PICICA: "O culto a jazzistas, resultando em páginas de prosa poética em On the Road e outras de suas obras, foi pela qualidade de sua música, pela improvisação e espontaneidade que inspirou sua prosódia bop, por viverem no underground e na noite. E por representarem ou simbolizarem a língua falada; aquela voz das ruas, da noite, dos subterrâneos." Este post é dedicado à memória do saudoso poeta Dalcy Braga, que viveu à Kerouac, e com quem ouvi muitos blues na velha e boa "Pátriamada". Os livros não paravam nas mãos de Dalcy. Presenteava-os após a leitura. Um dia, ao ver meu único Kerouac na estante (On the road), pediu-me com tanta ternura para reler este clássico da literatura marginal, que resolvi presenteá-lo. O livro, certamente, foi parar em outras mãos. Desta amizade nasceu o poema Barés 228 (guardo o original escrito em papel vagabundo) em que o autor fala do prazer de cruzar a cidade "só para ouvir um blues" à beira do rio Negro, onde montei o "Pátriamada", drinks and foods. Blues e literatura faziam parte do nosso cardápio aos sábados. Nos outros dias, rolava jazz e bossa nova. Saudades do querido amigo.
Mística da marginalidade
Obra de Jack Kerouac é permeada de metáforas de uma condição superior da marginalidade
Claudio Willer
“Tudo me pertence, porque eu sou pobre.”
Essa declaração de Jack Kerouac em Visões de Cody (L&PM, 2009, tradução de Guilherme da Silva Braga, assim como as citações a seguir) – sua obra mais complexa e substanciosa, escrita em 1952, na sequência de On the Road, e publicada postumamente em 1972 – serviria como epígrafe para ele e toda a geração beat. Poderia ser igualmente um lema do budismo, doutrina na qual Kerouac se aprofundou na década de 1950. E de movimentos como a heresia medieval do “Espírito Livre”, manifestação do que Norman Cohn, em The Pursuit of the Millenium, chama de “anarquismo místico”. Para seus adeptos, a abolição da propriedade privada era a condição prévia para o acesso ao Espírito Santo e o reingresso no Paraíso na Terra, eliminando o pecado e abrindo as portas para o exercício pleno da liberdade individual, incluindo o amor livre e a licenciosidade.
Metáforas de uma condição superior da marginalidade e de sua associação ao conhecimento estão em toda a obra de Kerouac. Trata vagabundos errantes como sábios que, através do trânsito por um lado mais obscuro da realidade, tiveram acesso a mistérios. O capítulo final de Viajante Solitário (L&PM Pocket, 2006, tradução de Eduardo Bueno), intitulado “O Vagabundo Americano em Extinção”, denuncia a perseguição policial aos representantes de “uma ideia especial e definida de liberdade” e os equipara a poetas e líderes políticos: “Benjamin Franklin era uma espécie de vagabundo na Pensilvânia (…) Será que Whitman aterrorizava as crianças da Loui- siana quando percorria a estrada aberta?”. E vai mais longe: “Jesus era um estranho vagabundo que caminhava sobre a água. Buda também foi um vagabundo que não prestava atenção nos outros vagabundos”. Para não deixar dúvidas quanto ao sentido místico da vagabundagem: “W. C. Fields – seu nariz vermelho explica o significado do mundo triplo, Grande Veículo, Veículo Menor, Veículo do Diamante”.
