janeiro 19, 2011

Caso Battisti: requinte de barbárie

O caso Cesare Battisti: o Brasil não pode ser cúmplice de uma sentença que implica tortura


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Cesare Battisti não está apenas condenado à prisão perpétua, mas também a uma pena acessória de seis meses de tortura, que podem servir para lhe abreviar o tempo de vidaPor Diana Andringa [*]

Se outra razão não houvesse para me mobilizar contra a extradição de Cesare Battisti para Itália, uma só me bastaria: a pena de prisão perpétua a que está condenado incluir “seis meses com isolamento diurno” – que, além do isolamento, segundo as palavras de Battisti, implica também “privação de luz solar”.

Talvez estas palavras – como muitas que se referem a prisões – não signifiquem muito para quem nunca esteve preso, caso de muitos juízes dispostos a condenar a penas sobre os efeitos das quais têm mínimo conhecimento.
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Como é possível que, no Século XXI e numa Europa que gosta de se assumir como defensora dos direitos humanos, alguém possa ser sujeito a uma pena assim?
Na introdução a “Manual de Referência – o isolamento celular“, de Sharon Shalev, publicado pelo Mannheim Centre for Criminology , London School of Economics and Political Science [1], escreve o Professor Manfred Nowak, da Universidade de Viena e relator especial das Nações Unidas sobre tortura:
“ (…) o isolamento celular tem efeitos deletérios comprovados sobre a saúde mental e o bem estar dos detidos, e pode constituir uma pena ou tratamento cruel, inumano e degradante, sobretudo se é de longa duração. O recurso a essa prática deveria assim ser estritamente limitado a casos excepcionais ou quando absolutamente necessário ao inquérito judiciário. Dado o grave sofrimento que causa, o isolamento celular não deveria ser utilizado senão em último recurso e por um prazo tão curto quanto possível.”
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Segundo Sharon Shalev, “todos os estudos relativos a presos que foram isolados, contra sua vontade, por mais de oito dias, em prisões comuns, constataram vários efeitos negativos sobre a saúde destes e mesmo os defensores desta prática admitem que um isolamento disciplinar prolongado ‘apresenta riscos consideráveis para os detidos’” (Gendreau e Bonta [2], p. 475).

Em Portugal, no tempo da ditadura, a PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado, polícia política do salazarismo] usava o isolamento como uma forma de tortura, de quebrar o preso para o fazer falar – e vários dos que o sofreram consideram que não ficava atrás da privação de sono, do suplício da estátua [permanecer de pé e sem dormir ao longo de dias seguidos] e dos espancamentos. Quanto à impossibilidade de acesso a luz solar, os exemplos vindos de Guantánamo tornaram claro o que pode fazer essa indiferenciação entre o dia e a noite – como todas as formas de privação sensorial – na mente de um prisioneiro.

Cesare Battisti não está assim apenas condenado à prisão perpétua, mas também a uma pena acessória de seis meses de tortura. Seis meses que podem também servir para lhe abreviar o tempo de vida.

Ainda recentemente, ao rodar o documentário “Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta”, ouvi velhos combatentes do PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde], presos no Tarrafal [campo de concentração da salazarismo] nos anos 60, contarem como, fechados dias a fio em celas onde a luz do Sol quase não penetrava, foram inchando, adoecendo e dois deles morreram – até uma inspecção médica ao Campo ter obrigado a direcção deste a permitir-lhes algumas horas de exposição à luz solar.

Há, naturalmente, outras razões para defender o cumprimento das garantias do estatuto de refugiado de Battisti, desde a forma como decorreu o julgamento que o condenou à noção, evidente para os que testemunharam essa época, de que era natural, no contexto, que os presos derrotados lançassem todas as acusações sobre quem, estando fora do país, poderia escapar à pena ditada pelos juízes, passando pela repetida reclamação de inocência de Battisti, as perguntas que nunca lhe foram feitas, as muitas irregularidades verificadas ao longo do processo.

E, para mim, há uma outra, a memória de uma noite dos primeiros meses de 1970, Fevereiro, creio, em que um inspector da PIDE, entretanto rebaptizada de DGS, entendeu irromper na sala onde me interrogavam para uma discussão sobre o atentado de Piazza Fontana – aquele que, pouco antes, em 12 de Dezembro de 1969, provocara em Milão a morte de 17 pessoas e ferimentos em cerca de 90. Acusava-me ele de pertencer a um grupo que pretendia fazer coisas semelhantes, de ser essa a nossa estratégia de luta. “São esses os seus amigos!”, atirou-me. Não tive qualquer dúvida em responder-lhe que o atentado de Piazza Fontana era obra de amigos dele, não dos meus, que era certamente obra de grupos da extrema-direita. Passados anos, a confissão de um neofascista de Ordine Nuovo provou a minha razão, enquanto se ia sabendo mais sobre a estratégia da tensão aplicada em Itália, as acções e ramificações da Gládio, o envolvimento de diversos serviços secretos das chamadas democracias no terrorismo italiano, a infiltração de grupos ditos de extrema-esquerda por neofascistas, com o fim de os desarticular. (O que, devo dizer, não deixou de me ocorrer, ao ler, na carta de Battisti às autoridades brasileiras, as referências a alguns dos seus co-réus.)
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O massacre de Piazza Fontana causou, já o referi, 17 mortos e 88 feridos. E, no entanto, em 2005, a Corte de Cassação italiana absolveu os acusados desse atentado – militantes de Ordine Nuovo – que um tribunal de primeira instância condenara a prisão perpétua. Incluindo aquele que admitira ter colocado a bomba que originou o massacre.

A Justiça, diz-se, deve ser cega e não pode ter dois pesos e duas medidas. Mesmo na Itália de Berlusconi. Mais uma razão para que há muito devesse ter sido retirada a sentença que pesa sobre Battisti e arquivada a sua perseguição.

Sim, eu sei que a realidade é bem diferente. Mas esta diferença deve ser-nos mais do que inaceitável, insuportável. Por isso, o menos que podemos fazer – sobretudo nós, portugueses, que tantas vezes buscámos e encontrámos asilo no Brasil – é mobilizar-nos para pedir que o Brasil honre essa tradição de asilo, honre a palavra de Tarso Genro e Lula da Silva e não permita a extradição de Cesare Battisti para esse país teoricamente democrático e civilizado, onde ainda é possível que alguém seja condenado, não só a prisão perpétua, mas a seis meses de tortura.

Notas
[*] Diana Andringa é portuguesa, jornalista da imprensa e da televisão, tendo realizado numerosos documentários. Foi subdirectora da Rádio Televisão Portuguesa 2 e foi presidente da Direcção do Sindicato dos Jornalistas.
[1] Esta publicação pode ser baixada em http://solitaryconfinement.org/sourcebook e o autor pode ser contactado em sharon.shalev@solitaryconfinement.org .
[2] Gendreau, P. and Bonta, J., (1984) Solitary confinement is not Cruel and Unusual Punishment: People Sometimes Are! Canadian Journal of Criminology, 26:467-478.

Veja e ouça aqui a intervenção de Diana Andringa na sessão de apoio à não-extradição de Cesare Battisti realizada em Lisboa em 15 de Janeiro
… e para saber mais sobre o caso de Cesare Battisti leia aqui.

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