Estratégia do grande capital fundiário é negar a existência da questão agrária
Escrito por Guilherme C. Delgado
15-Out-2009
Problemas agrários e conflitos sociais envolvendo populações rurais são tão antigos no Brasil quanto a história colonial, iniciada pela ocupação das terras e escravização das populações indígenas. Nessa época a violência e o escravismo da população rural originária e daquela trazida da África caracterizavam a própria índole do projeto colonial.
Por outro lado, uma "Questão Agrária" nacional, caracterizada como um problema político em aberto na agenda política do Estado brasileiro, é bem mais recente – anos 60 do século XX. Nesse interregno de meio século houve, sob signo da mudança da estrutura agrária, muita pressão, conflito e repressão, além de alguma alteração formal no estatuto do direito da propriedade fundiária. O Estatuto da Terra de 1964 e a Constituição Federal de 1988 são expressão dessa mudança formal no princípio jurídico da terra como bem social e não como bem de mercado, como assim estabelecia a Lei de Terras de 1850. Mas somados os 45 anos de vigência conjunta, seja do Estatuto da Terra, seja da Constituição de 1988, constata-se que substantivamente não houve mudança no direito agrário.
Esse divórcio da política agrária relativamente aos fundamentos do direito agrário não é efeito sem causa. Reflete uma estratégia privada dos grandes proprietários fundiários, associados ao grande capital e ao Estado, produzindo e reproduzindo no Brasil a chamada "modernização conservadora" da agricultura, no âmbito da qual se nega peremptoriamente a existência de uma questão agrária nacional.
O fato, empiricamente indiscutível, de prevalecer uma estrutura agrária altamente concentrada, calcada em direitos de propriedade que se arrogam absolutos, tem conseqüências sociais, ambientais e políticas perversas para a maioria da população rural e para país como um todo. Mas sua conversão em "Questão Agrária" requer explicitação do que e de quem estarão implicados nesta problemática.
Questão agrária atual
A primeira e principal demarcação do problema em foco coloca-se sob a perspectiva desigual de como são afetados pela estrutura agrária atual os proprietários da riqueza social, os trabalhadores e a sociedade brasileira em seu conjunto.
No passado (anos 60), a esquerda partidária (Partido Comunista) defendia a tese de que a estrutura agrária brasileira constituía obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo na agricultura. Essa tese tinha por referencial o capital e não o trabalho como cerne da Questão Agrária. A história do último meio século, sob a égide da "modernização conservadora", é bastante elucidativa para desmenti-la.
Por outro lado, se a leitura do problema é feita sob a perspectiva do mundo do trabalho rural e do conjunto da sociedade brasileira, haverá sim uma Questão Agrária em aberto em pleno século XXI, com tendência de se agravar no tempo. O cerne da questão é precisamente a implicação negativa da "modernização conservadora" (mudança técnica sem mudança na estrutura agrária) para a ocupação dos trabalhadores e agricultores familiares, para o manejo ecologicamente sustentável do meio ambiente e para a distribuição da renda e da riqueza geradas no espaço rural. Tudo isto tem significado social concreto: relações sociais civilizadas ou o império da barbárie dos "donos do poder" e da riqueza territorial.
No século XXI, a política de modernização técnica da agricultura, sem mudança na estrutura agrária, agora etiquetada de agronegócio, ganha reforço a partir da crise cambial de 1999, que aprofunda o processo de "primarização" do comércio exterior brasileiro.
Nesse contexto, relança-se a tese da exportação de commodities’ a qualquer custo (soja, milho, carnes, açúcar, etanol, celulose de madeira, matérias primas minerais etc.), como via de escape ao déficit cumulativo e crescente da Conta de Transações com o Exterior. O aparente sucesso desta tese, com a reversão do déficit entre 2003 e 2007, esconde o fato notório do seu recrudescimento e agravamento a partir de 2008, puxado pela remessa de rendimentos do capital estrangeiro. Este aqui ingressou e continua a ingressar sob o abrigo da liberalização financeira, permitindo até que se formassem "Reservas Externas", ao custo de uma acentuada elevação das "Remessas de Rendimentos". Mas continua em vigência o regime de primarização do comércio exterior, impelido pela liberalização financeira, calibrando a aliança do grande capital, da grande propriedade fundiária e do Estado para um projeto sem futuro para o Brasil.