Quando Kerouac escreveu On the Road, trazer marginais, pobres e vagabundos errantes para a narrativa em prosa já fazia parte de uma tradição da literatura norte-americana; da vertente social que teve entre seus iniciadores Jack London. Uma das obras de London, lida por Kerouac, intitula-se The Road: é o relato de suas experiências na adolescência, viajando clandestinamente em trens em companhia de outros miseráveis atingidos pela crise econômica de 1893. Evocar London interessa pela afinidade, e por diferenças que contribuem para melhor caracterizar Kerouac. O autor de O Lobo do Mar foi um militante socialista. Kerouac nunca pactuou com a exploração e a injustiça, abominou toda modalidade de elite e qualquer autoridade. Mas, se o quadro de referências de London para interpretar a história foi o marxismo, o de Kerouac foi aquele de um budista ou neoplatônico para quem a realidade imediata era falsa, o véu de Maia. Vagabundos errantes teriam, por meio de asceses pessoais, aberto brechas na realidade ilusória. Conviver e dialogar com eles era anamnese, evocação e invocação do passado. Em particular, das grandes migrações provocadas pela crise de 1929: participar delas, ter sido um “hobo” (termo pelo qual designavam os vagabundos errantes) equivalia ao contato com um nível ontologicamente superior da realidade. Daí a proclamação veemente ao final de Anjos da Desolação (L&PM, 2010, tradução de Guilherme da Silva Braga), a propósito de viajar de ônibus com a mãe, atravessando o país da Flórida à Califórnia, onde pretendiam morar, com a bagagem dela acondicionada em sacos:
Porque eu ainda me lembro da América quando homens viajavam levando toda a bagagem num saco de papel, sempre amarrado com barbante – Eu ainda lembro da América com pessoas em fila esperando café e rosquinhas – A América de 1932 quando as pessoas reviravam o lixo na beira do rio procurando alguma coisa para vender – Quando meu pai vendia gravatas ou cavava trincheiras para a WPA – Quando velhos com bolsas de serapilheira remexiam latas de lixo à noite ou juntavam o escasso esterco de cavalo pelas ruas afora – Quando batatas-doces eram uma alegria. Mas cá estava a América próspera de 1957 e as pessoas rindo do nosso entulho (…)
Cosmovisão
Logo no início de On the Road (L&PM Pocket, 2004, tradução de Eduardo Bueno), na primeira de suas viagens, Kerouac conhece Mississipi Gene, vagabundo errante comparado a um negro: “Embora Gene fosse branco, havia algo da sabedoria de um velho negro experiente nele”. O negro que tem “sabedoria”, símbolo da exceção e de toda minoria social.
Essa mística da marginalidade é proclamada com o vigor de um manifesto em outra passagem de On the Road: “Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser negro, sentindo que o melhor que o mundo branco tinha a me oferecer não era êxtase suficiente para mim, não era vida o suficiente, nem alegria, excitação, escuridão, não era música o suficiente”. Paráfrase do que Rimbaud havia escrito sobre o “mau sangue” em Uma Estadia no Inferno: “Sou um bicho, um negro. (…) Falsos negros que sois, vós, manía- cos, perversos, avaros” (Arthur Rimbaud, Prosa Poética, Topbooks, 1998, tradução de Ivo Barroso).
Todos os seus encontros com vagabundos, marginais, pobres, assim como com integrantes de civilizações arcaicas e sociedades tribais, correspondem à ocasião para recuperar ou reencontrar algo do passado. Essa cosmovisão se traduz em reverência diante dos que estão mais próximos de um começo dos tempos; na perspectiva neoplatônica, mais próximos da verdade, a exemplo dos índios do México, sua terra de eleição, celebrados e comparados aos “antigos chineses” no capítulo final de On the Road. Mas a recuperação do arcaico também pode ser a construção do futuro, apresentação de uma utopia. É o que se vê no trecho de Os Vagabundos Iluminados (L&PM Pocket, 2007, tradução de Ana Ban), com a famosa profecia da revolução de jovens de mochila às costas, atribuída a outro beat, o poeta budista Gary Snyder (Japhy Rider no livro):
Pense na maravilhosa revolução mundial que vai acontecer quando o Oriente finalmente encontrar o Ocidente, e são caras como nós que podem dar início a essa coisa. Pense nos milhões de sujeitos espalhados pelo mundo com mochilas nas costas, percorrendo o interior e pedindo carona e mostrando o mundo como ele é de verdade para todas as pessoas. (…) eu quero que meus vagabundos do Darma carreguem a primavera no coração (…).
O trecho é programático: os hippies viriam a corresponder a seus “vagabundos do Darma” e tentariam realizar essa “maravilhosa revolução mundial”. Mais tarde, Kerouac não aceitaria os hippies como seguidores, argumentando faltar-lhes substância espiritual. Rejeitaria a politização, o messianismo e o milenarismo evidentes na poesia e na atuação de Ginsberg. Em contraste, no Kerouac de Anjos da Desolação, final de seu ciclo de viagens frenéticas e criatividade intensa (de 1949 a 1957), a tônica dominante é o pessimismo: “Só o que eu me lembro é que antes de eu nascer existia alegria”. Não há o que esperar do futuro; daí sua despedida da cena beat nessa narrativa: “Um pacífico pesar em casa é o melhor que sempre serei capaz de oferecer ao mundo, ao final, e assim eu disse adeus a meus Anjos da Desolação. Uma nova vida para mim”. Seu pessimismo foi proporcional à radicalidade de sua utopia: quis o impossível, reverter o tempo e recuperar o passado perdido. Não por acaso, ele e Neal Cassady viajavam pelos trajetos de On the Road com um amarrotado volume de Proust no bolso ou na mochila.
