PICICA: "Se juntarmos o efeito conjunto dos milhões de blogues e videologues e sites e tuíter, estamos "roubando" a audiência do Jornal Nacional (que aliás vem despencando). Chama-se efeito cauda longa."
9 de janeiro de 2011
A nova militância: enxamear é preciso.
A democracia das redes.
Semana passada, estava no MSN com o Danilo, do blogue O Inferno de Dândi. Falávamos de democracia e militância pela internet e, lá pelas tantas, pintou a expressão "tipo um comunismo das redes". Em parte, isso motivou um texto dele no Inferno: Internet: a teia rebelde que conecta. Sigo o exemplo e coloco aqui a minha reflexão a respeito.
"Comunismo das redes" é uma expressão boa demais para ser inédita. Guglando vê-se que não é. Em 2007, Fábio Malini, midialivrista e professor universitário, publicou um artigo intitulado O Comunismo das Redes: sistema midiático, p2p, colaboração em rede e novas políticas de comunicação na Internet.
Nele, Fábio explica como se desenvolveu um novo modo de produzir a partir das redes sociais. Em vez da organização hierárquica e compartimentalizada tradicional, nas redes colaborativas a produção se dá horizontalmente, numa vibração conjunta de nós equipotenciais. Em vez do trabalho subordinado e "em equipe", chegou a hora do trabalho comum, em que todos produzem e consomem, numa troca superveloz de informações e experiências.
Não se trata apenas da dinâmica da internet, mas de todo o sistema global de produção, também conhecido por pós-industrial ou pós-fordista. As empresas hoje dependem da rede de informações (análise de demanda, perfil do consumidor, feed-back etc), da network de parceiros e fornecedores, da constituição e fidelização de públicos, cada vez mais dispersos e volúveis.
No produto, predomina o valor intangível: a marca, a publicidade, a "mensagem", o visual, o selo "verde" ou "light" ou qualquer outro referencial ao consumidor; --- e não mais o valor da matéria-prima e confecção, cuja participação no preço final é menor. A imagem chega antes do consumo.
Mas quem produz todo esse capital simbólico? Nós mesmos: na criatividade e comunicação, na partilha de mundos. As empresas vêm depois pra se apropriar dessa produtividade, fazendo dos desejos da multidão um produto de (sua) marca.
Mas quem produz todo esse capital simbólico? Nós mesmos: na criatividade e comunicação, na partilha de mundos. As empresas vêm depois pra se apropriar dessa produtividade, fazendo dos desejos da multidão um produto de (sua) marca.
Portanto, hoje, as empresas precisam se apropriar da produtividade imanente à comunicação social, e codificá-la em mercadorias. Nisso, a internet assume cada vez mais o papel central. Só que, veja você, essa apropriação não se dá por uma necessidade intrínseca ao sistema. Quero dizer, no passado, na sociedade industrial, se dizia que para fabricar objetos era preciso concentrar capital e investir nos meios de produção.
No século 21, não mais. A fabricação muitas vezes nem ocorre mais na empresa. É terceirizada e globalizada, uma "externalidade". Pois esse momento "material" vale menos que o capital "imaterial" (marketing, desejos, imagens) investido no produto. Então como a empresa justifica a apropriação (o lucro)? Por meio de monopólios, obtidos politicamente do estado e consolidados pelo direito: copyright, proibição da cópia, concessões estatais de comunicação, limitações da liberdade na internet.
É por isso que a Microsoft desacredita e combate o software livre e o código aberto (como o Linux), e se vende como qualidade superior, cobrando "para a felicidade de seus usuários". A mesma Microsoft sobrevive da difusão global de conhecimentos e informações, que a empresa incorpora em produtos exclusivos. Faz isso pela via do copyright e da publicidade, e não por alguma qualidade irrepetível. Do mesmo modo, um canal de televisão converte conteúdos em ibope, menos por seu "padrão de qualidade", do que pela via político-jurídica. Isto é, das concessões estatais e do monopólio sobre transmissões estratégicas (ex.: jogos de futebol).
O "padrão de qualidade", a "felicidade do usuário" e factótuns semelhantes buscam legitimar um monopólio que não tem razão real de ser, senão como manutenção de privilégios.
Tudo isso vai pro beleléu com o comunismo das redes. Não preciso mais perguntar: o que vou ver hoje na TV? Não. Agora posso fazer TV. Posso lançar o meu videologue. Se chamar a atenção, irá bombar no youtube, e terá milhares, quiçá milhões de acessos. E mesmo não se tornando viral, de qualquer forma serei mais uma voz ativa na multidão. Se juntarmos o efeito conjunto dos milhões de blogues e videologues e sites e tuíter, estamos "roubando" a audiência do Jornal Nacional (que aliás vem despencando). Chama-se efeito cauda longa.
O que muda com a difusão da produção em rede?
Em primeiro lugar, o fim do jornalismo como o conhecemos. O comunicador deixa de ser o empregado da redação, funcionário de carreira, vinculado às linhas editoriais definidas pelos donos do veículo. A liberdade de imprensa torna-se finalmente viável. A democracia implica ir além do modelo privado e do modelo estatal. Porque são irmãos siameses, dependem-se mutuamente num nível fisiológico. A TV Globo também é estado.
