por Ana Al Izdihar – Depois de vender a cocaína e pegar suas novas motos, as choppers, Wyatt joga o relógio fora. Em outra cena numa casa abandonada, uma bússola é ignorada numa gaveta velha. O tempo deste mundo que não servia mais para aqueles jovens era jogado no lixo. O momento presente era a única perspectiva que tinham diante de si e seu futuro só aconteceria na liberdade sentida no “aqui e agora”.
Na viagem não havia diferença de estações, mesmo cruzando os Estados Unidos de Los Angeles com destino a New Orleans para o Mardi Gras (que ocorre em fevereiro, sendo ainda frio em muitos estados). Sem frio intenso, nem calor insuportável, só vemos Billy e Wyatt com as mesmas roupas de noite e/ou de dia. De dia observavam e viviam intensamente. De noite filosofavam numa tentativa de integrar as experiências e balancear a fome de liberdade e inovação com o fato de se sentirem perdidos nesta busca por uma nova identidade.
Numa cena muito significativa num mesmo ângulo incrível da câmera, vemos pequeno fazendeiro trocando a ferradura de seu cavalo enquanto Capitão América e Billy trocam o pneu de uma das motos. No caminho inverso da antiga conquista do oeste americano, a corrida do ouro, tudo na atitude e personalidade desses jovens é o retrato da contra cultura estabelecida no final dos anos 60. O ouro é substituído por outra mercadoria valiosa, a cocaína. Os cavalos trocados por motocicletas. O pedaço de terra seca, um ótimo bem ao cidadão americano, é substituído pela estrada e as noites dormidas em ruínas. Os antigos cowboys dão lugar aos novos montadores que em vez de construírem, desconstroem.
A imagem da vida em uma verdadeira comunidade hippie é bastante enriquecedora. Somente ali, vivendo isolados e com alguma dificuldade, outros jovens como os protagonistas conseguem experimentar serem eles mesmos. Contudo, o carnaval em Mardi Gras ainda soa como o único destino plausível para aqueles que não nasceram para seguir.
Wyatt o mais profundo dos dois, pensativo, chamado de Capitão América, carrega a bandeira americana na roupa, no capacete, na moto. É generoso, paciente, observador, conciliador, mas se sente bastante perdido por querer um ideal que não é compreendido pelos outros. Como ele mesmo diz “I think I’m gonna crash”. Já Billy é raivoso, explosivo, instintivo, quer seguir a busca da liberdade e não demonstra muita paciência com os outros, mas mesmo assim tem um coração de cavaleiro: puro e espontâneo.
A gota de racionalidade que falta à dupla vem de um amigo advogado totalmente às avessas. George é um bêbado que tem uma visão bastante apurada da sociedade, sem querer no fundo ser compreendido, um palhaço pessimista. Ao comentar suas informações sobre quem são os extra-terrestres parece resgatar o ideal de toda sociedade: eles vêm de um lugar sem guerras, sem líderes, evoluída e que naturalmente engoliria os seres na Terra, pois aqui somos muito atrasados. O ideal de paraíso perdido, enraizado no inconsciente do povo americano por preceitos religiosos, que retorna em momentos de crise de identidade é aqui talvez um dos pontos em comum com outras culturas, nesta linha tênue que nos une. Contudo, esse ideal do paraíso que possa ser reconquistado se esfarela e se dilui como fumaça no ar, pois o sistema opressor pós-revoluções industriais transformou todos em paranóicos.
Numa conversa entre George e Billy somos levados ao cerne desse questionamento quando surge a pergunta: “este país costumava ser maravilhoso… O que aconteceu com ele?”. A resposta é exatamente essa: “todos viraram covardes e estão com medo. Falar sobre a beleza de ser livre e realmente sê-lo são duas coisas completamente diferentes. Pois é difícil ser livre quando você é comprado e vendido no mercado.”. O ser social hoje é o produto e aos poucos ninguém mais questiona isso. Quando surge alguém que o faz, é massacrado. A batalha diária agora é entre o conceito de liberdade individual e o indivíduo realmente livre.
As drogas que parecem ser uma ferramenta para alcançar esta liberdade, na verdade, se tornam mercadorias que transformam mais uma vez o indivíduo pretensamente livre em produto. A cocaína aparece como um ingresso para liberdade já que tem valor monetário e não é apresentada como uma salvação interna ou mental. A maconha é usada contraditoriamente como um “abridor” do pensamento livre, porém sem resultados importantes ou concretos na conquista da liberdade. O álcool é um mero combustível. E o ácido é um “desintoxicante” para os pecados recônditos imputados pela religião e a sociedade nos inconscientes desses jovens. O sonho americano de liberdade fica sim um pouco mais distante com o uso das drogas, porém ainda é um ato rebelde.
