PICICA: "Não bastasse o estupro em mais um naco da Amazônia que se julgava intocável, a EPE menosprezou os povos indígenas das 30 Terras Indígenas demarcadas da região e atribuiu maior importância socioambiental à população de migrantes. Não que ela não tenha importância, mas dadas as características econômicas e de ocupação da região e dos conflitos que a perseguem, os povos indígenas têm legitimidade e direitos imemoriais assegurados."
Hidrelétricas na bacia hidrográfica do rio Branco, artigo de Telma Monteiro |
do site Ecodebate
Terras Indígenas e Aldeias na bacia do rio Branco – Mapa: Estudos AAI
Terra Indígena Raposa Serra do Sol e o território Yanomami mais uma vez ameaçados
[EcoDebate] A bacia hidrográfica do rio Branco está situada no estado de Roraima e desde 2006 é refém da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) que autorizou a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) a realizar o seu Estudo de Inventário Hidrelétrico. A Eletronorte já elaborara os primeiros estudos de planejamento hidrelétrico na bacia do rio Branco, apresentados em 1971.
Os estudos de inventário da bacia do rio Branco (iniciados em 2006) foram interrompidos em 2008 graças à resistência dos povos indígenas à construção de uma hidrelétrica na sub-bacia do rio Cotingo. O rio Cotingo é parte da bacia do rio Branco e está na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Isso, no entanto, não impediu que agora, em 2010, sem maiores alardes, a EPE fizesse a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da Bacia do rio Branco, deixando de lado o rio Cotingo. Os povos da Terra Raposa Serra do Sol poderiam expor essa nova investida do governo federal sobre outro rio da Amazônia.
A AAI foi apresentada pela EPE no dia 01 de dezembro de 2010. O estudo abrange a área banhada pelo rio Branco na região amazônica, extremo norte do Brasil e divisa com a Venezuela e a Guiana. São 192 mil quilômetros quadrados que ocupam quase todo o estado de Roraima, exceto uma pequena porção no estado do Amazonas e outra na vizinha Guiana.
O rio Branco nasce na confluência dos rios Uraricoera e Tacutu cerca de 30 km a montante da cidade de Boa Vista e é um afluente importante da margem esquerda do rio Negro que forma o rio Amazonas, junto com o Solimões. O planejamento energético do governo federal não poderia ter escolhido uma região mais biodiversa no coração da Amazônia, ainda em estado natural. Essa jóia está encravada num território onde 70% são banhados pela bacia do rio Branco, protegida legalmente por 30 Terras Indígenas (TI), 11 Unidades Conservação (UC) – seis são de Proteção Integral e cinco de Uso Sustentável.
A região tem aproximadamente de 392.000 habitantes com maioria indígena que luta contra ocupação do seu território. O interesssante é que por ser uma região pouco povoada foi considerada na AAI como um grande potencial econômico – extração madeireira e commodities minerais – a despeito das Terras Indígenas e das unidades de conservação. Por entender que os conflitos na TI Raposa Serra do Sol poderiam “atrapalhar” os estudos, a EPE escamateou da bacia do rio Branco dois dos seus principais integrantes – o rio Cotingo e o rio Uraricoera, como se eles não integrassem esse ecossistema.
Na fase anterior à AAI, o inventário havia proposto os aproveitamentos do potencial hidrelétrico que, segundo as informações dos desenvolvedores, seriam embasados em critérios socioambientais, energéticos e econômicos. Concluiram pela definição de um aproveitamento no próprio rio Branco – Bem Querer, e três aproveitamentos no rio Mucajaí – Paredão M1, Paredão e Fé Esperança, totalizando 1.050 MW de potência instalada.
Nem seria preciso mencionar as incríveis características das águas peculiares da bacia do rio Branco que se transformam e podem se apresentar brancas, pretas ou claras. Tal particularidade é acompanhada pela vegetação marginal que assimila essa transição e compartilha espécies tanto das águas brancas do rio Solimões-Amazonas como das pretas, similares às do rio Negro.
Não bastasse o estupro em mais um naco da Amazônia que se julgava intocável, a EPE menosprezou os povos indígenas das 30 Terras Indígenas demarcadas da região e atribuiu maior importância socioambiental à população de migrantes. Não que ela não tenha importância, mas dadas as características econômicas e de ocupação da região e dos conflitos que a perseguem, os povos indígenas têm legitimidade e direitos imemoriais assegurados.
Roraima é um estado com grande extensão territorial e imensa riqueza natural que, embora distante da administração federal, é objeto da cobiça dos governantes. Eles têm se empenhado em induzir a ocupação geopolítica e a estruturação do território usando incentivos em detrimento dos povos indígenas. A delimitação de Terras Indígenas e Unidades de Conservação para preservar a biodiversidade e a população tradicional da bacia são os únicas medidas que garantem a imunidade contra a presença predatória do estado.
Os estudos classificam como sendo “hostilidades naturais de ocupantes originais” a luta dos povos indígenas para fazer valer seus direitos. Há uma intensa procura por titularidade de terras. Os migrantes buscam oportunidades de trabalho, mas acabam criando conflitos com os povos indígenas e seus territórios. Na verdade esses conflitos decorrem da disputa pelos recursos da biodiversidade que são fundamentais para a sobrevivência dos povos indígenas que realmente se preocupam com a sua preservação.
O objetivo dos estudos é claro no texto da Avaliação Ambiental Integrada da Bacia do rio Branco e se resume na exploração do potencial natural pelos setores econômicos. Há muita terra ainda não ocupada no estado. De forma mais explícita o tema da segurança nacional aparece camuflado de preocupação com a localização “estratégica” do estado de Roraima em relação aos países vizinhos.
Para justificar o planejamento de hidrelétricas em Roraima a desculpa usada é a erradicação da pobreza nesse rincão tão distante. Desde quando construir hidrelétricas combate a pobreza? De um lado do estado está a TI Raposa Serra do Sol, do outro a imensidão da Terra Yanomami e entre elas um divisor, o rio Branco e sua bacia fluindo vida para os ecossistemas. As TIs ocupam 45% do território de Roraima e nela vive a população indígena com o menor contato com os não índios, entre os estados brasileiros.
Somente a grande distância dos grandes centros e das tecnologias de comunicação do século XXI poderia levar a Eletronorte a tentar dominar as terras banhadas pela bacia do rio Branco, nos idos da década de 1970. No entanto, atualmente, depois do julgamento e da demarcação contínua da TI Raposa Serra do Sol e da presença cada vez mais sagaz dos indígenas nas decisões que lhes dizem respeito, não há mais espaço para a ignorância das autoridades do poder central.
Assim se espera!
Artigo de Telma Monteiro, colaboradora e articulista do EcoDebate, coordenadora de Energia e Infraestrutura Amazônia da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé
https://twitter.com/TelmaMonteiro
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