Os indicadores de agravamento da questão agrária
Os indicadores de avanço das exportações primárias dos últimos oito anos revelam crescimento forte dos produtos "básicos" e "semi-elaborados", que, representando 44% da Pauta de Exportações entre 1995 e 1999, saltam para 57% em 2008. Medidas em dólares correntes, essas exportações primárias aproximadamente quadruplicam no período em exame. Praticamente no mesmo período, o Censo Agropecuário de 2006, confrontado com o Censo de 1996, revela aumento dos índices de concentração fundiária e redução de 7,6% no Pessoal Ocupado na Agricultura. Este último dado, também levantado pelo IBGE, anualmente, por meio das Pesquisas por Amostragem de Domicílios, confirma continuamente neste decênio a redução do emprego rural, "pari-passu" à extensiva expansão das ‘commodities’.
O indicador de desmatamento florestal, inevitável com a acelerada expansão da pecuária e das "commodities" agrícolas, aparece periodicamente nas imagens de satélite, suscitando aceso debate entre ambientalistas e ruralistas, que, contudo, não vai às causas do problema.
Há vários outros indicadores afetados pela atual expansão agrícola acelerada: aumento da grilagem de terras, agora amparada por favores oficiais; perda de eficácia do manejo e conservação dos recursos hídricos; perda de biodiversidade em razão da expansão da monocultura. Mas é principalmente o aumento da morbidade face ao rápido aumento das doenças laborais e a violência que permeia as relações semi-clandestinas de trabalho volante os focos dos indicadores mais perversos desse processo de expansão agrícola.
Todos esses indicadores de uma Questão Agrária politicamente incidente sobre o mundo do trabalho, o meio ambiente e a sociedade em geral praticamente não repercutem na agenda do Congresso Nacional, nem nas pautas da grande mídia. Ao contrário, cogita-se mesmo é de retroceder a aplicação dos dispositivos constitucionais que prevêem a observância do "Grau de Utilização" das terras, conforme a atual Lei Agrária de 1993, a prevalecer o Projeto de Lei da senadora Katia Abreu, já aprovado na Comissão de Agricultura do Senado.
Há uma certa nostalgia no agir político da nossa elite ruralista relativamente às práticas ‘normais" do estatuto colonial. Tratam a sociedade brasileira como uma grande barbárie em pleno século XXI, sob cumplicidade ou omissão de muitos que perderam a esperança.
Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
Fonte: Correio da Cidadania
Escrito por Guilherme C. Delgado
15-Out-2009
Problemas agrários e conflitos sociais envolvendo populações rurais são tão antigos no Brasil quanto a história colonial, iniciada pela ocupação das terras e escravização das populações indígenas. Nessa época a violência e o escravismo da população rural originária e daquela trazida da África caracterizavam a própria índole do projeto colonial.
Por outro lado, uma "Questão Agrária" nacional, caracterizada como um problema político em aberto na agenda política do Estado brasileiro, é bem mais recente – anos 60 do século XX. Nesse interregno de meio século houve, sob signo da mudança da estrutura agrária, muita pressão, conflito e repressão, além de alguma alteração formal no estatuto do direito da propriedade fundiária. O Estatuto da Terra de 1964 e a Constituição Federal de 1988 são expressão dessa mudança formal no princípio jurídico da terra como bem social e não como bem de mercado, como assim estabelecia a Lei de Terras de 1850. Mas somados os 45 anos de vigência conjunta, seja do Estatuto da Terra, seja da Constituição de 1988, constata-se que substantivamente não houve mudança no direito agrário.
Esse divórcio da política agrária relativamente aos fundamentos do direito agrário não é efeito sem causa. Reflete uma estratégia privada dos grandes proprietários fundiários, associados ao grande capital e ao Estado, produzindo e reproduzindo no Brasil a chamada "modernização conservadora" da agricultura, no âmbito da qual se nega peremptoriamente a existência de uma questão agrária nacional.
O fato, empiricamente indiscutível, de prevalecer uma estrutura agrária altamente concentrada, calcada em direitos de propriedade que se arrogam absolutos, tem conseqüências sociais, ambientais e políticas perversas para a maioria da população rural e para país como um todo. Mas sua conversão em "Questão Agrária" requer explicitação do que e de quem estarão implicados nesta problemática.
Questão agrária atual
A primeira e principal demarcação do problema em foco coloca-se sob a perspectiva desigual de como são afetados pela estrutura agrária atual os proprietários da riqueza social, os trabalhadores e a sociedade brasileira em seu conjunto.
