janeiro 16, 2011

Portugal não existe, por João Bernardo

PICICA:  "Para um país como Portugal, cuja economia é responsável por apenas 1,8% do Produto Interno Bruto da zona do euro, não é sequer de declínio da soberania que se deve falar, mas de extinção. O governo, quem quer que seja o primeiro-ministro, não pode adoptar outra política além da ditada em Bruxelas e no Banco Central Europeu." (A matéria foi postada no Diário Liberdade; a imagem é cortesia do PICICA).

Imagem postada em forexcrunch.com

Portugal não existe

Portugal - Batalha de ideias 
Quarta, 12 Janeiro 2011

Passapalavra - [João Bernardo] O Portugal nascido em 1640 foi incapaz de criar dentro das suas fronteiras uma cultura própria. Olhemos para este lugar com uma visão diferente e pensemos tudo de novo.

Há três ou quatro anos atrás foi muito comentada uma sondagem em que 27% dos inquiridos era favorável ao desaparecimento de Portugal através da integração na Espanha. Entretanto, um estudo realizado pela Universidade de Salamanca concluiu que 1/3 dos espanhóis aceitaria a união dos dois países. Houve por aí um grande alarido. Espantaram-se uns, indignaram-se outros e a minoria sentiu-se decerto aliviada pelo facto de sermos bastante menos minoritários do que supúnhamos. Todavia, reina uma confusão quando se fala de Portugal, porque se está a dar o mesmo nome a duas coisas muito diferentes.

Uma coisa é o Portugal que terminou em 1580 ao integrar-se nos domínios de um Habsburgo do ramo ibérico; outra coisa é o Portugal onde sessenta anos depois, aproveitando a crise do império dos Filipes, uma pequena conspiração colocou no trono uma dinastia nativa.

Uma recente troca de comentários num artigo publicado neste site, em que eu perdi algum tempo a participar, recordou-me até que ponto a extrema-esquerda padece de uma indiferença à arte quando está fora do poder — porque quando obtém alguma influência sobre os acontecimentos logo descobre que os artistas são os piores inimigos se não forem úteis propagandistas. Mas eu, que considero as artes plásticas o assunto mais importante da vida e também o mais significativo, posso demonstrar rapidamente que se trata de dois Portugais distintos. Vejamos a linhagem da pintura que vai desde o Ecce Homo de um mestre desconhecido, desde Nuno Gonçalves, do mestre da Lourinhã, de Vasco Fernandes até chegar a Gregório Lopes, a Cristóvão de Figueiredo e a Cristóvão Morais. E o Domingos Vieira que em 1635 pintou aquele assombroso retrato de D. Isabel de Moura só se pode entender no contexto amplamente ibérico que o influenciou e formou, não no do Portugal estabelecido cinco anos depois, onde o rei João IV se faria retratar pelo artífice Avelar Rebelo a quem mesmo um fidalgo de província como ele deveria ter tido vergonha de recorrer. Depois do hiato na pintura portuguesa quem veio? Josefa de Óbidos! Não era o mesmo país. Era um país diferente, com o mesmo nome.

O Portugal de antes de 1580 expandira-se por todo o lado, mas, em vez de lhe esgotar a seiva interna, isso como que o renovara. E a par das espoliações e das atrocidades restou uma cultura capaz de reflecti-las, ao mesmo tempo elogiosa e criticamente. Houve Camões e também Fernão Mendes Pinto e a História Trágico-Marítima, e houve Diogo do Couto. Por isso aquele Portugal conta no mundo. Pelo facto de enviar a sua gente desde o Japão até ao Amazonas o país não deixara de existir no ocidente das Espanhas.

Mas o Portugal nascido em 1640, o país dos Braganças, da Josefa de Óbidos e da doçaria freirática, foi incapaz de criar dentro das suas fronteiras uma cultura própria. Enquanto a depauperação de Portugal era consagrada em 1703 com a assinatura do tratado dito de Methuen, o Brasil desenvolvia-se economicamente, e apesar de todo o ouro que João V de lá tirou, foi no Brasil e não em Mafra nem em Lisboa no Largo da Misericórdia que se edificou uma grande arquitectura barroca, foi lá que surgiu uma inventiva escultura barroca, foi lá que se fez ouvir uma corrente original de música barroca. Aliás, o pouco de bom como algum do mau dos edifícios barrocos portugueses foi a arquitectos estrangeiros que se deveu. Já capital económica do império, o Brasil depressa passara a ser também a sua capital cultural. Portugal tinha-se esvaziado de conteúdo, o que havia estava no Brasil. E quando a metrópole quis aproveitar simultaneamente Angola, apesar do engenho e da diligência de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, foi incapaz de fazê-lo. Portugal não chegava para duas colónias ao mesmo tempo. Até que, fugindo a um general francês que nem marechal era, o monarca foi levado pelos britânicos para o Brasil. E a colónia, que já assumira a hegemonia económica e cultural, converteu-se na cabeça política do império.

