janeiro 18, 2011

"As tragédias são frutos das opções políticas": entrevista com a urbanista Raquel Rolnik

PICICA: "O que estamos vivendo hoje nas cidades brasileiras é um indicador da crise do modelo de desenvolvimento urbano no Brasil, do modelo de ocupação do território, e não acho que seja uma crise passageira." Vale a pena ler a entrevista da Revista Fórum  realizada em 2008 com a arquiteta Raquel Rolnik, relatora especial para o Direito à Moradia da Organização das Nações Unidas (ONU). Leia, também, "As Grandes tragédias Humanas tem como responsáveis a corrupção e a ganância" e "El costo de no escuchar a la naturaleza".
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As tragédias são frutos das opções políticas

Por Carlos Rizzo, Glauco Faria e Renato Rovai
Fórum – Tendo em vista os últimos acontecimentos, com tragédias como a da Ilha Grande, desabamentos na Serra do Mar, enchentes e alagamentos em várias cidades, como poderíamos relacionar esses casos com a falta de planejamento urbano no Brasil?

Raquel Rolnik -
O que estamos vivendo hoje nas cidades brasileiras é um indicador da crise do modelo de desenvolvimento urbano no Brasil, do modelo de ocupação do território, e não acho que seja uma crise passageira. Diante de eventos extremos como uma grande quantidade de chuva concentrada numa determinada época isso aparece claramente. E essas chuvas não são absolutamente incomuns. Claro que este ano isso foi mais exacerbado, mas dentro de uma situação que já acontece e daí surgem os efeitos da vulnerabilidade desse modelo, que levou a um duplo colapso: um colapso da mobilidade, não apenas na cidade de São Paulo e na região metropolitana, que talvez sejam a face mais aguda da questão, mas também em muitas outras cidades brasileiras. E, de outro lado, as perdas de vidas humanas e prejuízos econômicos que foram decorrentes dos deslizamentos e das inundações.
Essas duas coisas estão relacionadas, o tema da mobilidade, assim como o da fragilidade socioambiental das nossas cidades, está diretamente relacionado a um modelo de desenvolvimento urbano que, ao contrário do que o senso comum considera, representam opções de políticas públicas adotadas pelos governantes brasileiros e pelo poder constituído ao longo da sua história. Esse modelo não decorre de falta de planejamento, mas sim pela presença de um planejamento voltado para determinados objetivos, foram políticas urbanas desenhadas para atingir determinadas metas e interesses. Esse momento que estamos vivendo não é coincidência, é uma situação onde aqueles elementos que já estavam presentes em termos de vulnerabilidade, impossibilidade, insustentabilidade do nosso padrão de desenvolvimento urbano vão ficar cada vez mais presentes . Resumindo, é uma questão estrutural, que veio para ficar e que foi fruto de opções políticas.

Fórum - É um modelo baseado na estruturação do capitalismo e do poder econômico, mas não é contraditório já que, ao mesmo tempo que privilegia o ganho pelo capital, pode gerar desastres como esses?

Raquel -
Sim e é nessa contradição que nós estamos apostando, porque está claro que esse modelo não funciona, o que é possível ver por meio da agudização desses processos que atingem a todos, inclusive o próprio capital e as próprias condições de desenvolvimento econômico. Acho que um exemplo mais imediato e mais fácil de relacionar com a questão econômica é a mobilidade. Quer coisa mais importante para o capital do que as condições de circulação de mercadorias e pessoas? Isso aqui é básico e está muito comprometido hoje porque a matriz básica de circulação baseada no transporte sobre pneus, que não é só o carro, é o rodoviário, o conjunto carro, caminhão para carga e ônibus como opção de transporte coletivo. Essa política de estruturação do território, uma opção rodoviarista, começa a acontecer nos anos 30 e se consolida nos anos 50 com a entrada da indústria automobilística no país. A cadeia produtiva da produção do automóvel tornou-se um dos elementos essenciais do modelo de desenvolvimento econômico. Ela representa hoje mais de 20% do PIB total do país, segundo o ministro da Fazenda.

