uma campanha alertando a população para os efeitos do crack, com frases de efeito como:

“Desculpe interromper o trânsito. Mas esse assunto não pode esperar. O crack causa dependência muito rápido.”

“Nunca experimente o crack. Ele causa dependência e mata”.

Se por um lado tenta agir na prevenção utilizando o medo e não a informação para prevenir o consumo e o abuso, por outro a campanha exclui a esperança do dependente de abandonar o consumo ou torná-lo sustentável: a impressão é de que não há solução, que o usuário está condenado a inevitavelmente morrer logo e sem acesso ao sistema de saúde. Podemos citar o trabalho realizado na UNIFESP, que sugeriu aos usuários da droga quando sentissem fissura que utilizassem maconha ao invés do crack e passado um ano do projeto, coordenado pelo Prof. Dr. Dartiu Xavier da Silveira, 68% dos usuários abandonaram o crack (com muitos deles abandonando a maconha posteriormente).

A questão do crack deve ser vista com cuidado e ressalva. Não pode ser desvinculada do proibicionismo e da desigualdade social, encarada inclusive como reflexos destes. Na década de 1980, os EUA controlavam a venda dos produtos químicos necessários para o refino da coca até transformá-la em pó. Os traficantes, então, iniciaram a venda de insumos não controlados, como os derivados do refino. O crack (cloridrato de cocaína) é um dos subprodutos que possui o mesmo princípio ativo com efeitos e via de administração diferentes. Desde então, Nova Iorque se tornou um centro de sua comercialização e consumo. Antes da venda ser apropriada pelo tráfico os usuários produziam a sua própria pedra, chamada de casquinha; esse fato é importante para lembrar que muitas vezes o usuário aprecia e escolhe fazer uso, e não são todos desinformadas vítimas da droga.

Existe gente que diz que esta é a droga do momento num mundo capitalista de consumismo exacerbado: comprar e fumar muito, compulsivamente. Contudo esse movimento é semelhante ao de qualquer outra droga relativamente barata que se espalha por promover o barato intenso no usuário e por ser um subproduto também acaba sendo rentável para o tráfico. Este consumo intenso de crack dá identidade a muitas pessoas, que não encontram oportunidades na sociedade – ao se falar de oportunidades, muitas pessoas vêem como a melhor que elas é de sentir-se parte da “comunidade” de usuários da cracolândia, por exemplo.

Uma impressão errónea, abarcada pelo senso comum, é que os usuários de crack são apenas aqueles de classes menos favorecidas, fazendo-nos acreditar que o uso dessa droga não penetra em todas as classes. O que ocorre na verdade é que por muitas vezes os dependentes de classe média/alta preferem o atendimento particular ao público, então sobra aos mais vulneráveis a visibilidade, até porque seu consumo é gravado pelas infindáveis câmeras do centro da cidade, e exatamente por ser carente de amparo, assistência(prevenção, educação e saúde) e a baixa de recursos, é que essa população encontra todos os fatores que permitem que esse uso aconteça da pior maneira possível, levando muitas vezes o usuário a recorrer a outros meios para adquirir a sua necessidade. O crack suprime a necessidade de todos os reforços positivos naturais que são tantas vezes extirpados dessa camada social, e é nesse caso, na carência de todos esses parâmetros: da informação ao lazer da alimentação ao saneamento básico, que geralmente o crack se torna devastador; porém, pensando em uma sociedade não-proibicionista, não devemos excluir a possibilidade da existência dessa droga e de uma possível regulamentação dela.

Como em qualquer debate sobre drogas e seus desdobramentos no campo social, é indissociável, na discussão sobre o crack, a reflexão sobre as oportunidades de trabalho, de formação, de educação e ensino, de escolha política entre tantas outras. Ponto importante é discutir a sociedade como um todo. Vivemos um modelo social excludente e consumista. Excludente na medida em que somos (sociedade) permeado por um sentimento de que é imperioso se inserir em grupos sociais, o “ser aceito” ou “fazer parte”. Se as oportunidades de participação e identificação social, em determinada comunidade, estão restritos à marginalidade, é compreensível que os jovens frutos deste grupo social tenham um caminho marginal a seguir. Consumista quando impõem padrões de existência focados no consumo puro e inconsequente. O foco atual é TER, não SER, independente dos meios. Acumular é ter poder,independente de sua cultura ou moral, cria-se um atrativo engodo, que empurra pra qualquer forma possível de acesso o acúmulo de recursos/poder com o horizonte no consumo. São necessárias políticas públicas de inclusão social que criem oportunidades não-marginais, como as oferecidas pelo poder do tráfico, imposto por essa política proibicionista.Essas sim, podem ser consideradas portas importantes de entrada para as drogas e precisam ser repensadas, é preciso pautar uma mudança profunda na estrutura social e nos padrões de consumo e produção.

Apenas para reflexão terminamos expondo um grave problema de saúde pública, este sim podendo ser considerado uma epidemia, que é o uso do álcool. No mesmo estudo explorado pelo MS o CEBRID/2005 publicou que o uso na vida de álcool é de 74,6% da população sendo que 12,3% se tornam dependentes e quando estratificado apenas para o sexo masculino o número de dependentes eleva-se a 19,5%.Ou seja, em números absolutos quase um quinto da população é diagnosticada no serviço de saúde como dependente ao álcool. Dados alarmantes que não pressionam o MS a proibir, por exemplo, propagandas de cerveja em rede nacional. Talvez pelo lobby das grandes cervejarias globais. Ao invés disso acaba estigmatizando o usuário de uma outra droga que como o álcool requeria uma maior atenção do orgão.

Isso tudo serve para excluir a visão simplista que elege o crack como bode expiatório às mazelas que afetam toda a sociedade brasileira, e a intensão do governo é que a sociedade olhe esse usuário com um problema apenas, o crack, e não os problemas e carencias desse indivíduo, muitos desses responsabilidade do próprio governo, que através do proibicionismo fecha os olhos a um assunto que não é excêntrico mas faz parte de toda essa rede de consumo e proibição/permissividade que fomenta a criminalização da pobreza e o descaso a essa classe que continua sendo majoritária no país.

Fonte: DAR - Desentorpecendo a razão
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