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PICICA: Passava da 01h30 do dia 17 de dezembro quando
encerramos o debate “Descriminalização da Maconha” no auditório da Faculdade de
Ciências da Saúde, na Universidade do Estado do Amazonas. O êxito do debate
deveu-se a três escolhas: o horário de 22h00, o dia de sexta-feira e o interesse
por um tema que desperta paixões. Sem falar da coragem de por na pauta do
debate universitário um tema sobre o qual reina confusão e ambigüidade. À
frente da iniciativa Ranniery Mazzily, professor de Administração da Escola de
Ciências Sociais da Universidade do Estado do Amazonas, com quem dividi, na condição de mediador do debate, o desafio
de recomposição do saber e da liberdade, perdidas na longa noite do
autoritarismo nacional, toda que vez que pinta um tema tabu em nossa sociedade.
Só faltou combinar com “os russos”. Durante todo o evento, os integrantes da
mesa oscilaram entre todos os matizes do conservadorismo, cabendo um honroso
contraponto a dois militantes antiproibicionistas: Victor Alexandre e este
escrevinhador, que se manifestou no início, com a leitura do texto abaixo com a
finalidade de provocar o debate, e ao final, para a abordagem genérica de alguns
pontos levantados no decorrer das falas. Os outros oito debatedores
manifestaram suas convicções desde argumentos fundamentados nos avanços do arcabouço jurídico
que diferencia o traficante do consumidor, passando pelo temor do que aconteceria num "país de analfabetos funcionais" (sic) em caso de liberação da droga, até a crença no ideal de uma sociedade
sem drogas, ainda que os textos bíblicos demonstrem o contrário. Entre os corolários
mais repetidos: maconha como porta de entrada para outras drogas e defesa de vida
numa sociedade sem drogas. Ou seja, para este grupo de debatedores, a depender deles,
não há chance para a descriminalização, face à suposta falta de maturidade educional, cultural e outros quetais. Percentual tão desigual pode ser um
reflexo de opiniões publicadas e/ou veiculadas pela desigualdade com que o tema
é explorado por uma mídia de mão única, em que são raros os espaços para visões
antagônicas. O contraditório, para esta mídia, costuma ser banalizado, quando não, pior, criminalizado. A liberdade de linguagem ainda é uma utopia.
***
Comunicação Preliminar para o debate sobre Descriminalização da Maconha
No filme Cortina de Fumaça, o jornalista Rodrigo Mac Niven
nos oferece a nova visão do início do século XXI sobre a questão da droga e põe
em discussão a política de drogas vigente no mundo, rompendo o silêncio e
questionando o discurso proibicionista. O filme enfatiza as conseqüências
político-sociais em países como o Brasil e em particular na cidade do Rio de
Janeiro. Médicos, pesquisadores, advogados, líderes, policiais e representantes
de movimentos civis são entrevistados em nível nacional e internacional.
Antes de avançar nesta comunicação preliminar, peço aos
convidados deste debate que comecem a formular suas respostas para as seguintes
indagações: Por que as pessoas usam drogas? Para que servem as drogas? E quais
as conseqüências, em sua opinião, da política proibicionista conhecida como
“Guerra às Drogas” no estado, e em particular na cidade de Manaus?
Penso que tais respostas poderão nortear o público presente
a respeito do lugar de onde os senhores vêem e analisam o uso e o abuso das
drogas na sociedade atual.
Prosseguindo. Segundo Rogério Rocco, num artigo escrito para
o “O Grande Livro da Cannabis” (Jorge Zahar Editor), no Brasil, as duas
medicinas – a oficial e a popular – não dialogam quando o assunto é a cannabis.
O uso recreativo da maconha pelas populações marginalizadas, ao esbarrar no
moralismo das elites e associada à idéia de vagabundagem e malandragem, também
foi mal visto pelos especialistas brasileiros, que não disfarçaram sua aversão.
Tanto assim que, entre 1915 a 1946, os estudos insistiram em enfatizar as
relações da maconha com a loucura, o vício e a morte.
Entretanto, em 1996, com o referendo popular na Califórnia,
favorável à utilização da cannabis no tratamento de pessoas com câncer, aids e
outras enfermidades, é que o Brasil voltaria a por na pauta do debate público o
uso médico da planta.
Reconhecida como remédio contra enjôos e vômitos, num
primeiro momento, foi graças a um estudo do Departamento de Psiquiatria de
Escola Paulista de Medicina (EPM) que cairia o primeiro mito: de que a maconha
seria a droga de passagem para outras mais fortes.
Essa conclusão foi resultado da experiência do psiquiatra
Dartiu Xavier da Silveria, Diretor do Proad – Programa de Orientação e
Assistência ao Dependente – da EPM, ao demonstrar que a maconha pode servir
como alternativa para o abandono de drogas pesadas, como o crack.
Ainda são poucos os defensores dos múltiplos usos da
cannabis na medicina. Neste curto espaço de tempo de debate público, as vítimas
estão por todos os lados, seja entre usuários, defensores do abrandamento da
legislação ou militantes da descriminalização do uso da cannabis.
Todos são vítimas de um Estado que insiste em impor valores
morais mediante a criminalização, a punição de usuários e a desqualificação dos
defensores de uma nova relação entre as plantas e a humanidade. Estamos no
início de uma dura jornada, como se pode perceber nos debates públicos que tomam
conta do país.
