Pra onde vai a reforma psiquiátrica?
Não foram poucas as forças antagônicas que vencemos para realizar a IV Conferência Nacional de Saúde Mental, que findou no último dia 1 de julho, em Brasília, às duas horas da manhã, depois de quatro dias de exaustivos debates. Uma delas é institucional, mais interessada em reproduzir comportamentos condicionados por vícios das estruturas dominantes, e que vem deixando-a vulnerável aos ataques dos conservadores empenhados em por freios à reforma psiquiátrica antimanicomial que queremos. Taí a razão pela qual assistimos o convívio absurdo dos manicômios com o modelo a ele substitutivo (uma rede que não se reduz aos Centros de Atenção Psicossocial, na qual estes têm papel estruturante).
A outra força antagônica costuma atuar ali onde a alienação fez morada, incapaz de construir a liberdade e modos de convivência mais justos, e sabe como ninguém aproveitar as debilidades de um projeto em movimento para dele usufruir os benefícios que ameaçam sair do seu controle. Quer queiram ou não os desavisados, em causa meio bilhão de reais que ainda são investidos na manutenção de leitos psiquiátricos no país, aliado a uma visão fatalista da loucura.
É neste cenário que ocorre o divórcio entre teoria e prática, abrindo espaços para acomodações entre modelos antagônicos que ferem as recomendações da III Conferência Nacional de Saúde Mental. De nada adianta o ministro da saúde exortar os conferencistas a fazer frente ao furor conservador das entidades contrárias ao avanço da reforma psiquiátrica no território nacional, se foram retiradas dos documentos oficiais todas as referências com as quais sensibilizamos o presidente da república a se decidir pela convocação da conferência. Suprimir a expressão “reforma psiquiátrica antimanicomial” é uma capitulação diante de interesses que vão para além do campo da saúde mental. É falta de um projeto político que defina com clareza os rumos da reforma psiquiátrica no Brasil. Taí o candidato da oposição que não me deixa cair em contradição. Seu projeto é oposto ao que defende o movimento social. Prova disso é o boicote do governo paulista à conferência nacional de saúde mental.
Mas são nossos problemas internos que merecem cuidadosa avaliação e análise. É impossível continuar aceitando decisões sobre as quais o movimento social não é ouvido. Há insatisfações nos dois segmentos que compõem o movimento, embora um deles tenha mais aderência à posição oficial, aparentemente sem se dar conta das perdas políticas e históricas que advirão se não cobrarmos investimentos progressivos capazes de assegurar a eficácia e a eficiência do novo sistema. Sistema que não pode prescindir da formação de novos quadros dispostos a assumir os riscos de romper com formas anti-democráticas de exercício do poder.
Olhado criticamente verifica-se que se a atual assessoria da coordenação nacional de saúde mental consegue mobilizar alguns níveis de governo, o resultado da sua relação com os diferentes segmentos sociais deixa muito a desejar. Seu poder de agenciar e apoiar mudanças de interesse coletivo, por ter um alcance com pesadas limitações, causa insatisfações de todos os lados. Os processos de discussão, negociação e pactuação com o movimento social é de uma debilidade assustadora. A interatividade entre os diversos sujeitos interessados na construção de um projeto radical de mudança no campo da gestão está inteiramente comprometida. Não há interesse em superar a estereotipia de papéis. E, posto que eles caducaram precocemente, a permanecer este quadro, numa eventual continuidade do governo atual, teremos um flanco aberto se não mudarmos essa cultura de gestão, cujo modelo é incompatível com a radicalidade da democracia que queremos.
No Amazonas, onde é forte a cultura de cooptação, o quadro não é diferente. Na análise dos impasses institucionais, é preciso voltar-se para as implicações do modo como o poder opera sobre os técnicos, e como estes renunciam ao conhecimento e às necessidades de intervir na cultura. Eis o mistério do atraso e das resistências da reforma psiquiátrica em sua versão regional.
Manaus, Julho de 2010
Rogelio Casado
Pro-Reitor de Extensão da Universidade do Estado do Amazonas
Nota do blog: Artigo publicado no jornal Amazonas em Tempo, no caderno Saúde & Debate, domingo, 11.07.2009
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