Aliás, a propósito da fuga de João VI vale a pena reflectir em algo a que geralmente não se presta atenção. Também a Espanha se encontrava sem família real, que Napoleão atraíra a uma cilada e fizera prender. E isto não impediu que toda a população espanhola se erguesse maciçamente contra o ocupante francês numa guerrilha indomável e pertinaz. Os historiadores meditam por vezes, sem resultado, sobre as razões que fizeram o povo espanhol revoltar-se enquanto as nações de língua alemã permaneceram submissas a Napoleão e deixaram os seus improvisados chefes guerrilheiros sem apoio e quase sem seguidores, só tardiamente se sublevando alguns estados alemães. Mas a minha interrogação é outra, e eu gostaria de saber por que motivo os portugueses, aqui, ao lado da Espanha, não fizeram contra os invasores o mesmo que os espanhóis?

Retomo o fio da minha reflexão, com João VI já no Rio de Janeiro. Alguns anos depois, rezam os manuais, o Brasil tornou-se independente. Mas isto é falso, quem se tornou independente em 1822, ou melhor, quem foi tornado independente contra a sua vontade, foi Portugal. No Brasil o herdeiro da coroa fez o que todos eles gostam de fazer quando podem, apressou um pouco a data do acesso ao trono, e na perfeita continuidade dinástica declarou que o Brasil dispensava a metrópole. Numa carta enviada ao pai em Junho de 1822 o príncipe Pedro, nas vésperas de se arvorar em imperador, definiu como «estados independentes» «os que de nada carecem, como o Brasil», e pondo os pontos nos is acrescentou: «Portugal é hoje em dia um estado de quarta ordem e necessitado, por consequência dependente».

Quando em Portugal as Cortes souberam que haviam ficado sem o Brasil enviaram uma missiva ao poder executivo perguntando quantas e quais eram as colónias portuguesas e, mais especificamente, se Timor e Solor pertenciam ou não a Portugal. E note-se que os deputados daquela época eram o escol da nação, os principais negociantes, os juízes mais cultos, os burocratas mais instruídos, os oficiais do exército que sabiam matemática. Aquela interrogação é duplamente curiosa, por um lado porque mostra a verdadeira dimensão do império colonial. O que realmente contava para o Portugal gerado em 1640 era uma metrópole colada como adesivo ao Brasil. Por outro lado, mais interessante ainda me parece ser a reacção da elite política, económica e militar, que logo que soube que ficara sem colónia a ocidente se lembrou de que existiam outras a sul e no oriente. A elite portuguesa, reunida nas Cortes liberais, não pensou na possibilidade de construir alguma coisa dentro das fronteiras do reino.

Com efeito, será o mais lúcido dos herdeiros do liberalismo vintista quem irá orientar Portugal e os portugueses para África. A imperturbável coragem física de Sá da Bandeira só tinha equivalente na sua enorme curiosidade intelectual, e ambas alicerçaram uma notável inteligência prática. Mas ao mandar os portugueses caminharem a partir das costas africanas, onde até então se haviam localizado os seus empórios comerciais, para ocuparem espaços de colonização no interior do continente e «construir outro Brasil em África», Sá da Bandeira desencadeou um processo que forneceu a ocasião, quando não só o pretexto, para um movimento idêntico por parte de metrópoles muitíssimo mais poderosas. O tratado de Berlim e depois o ultimatum britânico, que cercearam as aspirações africanas dos liberais portugueses, foram a consequência última, e de todo imprevisível, do arrojo com que Sá da Bandeira havia reconhecido a impossibilidade de dar nova vida a Portugal só nas fronteiras ibéricas.

E foi o ultimatum britânico que ditou a falência da monarquia, mostrando que os Braganças eram incapazes de levar a cabo a regeneração do país pelo colonialismo, uma vocação que Eça de Queiroz enunciou simbolicamente através da regeneração da casa ilustre de Ramires. Tornada patente e pública a inépcia da coroa nas questões coloniais, o Partido Republicano, que até à data do ultimatum fora visto como um clube de lunáticos, adquiriu um crescente apoio popular, que lhe possibilitaria vinte anos depois espantar o rei para a Ericeira e após dois dias de canhoneio na capital proclamar a república. Logicamente, o Partido Democrático não poderia senão precipitar o país na primeira guerra mundial, para que Portugal se sentasse ao lado dos vencedores aquando da distribuição dos despojos, e já que decerto não receberia nada — ninguém contava com isso — pelo menos que não perdesse o que tinha.

