PICICA: Dizem que até Deus esqueceu dos loucos. Se non è vero, è ben trovato, sobretudo quando nossas entidades de classe, criadas e inspiradas pelo sentimento cristão, reproduzem esse esquecimento omitindo-se sobre o futuro dos loucos (caso do Amazonas, exceções de praxe). Nada mais trágico para as políticas públicas para o setor. Elas não são acompanhadas e seus resultados deixam de ser cobrados. O descaso com os loucos infratores no Amazonas é subproduto do atraso da Reforma Psiquiátrica, depois que uma geração perdeu o bonde da história ao abrir mão de seu papel como agente de mudança social. Iniciada em 1980, a Reforma Psiquiátrica no Amazonas só voltou a andar no início deste século XXI, passado o período de letargia vivido no setor - período que está por merecer análise mais aprofundada. Pode-se até aceitar que Deus tenha esquecido os loucos; mas daí conviver com o descaso imposto pela omissão intelectual, pelo abandono da luta contra a ideologia da psiquiatria conservadora, pelo temor do enfrentamento dos humores da autoridade de plantão, é demais para quem milita no campo das causas (im)possíveis. Não raro alguns templos do saber costumam se deter apenas na análise da omissão histórica dos que assumem responsabilidades em sua passagem pelo poder público, em todos os seus escalões. Mas que diabos! Quem disse que a história é feita por esses escalões? A história pode ser feita de omissão, mas também da resistência, ora pois! Mesmo o subdesenvolvimento intelectual pode ser corrigido, se houver desejo por uma emancipação real. Eis o nó da questão: sem desejo não há tesão de mudança. A experiência que você pode ler abaixo é fruto do tesão coletivo. E, é claro, contou com admnistrações públicas afinadas com os interesses populares mais esclarecidos. A fotografia abaixo é do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), anexo a uma penitenciária do Estado do Amazonas. Por um desses sortilégios da vida tive a oportunidade de dirigi-lo entre 1998-1999. Quando deixei a direção do estabelecimento, depois de um imbróglio tragicômico, havia a promessa do governo do estado da época de construir uma nova unidade, posto que o HCTP fora criado num lugar absolutamente inadequado (nos cubículos de uma velha delegacia). Não passou de promessa. Para se ter uma idéia do tamanho da omissão das nossas entidades de classe, assumi a direção daquele nosocômio em meio a uma sindicância do Conselho Regional de Medicina, após uma denúncia ao Ministério Público das más condições de assistência aos loucos infratores. Pois bem! De lá para cá, nenhuma entidade pôs os pés naquele minúsculo hospital, que continua no lugar de sempre. Vox clamantis in deserto. Teimosamente.
Atenção Integral ao Louco Infrator: nem tudo está perdido |
Escrito por Luciana Araujo | |
13-Jan-2011 | |
Em meio a um quadro desastroso do ponto de vista da ressocialização de pessoas que cometeram atos infracionais ou crimes no país, foi apresentada no seminário "Encarceramento em massa: símbolo do Estado penal" uma experiência interessante. No Estado de Goiás, desde 2006, o PAILI (Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator) preconiza o atendimento no sistema de saúde pública, mantendo a pessoa em contato com a família e abolindo as medidas de encarceramento em manicômios judiciários.As equipes médicas e psicossociais – e não mais o juiz – é que determinam o melhor tipo de tratamento, com acompanhamento do judiciário. Na avaliação de profissionais da área de saúde e do promotor de Haroldo Caetano, idealizador do PAILI, esse é o melhor caminho para assegurar a ressocialização do infrator. "O programa está totalmente alinhado com a nossa luta da reforma psiquiátrica. E o interessante é que ele não exigiu nada novo, mas se apóia na legislação existente para colocar em prática a reforma psiquiátrica e garantir um atendimento digno", avalia a psicóloga Adriana Eiko Matsumoto, que também participou do seminário. Há um projeto similar em funcionamento no Estado de Minas Gerais, o PAI-PJ (Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental). Mas, no restante do país ainda prima a lógica dos manicômios judiciários e hospitais de custódia. Leia abaixo artigo do promotor Haroldo Caetano sobre o PAILI. Reforma psiquiátrica nas medidas de segurança - A experiência goiana do PAILI A Lei nº 10.216/2001 (Lei Antimanicomial) veio contemplar o modelo humanizador historicamente defendido pelos militantes do movimento conhecido como Luta Antimanicomial. Haroldo Caetano da Silva Resumo A Lei nº10.216/2001 humaniza o atendimento à saúde mental, transferindo o foco do tratamento para serviços comunitários e abertos. A Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial, como é conhecida, alcança a internação compulsória determinada pela justiça criminal como medida de segurança. Agora, deve o juiz preferir o tratamento ambulatorial, somente optando pela internação "quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes", caso em que será precedida de "laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos". A figura da periculosidade perde força. A