No passado (anos 60), a esquerda partidária (Partido Comunista) defendia a tese de que a estrutura agrária brasileira constituía obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo na agricultura. Essa tese tinha por referencial o capital e não o trabalho como cerne da Questão Agrária. A história do último meio século, sob a égide da "modernização conservadora", é bastante elucidativa para desmenti-la.
Por outro lado, se a leitura do problema é feita sob a perspectiva do mundo do trabalho rural e do conjunto da sociedade brasileira, haverá sim uma Questão Agrária em aberto em pleno século XXI, com tendência de se agravar no tempo. O cerne da questão é precisamente a implicação negativa da "modernização conservadora" (mudança técnica sem mudança na estrutura agrária) para a ocupação dos trabalhadores e agricultores familiares, para o manejo ecologicamente sustentável do meio ambiente e para a distribuição da renda e da riqueza geradas no espaço rural. Tudo isto tem significado social concreto: relações sociais civilizadas ou o império da barbárie dos "donos do poder" e da riqueza territorial.
No século XXI, a política de modernização técnica da agricultura, sem mudança na estrutura agrária, agora etiquetada de agronegócio, ganha reforço a partir da crise cambial de 1999, que aprofunda o processo de "primarização" do comércio exterior brasileiro.
Nesse contexto, relança-se a tese da exportação de commodities’ a qualquer custo (soja, milho, carnes, açúcar, etanol, celulose de madeira, matérias primas minerais etc.), como via de escape ao déficit cumulativo e crescente da Conta de Transações com o Exterior. O aparente sucesso desta tese, com a reversão do déficit entre 2003 e 2007, esconde o fato notório do seu recrudescimento e agravamento a partir de 2008, puxado pela remessa de rendimentos do capital estrangeiro. Este aqui ingressou e continua a ingressar sob o abrigo da liberalização financeira, permitindo até que se formassem "Reservas Externas", ao custo de uma acentuada elevação das "Remessas de Rendimentos". Mas continua em vigência o regime de primarização do comércio exterior, impelido pela liberalização financeira, calibrando a aliança do grande capital, da grande propriedade fundiária e do Estado para um projeto sem futuro para o Brasil.
Os indicadores de agravamento da questão agrária
Os indicadores de avanço das exportações primárias dos últimos oito anos revelam crescimento forte dos produtos "básicos" e "semi-elaborados", que, representando 44% da Pauta de Exportações entre 1995 e 1999, saltam para 57% em 2008. Medidas em dólares correntes, essas exportações primárias aproximadamente quadruplicam no período em exame. Praticamente no mesmo período, o Censo Agropecuário de 2006, confrontado com o Censo de 1996, revela aumento dos índices de concentração fundiária e redução de 7,6% no Pessoal Ocupado na Agricultura. Este último dado, também levantado pelo IBGE, anualmente, por meio das Pesquisas por Amostragem de Domicílios, confirma continuamente neste decênio a redução do emprego rural, "pari-passu" à extensiva expansão das ‘commodities’.
O indicador de desmatamento florestal, inevitável com a acelerada expansão da pecuária e das "commodities" agrícolas, aparece periodicamente nas imagens de satélite, suscitando aceso debate entre ambientalistas e ruralistas, que, contudo, não vai às causas do problema.
Há vários outros indicadores afetados pela atual expansão agrícola acelerada: aumento da grilagem de terras, agora amparada por favores oficiais; perda de eficácia do manejo e conservação dos recursos hídricos; perda de biodiversidade em razão da expansão da monocultura. Mas é principalmente o aumento da morbidade face ao rápido aumento das doenças laborais e a violência que permeia as relações semi-clandestinas de trabalho volante os focos dos indicadores mais perversos desse processo de expansão agrícola.
Todos esses indicadores de uma Questão Agrária politicamente incidente sobre o mundo do trabalho, o meio ambiente e a sociedade em geral praticamente não repercutem na agenda do Congresso Nacional, nem nas pautas da grande mídia. Ao contrário, cogita-se mesmo é de retroceder a aplicação dos dispositivos constitucionais que prevêem a observância do "Grau de Utilização" das terras, conforme a atual Lei Agrária de 1993, a prevalecer o Projeto de Lei da senadora Katia Abreu, já aprovado na Comissão de Agricultura do Senado.
Há uma certa nostalgia no agir político da nossa elite ruralista relativamente às práticas ‘normais" do estatuto colonial. Tratam a sociedade brasileira como uma grande barbárie em pleno século XXI, sob cumplicidade ou omissão de muitos que perderam a esperança.
Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
Fonte: Correio da Cidadania
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