PLENÁRIA ESTADUAL DE SAÚDE MENTAL INTERSETORIAL – ETAPA ESTADUAL – SÃO PAULO: A GESTÃO AUTÔNOMA DAS FORÇAS SOCIAIS PRÓ-REFORMA PSIQUIÁTRICA
22 de maio de 2010. CENFORPE, São Bernardo do Campo, São Paulo. Realiza-se a Etapa Estadual de Saúde Mental Intersetorial de São Paulo, à revelia do governo do Estado de São Paulo. Mais um acontecimento histórico na trajetória das lutas pela Reforma Psiquiátrica no Brasil - que se inicia em meados da década de 70 do século passado - e no movimento da luta anti-manicomial - que se inicia em meados da década de 80 - e que hoje constituem os eixos das Políticas Públicas de Saúde Mental em vigência no Brasil do século XXI.
Passados nove anos desde a III Conferência Nacional de Saúde Mental (em 2001), a convocação da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – I Intersetorial, que se realizará em Brasília de 27/06/2010 a 01/07/2010 com o tema central “Saúde Mental direito e compromisso de todos: consolidar avanços e enfrentar desafios”, já foi fruto da pressão de movimentos sociais para sua realização, particularmente da MARCHA DE USUÁRIOS DOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL à Brasília, ocorrida em 30 de Setembro de 2009.
Assim é que em todos os estados brasileiros, ainda que às pressas, foram convocadas conferências municipais ou regionais e estaduais como etapas preparatórias para a Conferência Nacional. Em São Paulo, o estado de maior economia do Brasil, a recusa do Secretário Estadual de Saúde em convocar a conferência estadual, com a alegação de que haveria pouco tempo para sua preparação, disparou uma rápida mobilização social. Inconformados e indignados com tal recusa, comprometidos com a direção ético-política de seu trabalho, trabalhadores de Saúde Mental, sindicatos, conselhos de classe, e diversas entidades afinadas com a Política Nacional de Saúde Mental aliam-se ao Pleno do Conselho Estadual de Saúde de São Paulo e, em conjunto com o COSEMS (Conselho dos Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo) convocam, em um prazo de praticamente um mês, todos os municípios e regiões do Estado que fizeram suas conferências municipais ou regionais para a Plenária de Saúde Mental Intersetorial que acabou acontecendo em São Bernardo.
Com as mesmas funções que teria uma Conferência Estadual - discutir a situação da Saúde Mental de São Paulo, avanços, impasses e desafios, encaminhar propostas e eleger delegados para a Conferência Nacional – a Plenária se validou de fato e de direito. Presente à mesa de abertura, o Coordenador Nacional de Saúde Mental, Dr. Pedro Gabriel Godinho Delgado, afiançou a legitimidade da Plenária realizada como a necessária etapa estadual para a participação de delegados do Estado de São Paulo na Conferência Nacional. O prefeito de São Bernardo, Sr. Luiz Marinho, juntamente com o Secretário de Saúde daquele município, Dr. Arthur Chioro, além das duras críticas ao governo estadual, foram testemunhas vivas de como gestores governamentais podem estar ao lado das lutas sociais, fortalecendo e bancando (literal e metaforicamente) os dispositivos democráticos de participação popular do SUS, tais como as conferências de saúde.
Reduzida, porém em sua potência de debate das complexas questões da Saúde Mental do Estado de São Paulo, em função do pouco tempo para sua realização – o possível diante das circunstâncias – os delegados presentes na Etapa Estadual de Saúde Mental Intersetorial de São Paulo dividiram-se pelos três eixos de discussão propostos pela Comissão organizadora nacional para selecionar, ao menos, as propostas que efetivamente deveriam ser encaminhadas para a Conferência Nacional. O trabalho de seleção das propostas, sistematizadas a partir das conferências municipais ou regionais realizadas anteriormente em todo o Estado, com relatoria do LASAMEC/Faculdade de Saúde Pública – USP e sistematização da comissão organizadora da Plenária, foi conduzido por mesas coordenadoras especialmente constituídas para esse fim, cujo trabalho de coordenação e relatoria foi feito com competência e organização, de forma a conduzir democraticamente o debate possível das propostas.
A outra função da Plenária, a de escolha de delegados paulistas para a Conferência Nacional, merece destaque principalmente pelos episódios ocorridos na escolha da delegação paulistana, que foi o processo que pude acompanhar mais de perto, não sendo possível nenhum comentário em relação a este processo em outros municípios. Os delegados foram remetidos à formação de grupos por cidade e/ou região para proceder à escolha, que a rigor deveria ser feita por eleição, da delegação paulistana à Conferência Nacional, respeitando a proporcionalidade de delegados por número de habitantes dos municípios. Para cada cidade/região, a escolha deveria ser feita dentro dos três segmentos: usuários (50%), trabalhadores (25%), gestores (25%). E os acontecimentos ocorridos neste processo de escolha de delegados da cidade de São Paulo foram emblemáticos, podendo ser tomados como analisadores, transformando a cidade de São Paulo em um caso paradigmático para se pensar os dispositivos de participação social previstos pelo SUS.