Essa opção é muito complexa. É um capitalismo baseado na produção do automóvel, na matriz energética do petróleo e que tenta hoje se reconverter para a base do etanol e de combustíveis renováveis, mas que também têm enormes impactos. Por isso que, ao invés de dizer “ah, tudo foi interesse do capital” temos que ser um pouco mais precisos, pegando, por exemplo, o tema da mobilidade. Em nome da opção rodoviarista, se estrutura o território como um todo, as estradas e toda a logística do país e se estruturam as cidades. Isso tem um efeito, do ponto de vista do uso e ocupação do solo, fatal, porque a opção rodoviarista se combinou com uma outra, que foi a opção, também política, de histórica exclusão do tema da moradia e do acesso à moradia como pauta fundamental de uma política social ou de um suposto Estado de bem-estar social. E desde a primeira determinação do salário mínimo nesse país – nós estamos falando exatamente desse modelo de transição, nos anos 30 – o custo da moradia foi expulso de qualquer tipo de cálculo do salário, e ele passou a ser absorvido – esse é o verdadeiro modelo brasileiro de política habitacional – pelo próprio trabalhador, por meio da autoconstrução, da auto-produção da sua casa e do seu bairro.
Isso combina perfeitamente com a opção rodoviarista porque você tinha cidades estruturadas em torno do trem e do bonde e a habitação operária naquele período, habitação popular, habitação dos pobres é predominantemente de aluguel numa casa completa ou num cômodo de cortiço num padrão de altíssima densidade. O próprio trem ou o bonde define, pela própria natureza do tipo de modal, uma densidade muito grande porque você não pode usar distâncias muito longas do lugar onde está o trilho e as estações.

A cidade de São Paulo, por exemplo, nos anos 30, tinha uma densidade de 100 habitantes por hectare (uma quadra), bastante alta. Era todo mundo ali pertinho, tudo junto das linhas de trem e de bonde. Quando a cidade parte para o circular, e tem toda a história do plano de avenidas do Prestes Maia, que quis se contrapor a um projeto da Light de construir metrô e continuar com o sistema sobre trilhos, é o momento que se decide “vamos sair dos trilhos, vamos para rodovias”. Decide-se isso localmente, em São Paulo e em outras cidades, e o sistema ferroviário foi decaindo de lá pra cá.
Nesse momento, a cidade, com o ônibus e o carro, parte para a expansão horizontal ilimitada, com a constituição de loteamentos na periferia. Então se loteia sem nenhuma infraestrutura, e o trabalhador, a população de menor renda, compra o terreno barato e constrói a sua própria casa e é assim que nós erguemos nossas cidades.

Junto com isso, a política urbana, o que fez? Regulou (por meio da legislação, do planejamento urbano) as partes consolidadas da cidade, aptas para urbanizar, reservando-as para mercados de alta renda, fazendo com que essas áreas pudessem ser usadas intensamente para empreendimentos imobiliários de média e alta renda e a produção de moradia da maioria passou a ser a esfera da não regulação, do não planejamento. Então o efeito disso é o que temos hoje, um modelo excludente, que jogou a habitação para a informalidade, para a precariedade, para a autoprodução e aí, essa questão da “regularidade” também se torna uma coisa nebulosa nessa história. O que é irregular, o que é regular?

Uma parte dessa produção de moradia é ocupação de terrenos de outros, públicos ou privados, e a pessoa só vai lá, ocupa e constrói. Uma parte é isso, mas outra parte é o loteamento irregular. É uma terra privada que se recorta, mas não deixa área pra nada, não coloca escola, infraestrutura, então o loteamento é irregular, clandestino. Às vezes, olhando na paisagem você não consegue diferenciar o que é favela, o que é loteamento irregular, porque a marca da precariedade urbanística está presente nos dois. E aí entra o terceiro elemento nessa história, que é o político - essa é a história da ambigüidade - como são espaços autoproduzidos, irregulares, não obedeceram às normas, então não se colocar infraestrutura, não se pode investir. Mas lembre-se que a pessoa vota, e aí pode-se aceitar excepcionalmente investir ali com infraestrutura, consolidando um modelo político extremamente perverso na nossa democracia e que está presente até hoje. Mantém-se um padrão excludente, o povo vai lá e auto-constrói, o poder público negocia comunidade a comunidade, loteamento a loteamento, bairro a bairro, as intervenções no sentido de ir integrando o local à cidade. Mas nunca de uma vez, sempre a conta-gotas, de modo que isso renda quatro, cinco, seis eleições, que é mais ou menos o tempo que um bairro demora para se consolidar, porque tudo isso é visto como um favor, uma concessão do governante porque em princípio é ilegal. Então é fantástico esse sistema que mantém concentrado o poder e a renda na cidade e reserva, ao mesmo tempo, uma base popular que vota, que o sustenta.