medida de segurança não tem natureza retributiva. A permanência do paciente em cadeia pública configura crime de tortura (Lei nº 9.455/97). O Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator contempla a execução das medidas de segurança de acordo com a Lei nº 10.216, acolhendo os seus pacientes nos serviços de saúde. Com autonomia, as equipes de saúde colocam em prática a melhor terapêutica, sem a necessidade de prévia deliberação judicial. O Programa leva a pessoa submetida à medida de segurança para o ambiente universal do Sistema Único de Saúde, o que favorece sobremaneira a inclusão à família e à sociedade, funcionando como experiência exitosa no resgate da dignidade dos pacientes submetidos à medida de segurança. Parte I – Reforma Psiquiátrica e medidas de segurança A Lei nº 10.216/2001 (Lei Antimanicomial ou Lei da Reforma Psiquiátrica) veio contemplar o modelo humanizador historicamente defendido pelos militantes do movimento conhecido como Luta Antimanicomial, tendo como diretriz a reformulação do modelo de atenção à saúde mental, transferindo o foco do tratamento que se concentrava na instituição hospitalar para uma rede de atenção psicossocial, estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos. Esse novo modelo assistencial em saúde mental alcança a hipótese de internação determinada pela Justiça, caso em que é chamada de internação compulsória pela Lei 10.216 (art. 6º, parágrafo único, III), conhecida no meio jurídico como uma das modalidades das medidas de segurança. Impõe-se agora uma nova interpretação das regras relativas às medidas de segurança, tanto no Código Penal (CP) quanto na Lei de Execução Penal, parcialmente derrogadas que foram pela Lei da Reforma Psiquiátrica. Ao submeter o agente inimputável ou semi-imputável à medida de segurança, deve o juiz dar preferência ao tratamento ambulatorial, somente determinando a internação "quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes" (art. 4º, caput). De tal sorte, mesmo que o fato seja punível com reclusão, deve o juiz preferir o tratamento ambulatorial, diversamente do que prevê o art. 97 do CP. Entretanto, havendo indicação para a internação, esta deve obedecer aos estritos limites definidos pela Lei da Reforma Psiquiátrica, sendo obrigatoriamente precedida de "laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos" (art. 6º, caput), vedada a internação, mesmo como medida de segurança, sem a recomendação médica de sua real necessidade. A figura da periculosidade, como se percebe, perde força enquanto fundamento para a fixação da medida imposta. Diferentemente da pena imposta ao indivíduo imputável, a medida de segurança não tem natureza retributiva e visa exclusivamente ao tratamento deste, e não à expiação de castigo. Tal objetivo é agora reforçado pela Lei da Reforma Psiquiátrica que, dentre outras regras, estabelece que "o tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio" (Art. 4º, § 1º), sendo expressamente vedada a internação em instituições com características asilares e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º da mesma Lei (art. 4º, § 3º). Diante da Lei 10.216, sequer se cogita do recolhimento do paciente submetido à medida de segurança em cadeia pública ou qualquer outro estabelecimento prisional. Tal situação, muitas vezes tolerada face à não implementação de políticas públicas de atenção à saúde mental, além de violar frontalmente o modelo assistencial instituído pela Lei da Reforma Psiquiátrica, constitui ainda crime de tortura, na modalidade prevista no art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.455/97, por ele respondendo também aquele que se omite quando tinha o dever de evitar ou apurar a conduta (§ 2º), que é agravada quando praticada por agente público (§ 3º). Nesse novo contexto, sobressai a responsabilidade da autoridade penitenciária, do juiz e do órgão do Ministério Público, pessoas que devem fazer valer as disposições afetas à Lei 10.216, zelando pelo efetivo respeito aos direitos e à dignidade da pessoa portadora de transtornos mentais submetida à medida de segurança, sob pena de, não o fazendo, responder criminalmente pela conduta, mesmo que omissiva. Parte II – A Experiência Goiana Do PAILI A partir dessa nova realidade normativa, abriu-se espaço então para um redesenho das medidas de segurança, não mais reguladas com exclusividade pela legislação penal. Pressionado pela vedação legal ao recolhimento de pacientes psiquiátricos em prisões, bem como pelas iniciativas do Ministério Público (desde 1996) e do trabalho incansável de entidades ligadas à saúde mental, o estado de Goiás institui o PAILI (Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator) no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde. O PAILI surge inicialmente, em 2003, com o propósito de fazer o censo das medidas de segurança em execução no estado de Goiás. Embora tímida a proposta inicial, não deixou de ser um bom começo, pois, realizado o levantamento dos dados e elaborados os relatórios correspondentes, o Programa não poderia simplesmente ser dissolvido. Tem início, então, o