O CASO SÃO PAULO. Tendo acompanhado apenas tal processo no segmento dos gestores e dos trabalhadores da cidade de São Paulo, é sobre estes que os convido a pensar através do breve relato que se segue.
No segmento “gestor”, antes mesmo que os possíveis interessados pudessem se reunir para discutir a escolha, tudo já estava decidido desde o gabinete do Sr. Secretário de Saúde Municipal. Ao menos foi o que se pôde depreender da posição e da fala da representante oficial da Secretaria quando, interpelada sobre os critérios de “distribuição” das 15 vagas de gestor disponíveis para a cidade, ela diz: “São as ordens do chefe!” E quais seriam estas ordens? De posse das fichas de delegados, verdadeira “proprietária” das vagas, a representante declara que 7 vagas seriam destinadas para gestores da Secretaria, inexplicavelmente ausentes no momento da “distribuição” de vagas. As outras 8 vagas restantes deveriam ser destinadas metade para os gestores/prestadores de serviço (Organizações Sociais) e metade para as Universidades, sendo que duas seriam para as Universidades públicas e duas para as particulares. Os gestores/ prestadores foram indicados pela Secretaria, não tendo sido publicizada sua indicação, assim como não fora a indicação dos gestores da secretaria municipal. Dentre os professores universitários presentes, ainda foi possível alguma conversa de modo a se construir ali, entre os participantes, um consenso de que seria mais interessante para a delegação a escolha de 3 representantes de universidades públicas e um de universidade privada. E assim ocorreu.
No segmento dos trabalhadores, o processo de escolha foi muito mais dramático, com tintas que passavam do vermelho da cólera ao preto do ódio, compondo um quadro que merece ser olhado mais de perto. Como havia acontecido em duas situações anteriores – na escolha de delegados dos trabalhadores para a Conferência Municipal, ocorrida em 24 de abril de 2010 nas dependências do SINDSEP em São Paulo, e na escolha de delegados da Conferência Municipal de Saúde Mental Intersetorial para a Plenária Estadual, ocorrida nos dias 10,11 e 12 de Maio de 2010 – repetiu-se na Plenária Estadual um modo de exercício do poder político que poderíamos chamar de excludente. E o que se pretendia excluir? Certamente os trabalhadores, equivocadamente identificados por alguns membros do Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (SINDSEP) e por alguns membros da Comissão Municipal de Saúde como “inimigos”. Inimigos de quem? Dos próprios trabalhadores! E como se chegou a isso? Inicialmente, já no primeiro processo de escolha de delegados para a municipal, o Conselho Municipal, articulado com o Sindicato conseguiu que se fizesse a distribuição dos trabalhadores, candidatos a delegado, de acordo com as cadeiras do Conselho, método utilizado unicamente pela cidade de São Paulo. Ao final da 2ª. Conferência Municipal de Saúde Mental – 1ª Intersetorial, a mesma prática se repetiu, com o agravante de que em alguns segmentos, como o de gestores, a escolha acontecia enquanto ainda estava em curso em plenária o processo de votação das propostas. No segmento dos trabalhadores, ao final da plenária, o processo de escolha de delegados se revestiu das tintas fortes da violência. Ora, na Etapa Estadual, na escolha da delegação pela cidade de São Paulo, no segmento dos trabalhadores, pretendeu-se operar com os mesmos critérios privatistas e excludentes com os quais se operou nas duas situações anteriores. Mas nesse momento houve possibilidade de resistência e oposição ativa por parcela expressiva dos trabalhadores presentes, que eram sistematicamente achincalhados e denegridos por seus opositores. Mas na verdade, a quem ou a que se dirigia tamanha força de agressão? Pelos decibéis que a voz de alguns dos presentes alcançava, e pelas sistemáticas provocações que membros do Sindicato e do Conselho Municipal faziam aos trabalhadores não foi difícil entender contra quem vociferavam. Poderíamos sintetizar em três figuras os alvos dos ataques do grupo que defendia a indicação de delegados por cadeiras do Conselho: Kassab, Serra, e as Organizações Sociais. Figuras que foram coladas aos trabalhadores presentes, alguns deles militantes históricos da luta anti-manicomial. Sem instrumentos para fazer outras leituras do campo da luta da Saúde Mental, isolados e desinformados sobre a complexidade deste campo, principalmente em São Paulo, onde as forças da contra-reforma vêm crescendo assustadoramente, a dificuldade de atores sociais tão importantes como o Conselho Municipal de Saúde e o Sindicato dos trabalhadores públicos municipais, com lutas tão expressivas em outros momentos históricos, nos convida a refletir sobre o esvaziamento dos dispositivos instituídos de participação social em nossa cidade. Mesmo com a intervenção oportuna e vigorosa de membros da comissão organizadora da Plenária estadual, foi com muitos embates, gritos e trocas de acusações que o processo de “escolha”(?) de delegados se fez entre os trabalhadores da cidade de São Paulo. Reunidos em um dos dois subgrupos que se formaram como “solução de compromisso” para o embate, com modos de escolha diferentes, os trabalhadores que queriam um processo de escolha por eleição daqueles que melhor defenderiam as propostas de São Paulo – método democrático que se esperava que acontecesse em todas as etapas – presentearam o acontecimento Plenária Estadual de Saúde Mental Intersetorial com outro acontecimento: ainda que uma conquista parcial, conseguiram fazer uma eleição justa, democrática e bonita de se ver, ocupando com dignidade as 6 vagas de delegados que o grupo majoritário “lhes cedera” depois de muita batalha.