Em segundo lugar, em termos culturais, multiplicam-se os protagonistas. Quantos músicos e cineastas não estão sendo formados agora mesmo, graças ao acesso geral a inúmeros filmes, canções, revistas, diretores, bandas, estilos e todos quantos? A web 2.0 potencializa a produção e circulação de fotos, áudio, vídeos , design etc. Ao mesmo tempo, nunca se leu e escreveu tanto. O tuíter está aí para provar. Quantos não serão blogueiros-artistas, publicando conteúdo em myspace, facebook, wordpress, orkut? Quantos escritores concisos e aforísticos a tuiteratura não vai germinar? Escrever e debater em 140 caracteres é uma experiência engrandecedora e deveria ser incentivada em todos os níveis do ensino.
Não existe "classe artística". Como se produzir cultura consistisse numa atividade esotérica, especial, separada dos trabalhadores "comuns". Todos podemos ser cidadãos-produtores e, de fato, somos. Já dizia Henry Miller: "Quero ser artista; logo, sou artista." Mais do que isso, criar e difundir se realizam como condição e efeito da cidadania. No seu sentido material: potência em ato. Juntos, podemos inventar o mundo que desejarmos e não mais vivermos no universo formatado pela publicidade e vendido pelas empresas: achatado, sem graça, previsível, cosmético, unidimensional, fechado à inovação.
Em terceiro lugar, tem-se a chance de cada um gerar a sua renda à margem do emprego formal e das corporações. Eis uma liberdade radical: nem escravo do mercado nem do estado. Significa sobrepujar a divisão fundamental do capitalismo, que separa tempo livre (lazer, secundário) de tempo de trabalho (produção, primário). Se o cidadão-produtor for capaz de organizar-se produtivamente, se puder reunir forças para viver na precariedade, atingirá o nirvana comunista: fará o que bem entender e assim ficará (muito) rico, produzindo para todos. Daí como é central a questão da sustentabilidade. Idem a questão da cópia livre, que assegura a difusão dos conteúdos e sua mixagem.
Em quarto lugar, surge uma nova forma de organização política. Antes, procedia por coletivos mais ou menos orgânicos, com militantes razoavelmente profissionais. Porque o trabalhador "comum" não tinha tempo para deslocar-se o dia inteiro e comparecer à agenda infinita do ativismo político e suas reuniões intermináveis em domingos ensolarados.
Agora, qualquer um com um computador e internet pode militar nas mais diversas agendas políticas. Coordenar-se em múltiplos movimentos não só dentro da net, mas sobretudo com as repercussões fora dela. Antigamente, a militância funcionava como a escola de samba: ordenada, disciplinada, hierárquica. Agora, é o bloco de rua. Mais criativa, mais heterogênea, dá margem a mais "anomalias". E, convenhamos, é muito mais divertido. Quem é repelido pela pobreza e caretice da vida política nas militâncias "duras", venha para a experiência mais carnavalesca das redes.
Além disso, quem produz nas redes sociais é imediatamente um militante. Contribui para o efeito cauda longa e toma ibope da imprensa velha e da cultura velha (identitária). Faz circular a riqueza dos conteúdos, o que já é por si só geração de valor. O caso não é mais tomar o poder do estado para fazer a revolução, e sim constituir um novo mundo, um novo campo de possíveis. Possibilitar novos espaços de liberdade e direitos. O movimento social não se limita mais a pressionar o governo, esperando concessões, mas deseja e constrói ele mesmo a sua realidade.
Vejam-se as tentativas de "regulamentar" a internet, no Brasil (batizado "AI-5 digital") e na Venezuela. Vêm a posteriori para impor restrições, codificar a circulação de informações, criminalizar. A multidão constitui novas liberdades e só depois, num segundo momento, o poder constituído aparece para controlar e lucrar em cima. É que o estado não concede direitos. Reconhece-os depois de criados e afirmados, pela multidão. Afirmá-los, ou seja, brigar pelo que é nosso, consiste em exercer o direito de resistência, o poder constituinte que permanece atuante num regime democrático.
Uma boa metáfora para o novo ativismo é o enxame. Não possui comando central ou direcionamento superior. Mas tem a sua inteligência. O enxame adensa e dispersa em função de situações concretas. A rede difusa possui as suas atuações momentâneas. Ataca ao convergir sobre o alvo de muitas direções. Quem já experimentou o dissabor de ser atacado por abelhas sabe o quão irresistível é o enxame enfurecido.
Realizar a democracia hoje passa pela mobilização produtiva, pelo enxameamento. Criar valores tornou-se um ato tão político quanto disseminá-los. É preciso também devorar os conteúdos publicitários, como um enxame de gafanhotos, devolvendo-os para o campo de possíveis da vida. Fluxos e redes: palavras-chave para as velocidades de nosso tempo. Uma inédita sensibilidade ético-política: juntar os fios e trançar uma rede. Vibrar um mundo novo, de renda autônoma e liberdade viva.
==============================
O leitor pode se interessar pelas resenhas abaixo do QdL. Nelas, aprofundam-se algumas das concepções deste artigo:
* Pode sair coisa boa quando Deleuze encontra Marx?, sobre As Revoluções do Capitalismo, de Maurizio Lazzarato
* Que aconteceu com o meu marxismo?, sobre Os Marxismos do Novo Século, de César Altamira
* O economista das revoluções pós-modernas, sobre O Lugar das Meias, de Christian Marazzi
* Amor e pós-capitalismo, sobre Commonwealth, de Antônio Negri e Michael Hardt
* Por uma esquerda pós-moderna, sobre MundoBraz, de Giuseppe Cocco
Nenhum comentário:
Postar um comentário