janeiro 13, 2011

"Um condenado à morte que escapou": crítica de cinema por Bruno Cava

PICICA: "É impossível não se lembrar do condenado à morte do romance O Estrangeiro (1943), de Albert Camus – que, aliás, era amigo e interlocutor de Bresson. Ambos os protagonistas, Mersault e Fontaine, são inadaptados. Vivem no absurdo de uma realidade hostil que os culpa e os pretende assassinar, esvaziada de esperança que, por isso mesmo, instaura a liberdade individual."

Um condenado à morte que escapou, Robert Bresson, 1956.

intermedio | 14 de novembro de 2006 | 
Trailer: Un condenado a muerte se ha escapado (Un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut / A man escaped) Dir. Robert Bresson, 1956

Crítica: Um condenado à morte que escapou, Robert Bresson, 1956, França, 35mm, pb, 99 min (em DVD pela Lume Filmes - 2010). Publicada originalmente no Amálgama, em 4 de janeiro de 2011.




Se o leitor me pedisse para indicar um único DVD para ser assistido nestas férias, não hesitaria. Um condenado à morte que escapou, obra magna do cineasta francês Robert Bresson, acabou de ser relançado no Brasil pela Lume Filmes, em cópia impecável. O longa de 1956 se baseia na história real de André Devigny, herói da Resistência Francesa, que escapou de várias prisões nazistas durante a Segunda Guerra.

Fontaine (François Leterrier) é encarcerado pelos nazistas na fortaleza de Montluc, julgado e condenado à morte. O filme se inicia com a condução dele ao presídio, ocasião em que tentará a primeira e bastante atabalhoada fuga. Torturado e confinado em solitária, promete aos algozes jamais tentar escapar de novo. O restante da hora e meia será ocupado pelo planejamento industrioso e pela execução precisa da fuga improvável de Fontaine.

Logo no primeiro plano, os letreiros anunciam que “a história será contada tal e qual aconteceu”. Robert Bresson leva a sua obsessão por simplicidade às últimas consequências. Boa parte da narrativa é elíptica, pontuando somente os acontecimentos principais. A dramaturgia reduz o drama e a emoção ao imperceptível. O espaço cênico naturalista restringe-se ao essencial – aos objetos que Fontaine instrumentalizará para o plano de fuga: uma colher, um livro, um lampião, os arames da cama etc. A todo o momento, o som intervém e “limpa” a imagem de elementos visuais. Os personagens não conversam: sussurram poucas palavras, com o máximo de objetividade. Muitos planos de dão em total silêncio e alguns ao som de Mozart.

Existe uma tradição de leitura da obra de Robert Bresson por assim dizer “espiritual”, que abusa de analogias e alegorias metafísicas. Assim, O Processo de Joana D´Arc (1962) embutiria um conteúdo cardecista, enquanto O Dinheiro (1983) é pautado pelo tema da coletivização da culpa – para falar apenas de dois filmes mais recentes do diretor.

Daí também Um condenado à morte que escapou por vezes ser interpretado como metáfora da salvação cristã. O homem sentenciado à danação perscruta dentro de si uma força interior imensurável, isto é, Deus, consegue transpor os muros do mal e se salva. Contribuem à dita leitura o subtítulo bíblico “O vento sopra onde ele quer” (João, 3:8), o estilo austero e meditativo (monástico…) e as declarações do próprio Bresson, segundo o qual a evasão do tenente Fontaine “é guiada por uma mão invisível e implícita”.

Não vejo assim e não posso concordar com as palavras do cineasta.

Um condenado à morte que escapou admite interpretação estritamente materialista, que é mais fecunda do que a espiritual. Fontaine escapou não porque tinha esperança, mas porque a queria concretamente e trabalhou pra isso. Desejava-a com todas as suas forças. O personagem não perscruta dentro de si nenhuma voz divina para consolá-lo e dar-lhe forças. Desde a primeira cena, está possuído pela revolta diante da clausura. Fontaine só consegue pensar na liberdade e mobiliza todo o seu entorno nesse intento aparentemente impossível. À fatalidade imposta pelo fascismo, obstina-se contra o destino. Tentará custe o que custar cruzar a linha do possível e escarnecer da necessidade.

A austeridade implacável do estilo não significa recolhimento à interioridade, mas foco nas coisas mesmas, na sua materialidade. A câmera não cessa de mostrar as mãos do protagonista no trabalho de transformar o mundo, de negar e direcionar os instrumentos da opressão prisional, sintetizando-os para o projeto de fuga. Além disso, Fontaine não se salva sozinho. Leva um companheiro, sem o qual não teria êxito na jornada. E mais: só consegue completar o plano com a contribuição dos demais presos, com os quais aprende nas conversas de pátio. Nessas trocas de experiência, Fontaine sofistica sucessivamente as suas estratégias, ao articular os conhecimentos numa espécie de inteligência coletiva.

É impossível não se lembrar do condenado à morte do romance O Estrangeiro (1943), de Albert Camus – que, aliás, era amigo e interlocutor de Bresson. Ambos os protagonistas, Mersault e Fontaine, são inadaptados. Vivem no absurdo de uma realidade hostil que os culpa e os pretende assassinar, esvaziada de esperança que, por isso mesmo, instaura a liberdade individual. Ambos os personagens dispensam a salvação resignada oferecida pelo padre e não renunciam ao ódio. Mas existe uma grande diferença. Se o aprisionado Mersault se acalma e, feliz, “deixa-se cair sobre a cama”, Fontaine irá desmontar essa mesma cama para construir a sua liberdade com as próprias mãos.


::: Um condenado à morte que escapou, Robert Bresson, 1956, França, p&b, 99 min., 35mm. Lançado em DVD (2010) no Brasil pela Lume Filmes :::

Fonte: Quadrado dos Loucos

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