O que nos resta?
No entanto, ainda resta a necessária discussão mais detalhada dos graves problemas que o Estado de São Paulo vem enfrentando nos últimos anos seja no próprio processo de implantação do SUS, seja na implementação das políticas públicas em Saúde Mental, já que esta não foi possível de ser realizada satisfatoriamente dada a exigüidade do tempo. Nomeadas algumas, outras sequer citadas, urge a organização e articulação de fóruns coletivos para o debate de questões tais como:
1) dada a opção do governo paulista de entregar a gestão e a execução das políticas públicas de saúde a Organizações Sociais, várias questões se colocam, desde o modo de exercício do controle pela sociedade, um dos principais eixos do SUS, até o efeito na Saúde Mental das diferentes formas de implantação das políticas públicas pelas diversas Organizações Sociais que hoje compõem as parcerias com o Estado, passando pelos efeitos que diferentes regimes de contratação dos trabalhadores têm sobre a organização dos processos de trabalho;
2) dado o caráter fundante para o movimento da Reforma Psiquiátrica e para a luta anti-manicomial dos problemas da atenção às pessoas com os chamados transtornos graves e persistentes, principalmente àquelas oriundas das camadas mais pobres da população, a maior parte das propostas, inclusive as de caráter intersetorial, são dirigidas a esse segmento da população: a questão dos programas de geração de renda (cooperativas e economia solidária), dos programas de moradia (residências terapêuticas, de volta para casa), dos benefícios sociais necessários para a vida dessas pessoas, dentre inúmeros outros temas de garantia dos direitos dos usuários dos serviços de Saúde Mental. No entanto, entre os CAPS – dispositivos privilegiados de atenção na rede substitutiva em Saúde Mental – e a atenção básica, atualmente preconizada para ser realizada prioritariamente pelas Unidades Básicas de Saúde, equipes de Saúde da Família e pelos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs), vem se formando um imenso vácuo na rede de atenção para um amplo segmento da população que não se encaixa na população alvo dos CAPS: adultos com as mais diferentes configurações de sofrimento psíquico – depressões, quadros persistentes de ansiedade, e outros; crianças e adolescentes, inúmeros, diagnosticados como portadores de TDAH e dislexia, amplamente medicados; jovens que se arriscam nos diversos circuitos da violência urbana e tantas outras situações da subjetividade contemporânea em sofrimento. Na cidade de São Paulo, particularmente, os governos municipal e estadual vêm implantando, na contra-mão da Política Nacional de Saúde Mental, as chamadas AMEs (Ambulatório Médico de Especialidades) psiquiátricas, revelando na prática a opção de política de Saúde Mental em vigência em todo estado: unidades ambulatoriais que se destinam a efetivar a direção medicalizante das políticas de saúde – a redução das complexas questões do sofrimento subjetivo a uma questão médica, com decorrente medicação, negando inclusive a necessária direção multidisciplinar e intersetorial das práticas em saúde.
Com este texto, espero ter contribuído como testemunha, sempre parcial, da onda coletivizante que molhou, ainda de leve, o árido solo da Saúde Mental paulista e paulistana. Se este relato servir para a mobilização, a articulação e a construção de fóruns públicos de debate das urgentes questões da Saúde mental e da “coisa” pública em terras paulistanas terá sido mais do que um testemunho, será um disparador. E o que mais se pode querer com um texto?
Maria Angela Santa Cruz
Delegada de base estadual na Etapa Estadual de Saúde Mental Intersetorial de São Paulo – pelo Instituto Sedes Sapientiae/ SP
Fonte: Sedes Sepientiae
PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
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