trabalho articulado pela Promotoria de Justiça da Execução Penal de Goiânia, com o suporte do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Cidadania, para o redimensionamento do PAILI. Para tanto se fez necessário o diálogo com diversas instituições, especialmente as Secretarias de Estado da Saúde e da Justiça, Secretaria da Saúde do Município de Goiânia, Procuradoria Geral de Justiça, Tribunal de Justiça, Conselho Regional de Psicologia, Fórum Goiano de Saúde Mental, rede de clínicas psiquiátricas, entre outras. Se a medida de segurança não tem caráter punitivo – e de direito não tem – a sua feição terapêutica deve preponderar. Eis o argumento elementar levado à mesa de discussões. Muda-se o paradigma. A questão deixa de ser focada unicamente sob o prisma da segurança pública e é acolhida definitivamente pelos serviços de saúde pública. Não será a cadeia, tampouco o manicômio, o destino desses homens e dessas mulheres submetidos à internação psiquiátrica compulsória. A imagem do sofrimento e da exclusão dos imundos depósitos de loucos – ainda recente na memória dos goianos e presente em outros cantos do país – não mais tem espaço nesta época de proteção aos direitos fundamentais dos que padecem de transtornos psiquiátricos. Será o Sistema Único de Saúde (SUS) o espaço democrático de atendimento a esses pacientes. Esta era a proposta que poderia ser implementada com o redimensionamento das funções do PAILI, desde que houvesse boa vontade e disposição de todos os partícipes chamados ao debate. E o diálogo deu frutos. Assim se fez e o PAILI assumiu oficialmente no dia 26 de outubro de 2006 a função idealizada pelo Ministério Público. A assinatura, naquele dia, do convênio de implementação do PAILI, em solenidade realizada no auditório do Fórum de Goiânia, registrou o marco inicial do resgate de uma grande dívida para com a dignidade dos pacientes psiquiátricos, mediante a construção não de um novo manicômio, agora dispensável, mas sim mediante a construção coletiva de um processo visando à implementação da reforma psiquiátrica nesse campo historicamente caracterizado pela violação de direitos humanos fundamentais. Com autonomia para ministrar o tratamento nesse modelo inovador, os médicos e as equipes psicossociais das clínicas conveniadas ao SUS determinam e colocam em prática a melhor terapêutica, acompanhados de perto pelos profissionais do PAILI, cuja atuação é marcada pelo contato contínuo com os familiares dos pacientes e pela interlocução e integração com todo o sistema de saúde mental, especialmente os Centros de Apoio Psicossocial (CAPS) e as residências terapêuticas. O processo de execução da medida de segurança continua jurisdicionalizado, mas não será o juiz quem determinará o tratamento a ser dispensado ao paciente, pois é o médico o profissional habilitado a estabelecer a necessidade desta ou daquela terapia. Aliás, é a Lei 10.216 que exige laudo médico circunstanciado como pressuposto elementar para a internação psiquiátrica. A proteção jurisdicional é garantia constitucional do cidadão na esfera da execução penal e, na presidência do processo executivo, o juiz acompanhará o tratamento dispensado ao paciente e decidirá sobre eventuais excessos ou desvios, até final extinção da medida de segurança. Também o Ministério Público permanece, nesse novo panorama, com sua atuação fiscalizadora, acompanhando o desenrolar do procedimento judicial e, fundamentalmente, o tratamento dispensado aos pacientes pelas clínicas psiquiátricas e o regular funcionamento do PAILI. A conformação deferida ao Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, agora responsável pela execução das medidas de segurança no estado de Goiás, é inovadora. O PAILI coloca a pessoa submetida à medida de segurança no ambiente universal e democrático do Sistema Único de Saúde sem distinção de outros pacientes, o que favorece sobremaneira a almejada inclusão à família e à sociedade. Resultado da conciliação, num verdadeiro concerto entre os diversos órgãos envolvidos com a matéria, em ambiente que contou com a participação ativa da sociedade, o PAILI já é realidade e tem tudo para ser uma experiência a cada dia mais exitosa no resgate da dignidade e dos direitos humanos fundamentais dos pacientes submetidos à medida de segurança, e cujo modelo vem despertando o interesse de outros cantos do país. Haroldo Caetano da Silva é Promotor de Justiça e Mestre em Ciências Penais pela UFG. Autor dos livros Execução Penal (Porto Alegre: Magister, 2006); Embriaguez e a teoria da actio libera in causa (Curitiba: Juruá, 2004); Ensaio sobre a pena de prisão (Curitiba: Juruá, 2009). Vencedor do VI Prêmio Innovare (2009), na categoria Ministério Público, com a prática PAILI – Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator. Contato: haroldocaetano@gmail.com |
Fonte: Correio da Cidadania
Um comentário:
Rogélio, estamos sempre às ordens para engrossar o caldo da indignação com o que vemos, mas tb para fortalecer a militância pela reforma psiquiátrica! Gd abraço,
Adriana Eiko.
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