Busca de identidade
Kerouac descendia de franco-canadenses, os canucks. Sua primeira língua foi o joual, um francês macarrônico, dialeto daqueles nègres blancs. Aprenderia inglês na escola, aos 5 anos de idade. Sentia-se um estrangeiro, deslocado em todo lugar onde estivesse. Suas viagens foram a busca irrealizável de uma identidade. Interpretar a complexidade de sua obra e seus paradoxos pela origem seria redutor. Mas, se Rimbaud declarou-se negro, Kerouac deu um passo adiante: expressou-se como negro (especialmente em sua derradeira obra, Pic, terminada em 1969, pouco antes de ele morrer destruído pelo alcoolismo, aos 47 anos). E como canuck, em joual, em Visões de Cody, obra na qual se declara índio e nègre blanc. Um exemplo é este trecho paradoxal, por valer-se de uma língua falada (no sentido de o joual não ter registro escrito) e comentar literatura, embora por meio de obscenidades e impropérios: “Gros fou, envi d’chien en culotte, ça c’est pire – en face! – fam toi! – chrashe! – varge! – frappé! – mange! – foure! – foure moi’l Gabin! – envalle Céline, mange l’e rond ton Genêt, Rabelais?”
Conforme seus diários, Kerouac quis trazer a fala para a escrita: “On the Road é meu veículo com o qual, como um poeta lírico, como um profeta leigo (…), desejo evocar essa música triste indescritível da noite nos Estados Unidos – por razões que são mais profundas que a música. É o verdadeiro som interior de um país.” (Diários de Jack Kerouac, 1947-1954, L&PM, 2006, tradução de Edmundo Barreiros). O culto a jazzistas, resultando em páginas de prosa poética em On the Road e outras de suas obras, foi pela qualidade de sua música, pela improvisação e espontaneidade que inspirou sua prosódia bop, por viverem no underground e na noite. E por representarem ou simbolizarem a língua falada; aquela voz das ruas, da noite, dos subterrâneos. Realizar essa poética tornou boa parte de sua poesia, dos choruses de seus blues, simplesmente intraduzível. E também um texto como Old Angel Midnight (publicado em The Beat Book, organizado por Anne Waldman, Shambala, 1996), sobre sua escrita, com páginas de impropérios e algaravia: “lick, lock, mix it for pa-tit a a lamina lacasta reda va Poo moo koo – la”. Assim transferiu a produção do sentido ao som e recorreu às glossolalias, aos fonemas não semantizados. Aproximações com James Joyce nada têm de gratuito: foi uma de suas matrizes, ao lado de Louis Ferdinand Céline (que incorporou a língua falada à literatura francesa), Dostoiévski e Thomas Wolfe. Ulisses, de Joyce, é citado em Visões de Cody, Anjos da Desolação e nos Diários, e Finnegan’s Wake era lido em voz alta, para captar sua prosódia (como atesta seu biógrafo Gerard Nicosia, autor de Memory Babe).
A riqueza da obra de Kerouac é extraordinária. Declarava que On the Road havia sido um começo. Foi das límpidas prosas poéticas de The Sripture of Golden Eternity e dos modos de experimentação em Os Subterrâneos, Visões de Cody, Doctor Sax e Old Angel Midnight, além da caudalosa produção de poemas, da concisão e força de Tristessa, até narrativas mais lineares, como Os Vagabundos Iluminados. O modo como diferentes registros e vocabulários se combinam em tramas intrincadas tornam-no um autor difícil, por isso, mal assimilado, quando não ferozmente atacado por muitos críticos. Mas de enorme influência, exemplificada por testemunhos como os de Bob Dylan e Francis Ford Coppola (entre outros artistas notáveis) declarando que a leitura de On the Road foi decisiva e mudou suas vidas. E, felizmente, tema de uma bibliografia de qualidade, cada vez mais extensa e substanciosa. Assim cresce o culto a Kerouac. Ele o merece.
CULT – Qual o impacto causado quando você leu Kerouac? Joca Terron – O primeiro texto de Kerouac que li foi o poema “Rimbaud”, publicado na antologia Alma Beat. Depois disso, li On The Road. Eu tinha entre 16 e 18 anos na época, havia saído da casa dos meus pais e as descobertas de Sal Paradise e Dean Moriarty não eram muito diferente das minhas. Foi a primeira vez que encontrei personagens nos quais eu podia me espelhar. De que modo ele o influenciou? Foi uma influência comportamental nesse período da juventude. Em termos de técnica literária, não acredito ter recebido algo de Kerouac, pois sempre fui avesso à escrita automática que o caracteriza. Qual o legado de Kerouac para a literatura mundial? Fora o caráter histórico de ruptura com a prosódia norte-americana à época de seu surgimento. Acredito que os livros de Kerouac cumprem o papel de iniciar leitores. Joca Terron, escritor |
Fonte: Revista Cult
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