De qualquer modo eles tentam seguir este sol interno que brilha pelo fogo da revolta e da inquietude. Ainda continuam a busca pela evolução, por sair do conformismo ou simplesmente ser do contra. Mas o advogado beberrão alerta: o verdadeiro indivíduo livre mete medo nos outros. Parafraseando Doutor Ângelo Gaiarsa: todo mundo vigia todo mundo para que ninguém faça aquilo que todo mundo gostaria de fazer. Quem se mete a ser diferente, incomoda e deve ser eliminado ou pela fofoca ou pela morte física.
Sem Destino que num primeiro olhar parece uma estória tão americana e não nos diria respeito, se tornou um clássico justamente por expressar o ideal, o ímpeto e o inconformismo jovem, presente em todas as culturas desde sempre. E mesmo que vejamos este filme como tipicamente americano não podemos ignorar o fato de que o que vem acontecendo com a maior potência econômica do ocidente, nos afeta de alguma maneira, portanto há sim uma identificação.
Mas creio que há algo mais que intriga o espectador nesse filme, algo que vai além da discussão sócio-filosófica que ele levanta. E talvez vocês não conheçam alguns detalhes de bastidores que possam dar alguma explicação para essa sensação que ele nos provoca.
Dennis Hopper ou “I wasn’t born to follow”
Peter Fonda fez questão de que Dennis Hopper (1936-2010) fosse o diretor da estória assim que teve a idéia. Para Fonda somente Hopper teria o perfil e o punho certos para conduzir tal projeto. Hopper era exímio fotógrafo e colecionador de artes tinha um senso estético refinado e um rebelde mais do que autêntico. Fez parte do grupo de atores “rebeldes” dos anos 50, junto ao amigo e parceiro James Dean. Sempre avesso à conformidade e ao mesmo tempo altamente crítico e perfeccionista, só lamentou ao longo da vida não ter feito papéis que achasse realmente interessantes. E ao que parece o fato de não termos tido mais trabalhos brilhantes de Hopper deve-se ao seu vício em álcool e drogas que afetava sua criatividade e o tornava persona non grata em certos estúdios.
Sem Destino foi filmado realmente na estrada, sendo que a câmera foi dividida com amigos, transeuntes e hippies de comunidades locais, ao longo da viagem. As paisagens estonteantes e os takes peculiares compõem uma edição rústica, mas inovadora na época e hoje é charmosa e continua a inspirar. Muitos dos personagens menores foram pessoas arrebatadas ali mesmo na hora, como os dois últimos caipiras que atiram nos jovens.
A equipe admitiu que bebia bastante e fumava maconha o tempo todo. E que Hopper muitas vezes ou estava alucinado pelo uso de algum tipo de entorpecente, ou estava esbravejando por estar alcoolizado. As brigas eram constantes assim como a explosão de criatividade. Por esses motivos muitas vezes eles foram detidos por policiais ao longo do caminho.
Agora, o mais fascinante é saber que nunca houve um script, um roteiro pronto com falas e diretivas. Eles tinham em mente a espinha dorsal da estória e seguiam improvisando ao longo do caminho. Ou seja, todos os envolvidos conduzidos pelo brilhante Dennis Hopper estavam imbuídos deste espírito da contra cultura, vivendo seus questionamentos na pele, experimentando a si mesmos em novos contextos, redescobrindo o país, enfrentando os obstáculos em busca da liberdade assim como seus personagens. Nem foi um caso da máxima a arte imitando a vida ou vice-versa, era mais do que isso: colocaram-se a serviço da arte para expressar sua leitura de mundo, ao mesmo tempo em que viviam e faziam arte.
Esta autenticidade foi o legado deixado por Dennis Hopper que, mesmo tendo se prejudicado por isso em sua vida particular, nunca deixou de ser sincero com o que dizia, sentia ou fazia e seu espírito inquieto está presente em Sem Destino. Um clássico que nos presenteia com uma verdade intrínseca maior do que a própria “mensagem” do enredo, uma espontaneidade, uma força instintiva que o torna único e marcou para sempre Dennis Hopper como um dos grandes cineastas de nosso tempo.
Fonte: www.amalgama.blog.br
Nota do blog: Essa postagem vai para os amantes da liberdade.
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