Fórum – Cidades com essa complexidade de problemas, estruturadas a partir da lógica do automóvel, com ocupações irregulares, muitas delas em áreas ambientalmente necessárias que fossem preservadas como mananciais, encostas, têm solução?

Raquel Rolnik -
Vamos por partes, a primeira questão é a seguinte: temos um enorme passivo socioambiental, não é por acaso que a maior parte das áreas mais frágeis do ponto de vista do meio ambiente estão teoricamente protegidas e são vetadas a ocupação e a urbanização. Se não estão vetadas, se define um modelo de ocupação de baixa de densidade, com pouca gente, quase não mexendo. Ora, modelo de baixa densidade com gente não mexendo é modelo de alta renda porque pobre compra um terreno e mora com muitas pessoas junto. É um modelo de lote mínimo de mil, cinco mil metros quadrados, só para o mercado de média e alta renda.
Desde 1965 o Código Florestal já diz que não pode ocupar nada na beira do rio, tem que se preservar uma faixa. Rio, lago, lagoa etc., não pode ocupar encosta com mais de 40% de declividade, não pode ocupar topo de morro, tudo está no Código Florestal de 1965. Quanto aos mananciais, há legislações estaduais e outras locais para proteger recarga de aqüíferos, represa etc. A legislação fez isso desde os anos 60 e mais intensamente nos anos 80 e 90, quando houve um avanço no ambientalismo e nessa questão. Entretanto, a pergunta que não quer calar é: muito bem, não pode ocupar aqui, onde pode ocupar? Onde é que os pobres vão morar, onde a classe média baixa vai morar? Em que padrão, em que terra, em que local? E como vamos garantir que esses locais sejam destinados para a construção de moradia popular?

Em todos os países do capitalismo civilizado do planeta - porque tem lugar que já passou por um processo de capitalismo civilizatório, que não é o caso do Brasil - você inclui como pauta fundamental do planejamento uma reserva de solo para moradia popular. É uma reserva de solo como parte do próprio processo de desenvolvimento imobiliário privado, como uma obrigação, do mesmo jeito que aqui, quando você loteia, é obrigado a deixar uma praça, um local para a escola, no mundo civilizado, quando você loteia, obriga-se a deixar uma parte da terra para produção de moradia popular. Porque se a melhor terra, as áreas aptas para urbanizar, não puderem conter a população de menor renda, ela vai para as áreas que são proibidas para o mercado formal ou que são muito restritas e e esses locais, como os mananciais, perdem o interesse para o mercado.

O problema é que a gente tem sinais contraditórios na nossa política e os sinais mais fortes nunca são os de preservação. Veja a situação de São Paulo, a área de proteção aos mananciais, na zona Sul. Define-se que ali é uma área de proteção mas cria-se uma zona industrial, das principais da cidade exatamente ali, na zona Sul. E tudo que fica acima da zona industrial está zoneado, legislado para um padrão de produção de classe média alta, verticalizado. Bairro destinado para verticalização é bairro para a classe média. Produção vertical popular não dá, porque é caro. Então não pode pobre, mas tem que ter trabalhador morando ali perto daquelas fábricas, são as oportunidades econômicas que a cidade oferece, são reais. O povo não é bobo, vai morar no lugar onde estão as oportunidades e essas oportunidades se traduzem em emprego, em escola, em hospital, em acesso à cultura; é estar em um lugar cosmopolita, e as pessoas migram porque estão interessadas nessas oportunidades de desenvolvimento humano.

Há esse problema da concentração de oportunidades em poucos pontos do território. Quanto mais distribuídas essas oportunidades, menos tudo vai estar concentrado em um lugar só. Então tem a ver, sim, com uma política de desenvolvimento de oportunidades e acho que isso é uma coisa interessante da ação mais recente no Brasil e no governo Lula, que teve uma política muito forte para tentar descentralizar oportunidades econômicas nos territórios. Isso é muito bom, aumentam as opções – posso ir para Petrolina, posso vir para cá, posso ir para a cidade ao lado ou até ficar na minha cidade, porque também tenho mais oportunidades. Tudo isso é muito importante para não condenar todo mundo a ter que migrar para poucos lugares. Agora, vai me dizer que não cabe a população que está em São Paulo ou no Rio de Janeiro? Claro que cabe. Mas você tem que ter uma política urbana includente. E quando se faz uma política includente, diminui o lucro de determinados setores econômicos que vivem dessa política excludente. 


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