Salazar foi, nesta perspectiva, inteiramente lúcido quando, em Março de 1961, proclamou «para Angola, e em força». Os «ventos da mudança» de que os outros falavam não sopravam aqui, porque a Grã-Bretanha pôde ver as suas colónias emanciparem-se sem que houvesse quaisquer riscos de perda de identidade da metrópole. Nem a França, ou mais exactamente Paris, deixou de ser o que era pelo facto de a África Ocidental e Equatorial Francesa, Madagascar e a Indochina terem deixado de ser o que haviam sido. Até a pequenina Holanda soube ser um país estritamente europeu, próspero na economia e modelar na cultura, sem as suas Índias Orientais. Mas Portugal?

O golpe militar de 25 de Abril de 1974, todos sabemos, não se destinou originariamente a acabar com o fascismo, mas a demitir um governo que não queria pôr cobro à guerra em três colónias, embora os oficiais e os soldados sentissem que era impossível vencer. O derrube do fascismo veio por acréscimo, uma espécie de brinde que obtivemos dos movimentos de libertação africanos. Mas merecêmo-lo, porque durante um ano e meio fizemos qualquer coisa de inédito, que nunca havia sido experimentado no Portugal nascido em 1640, tentámos inventar um país dentro das fronteiras portuguesas. De uma maneira ou de outra, ou de várias maneiras ao mesmo tempo, a extrema-esquerda procurou em 1974 e 1975 criar um Portugal inteiramente novo, económica e socialmente, e que fosse um país original no mundo, capaz de trazer soluções diferentes, que ninguém tivesse feito nem visto. E fomos derrotados.

Não creio que a esquerda anticapitalista, apesar de contar já dois séculos de derrotas sucessivas — e, naturalmente, no combate ao capitalismo só poderá haver uma vitória, que é a última — se tenha apercebido até que ponto as derrotas são profundas quando são impostas no plano social mais do que no político. No plano social as derrotas consistem na verdadeira desorganização e reorganização da classe trabalhadora, na destruição dos seus elos mais fortes de solidariedade, na dissolução dos seus centros de resistência tradicionais, no apagamento da sua memória e numa re-hierarquização interna, que é a condição da submissão aos exploradores. E assim, fracassada a tentativa de 1974 e 1975, voltámos plenamente ao Portugal de 1640, incapaz de existir nas suas fronteiras próprias porque é desprovido de tudo, e já sem lugar para onde ir além dos mares. A adesão de Portugal à Comunidade Europeia foi um logro para os outros países europeus, que pensaram que tinham adquirido alguma coisa e afinal ficaram só com um terminal de caminhões TIR e umas dezenas de centros comerciais e de estádios de futebol. Um país sem economia, e sem vida autónoma nem identidade cultural também.

Tudo o que a esquerda portuguesa consegue hoje fazer é reclamar ao primeiro-ministro que adopte outra política, como se Lisboa fosse um centro soberano e o governo pudesse escolher. A soberania das principais nações entrou em declínio desde que as grandes companhias industriais e de serviços adquiriram uma dimensão transnacional e puderam iludir as determinações dos governos, e desde que os grandes bancos e as grandes companhias financeiras se tornaram igualmente transnacionais e deixaram de ser fiscalizados nos espaços nacionais. Para um país como Portugal, cuja economia é responsável por apenas 1,8% do Produto Interno Bruto da zona do euro, não é sequer de declínio da soberania que se deve falar, mas de extinção. O governo, quem quer que seja o primeiro-ministro, não pode adoptar outra política além da ditada em Bruxelas e no Banco Central Europeu. E como considerar o recente interesse pela eleição de um presidente da República senão como um exercício de futilidade? O governo não existe. E existe Portugal? O Portugal de 1640 só conseguiu subsistir projectado em espaços coloniais. E o Portugal de 1974 e 1975 desapareceu até da memória dos que o tentaram construir. Agora a extrema-esquerda portuguesa, ou aquilo que aqui passa por extrema-esquerda, reclama que a Confederação Geral do Trabalho faça uma revolução que os sindicatos não querem fazer e que nós somos impotentes para prosseguir. Sejamos realistas. Olhemos para este lugar com uma visão diferente e pensemos tudo de novo, porque Portugal não existe.

Nota
Este texto constitui uma versão reescrita e actualizada de um artigo publicado originariamente em Política Operária [Lisboa], ano XXII, nº 107, 2006.

Fonte: Diário Liberdade

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