Não surpreende que homens de ciência, ao lado de segmentos
fundamentalistas da sociedade brasileira, sejam co-responsáveis pela sustentação
de políticas retrógradas vigentes no país. É bom lembrar que ainda no século
XX, a ciência perderia o mito da neutralidade. Seus argumentos, entretanto, vem
sendo desmontados ali onde seus discursos deveriam ter mais consistência: no
campo da medicina. Outros usam indevidamente o discurso médico conservador e
escorregam na lógica. Certamente, o uso medicinal crescerá no país. O
religioso, com algum esforço, idem. O gargalo está no falso moralismo quanto ao
uso recreacional, num país inundado no álcool e no tabaco. Enquanto isso,
perdemos dinheiro na exploração racional da cannabis sativa, como fazem os
portugueses.
Vale a pena reproduzir a fala de Domiciano Siqueira, da
Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos, sobre as três visões
que imperam na sociedade sobre o uso de drogas: a da saúde, da justiça e da
religião. A Saúde vê como uma doença. A Justiça, como um delito. E a Religião
como um pecado. Para ele o usuário de um modo geral não faz essa divisão
didática, mas na prática ele sabe o peso desses conceitos, que fazem dele ou um
doente, ou um deliquente, ou um pecador. Poucos escapam desses discursos. Assim
sendo, muitos reagem de acordo com aquilo que se espera dele. O “doente” sabe
que o caminho dele é o hospital; o “delinqüente” sabe que o caminho dele é a
cadeia, e o “pecador” sabe que o caminho dele é o inferno. Só que neste caso,
segundo Domiciano, ele tem que morrer. E conclui afirmando que talvez seja por
isso que o Brasil é o país que mais mata usuário de drogas no mundo, tanto
quanto os homossexuais e as prostitutas. Para Domiciano isso não significa que
somos mais maus que os outros países. É que entre nós difundiu-se e alastrou-se
por via das nossas instituições conceitos que organizam nossas cabeças. O pior
de tudo é que políticas são construídas a partir desses conceitos. Daí o
esforço em mascarar o ódio contido nessas políticas eufemísticas e suas
campanhas publicitárias, que mal disfarçam a intolerância dos nossos agentes
públicos em suas rotinas de trabalho.
Com isso voltamos ao início desta comunicação quando sugeri
que nossos convidados expressassem seus pontos de vista sobre as drogas. Porque
em verdade, não temos problemas com as drogas, mas com os conceitos que as
envolve. E aqui, valho-me da experiência desse experiente redutor de danos que
é Domiciano Siqueira. Para ele, temos que construir um quarto conceito de
drogas, que é o olhar da cidadania; que não vê como doença, como delito, nem
como pecado o uso de drogas, mas como um direito do cidadão. Afinal, diz ele,
“da pele para dentro, quem manda é o cidadão”.
Que não me ouçam os operadores da justiça, para quem
declarações como essa configura apologia ao uso de drogas. Lembro-me de uma
passagem do filme “Cortina de Fumaça”, no qual se lê a frase: “Algum dia,
quando a descriminalização das drogas for uma realidade, os historiadores
olharão para trás e sentirão o mesmo arrepio que nos produz a Inquisição”.
Domiciano afirma que é necessário, além do reconhecimento de
um direito negado, enfatizar que todos os demais deveres deverão ser fielmente
guardados e cumpridos: não matar, não roubar, não ser violento. Mas aqui, temo
que ainda continuemos cativos da mesma visão moralista que dita regras do bem
viver, sem atentar para as condições ou a falta de condições estruturais para a
geração de saúde, empregos, moradia e os benefícios da cultura contemporânea
que permita uma vida digna.
Em algumas questões da relação universidade e sociedade
sofremos de um atraso vexatório. A UEA acaba de quebrar um deles. O mesmo onde
claudicou a vetusta universidade federal. Nem seus 100 anos de existência lhe
deram maturidade suficiente para responder pedagogicamente ao uso de maconha em
seu campus, transformando o fato num espetáculo tão ao gosto de alguns setores
da mídia sensacionalista. Merece todos os elogios o esforço do professor
Ranniery Mazzily, como professor da Disciplina de Política Públicas, e
coordenador do Curso de Segurança Pública e do Cidadão, em superar parte dessa
dívida para com a sociedade amazonense.
Estamos diante de uma tarefa que me lembra a advertência do
ilustre professor Doutor Alfredo Wagner, responsável pela Nova Cartografia
Social da Amazônia, vinculada à UFAM, e mais recentemente à UEA, ao estabelecer
uma leitura crítica dos esquemas interpretativos para explicar a Amazônia. Os
fundamentos dessa hegemonia, baseados num estoque de bens simbólicos, vinham
sendo reeditados desde 1755, quando se adensaram as reformas pombalinas, de
modo que a vigência de seu esquema interpretativo e suas variações vigoraram
até1988, quando passou a vigorar a nova Constituição Federal. Só aí foi
considerado a existência de um Estado Pluriétnico, que confere proteção a
diferentes expressões étnicas.
No caso da maconha, a criminalização dos usuários é um
fenômeno recente na história da humanidade. A nosso favor, um mundo em que as
primaveras anunciam o despertar de uma nova crítica social. Nesse contexto,
cabe à universidade auxiliar na construção de outras percepções sobre problemas
sociais da atualidade com todo o cuidado que elas merecem. Sobretudo para que
não caiamos em surradas fórmulas de ações humanitárias, que mais escondem do
que revelam as origens do mal estar na sociedade atual. Ou politizamos esses
problemas, ou teremos novos movimentos messiânicos de salvação das almas
perdidas. Afinal, as “toxicomanias”, enquanto suposta “epidemia”, nunca foram
destino, senão resultado de uma assimetria social. Para o que nos interessa, é
preciso cuidado para não cair na armadilha de vincular a miséria da dependência
a substância psicoativas a características pessoais, como se fosse um fator de
responsabilidade individual, num quadro de injustiça e desequilíbrios sociais.
Seria justificar a desigualdade. A exclusão dos “drogados” da vida social é apena
uma das formas da miséria das novas formações capitalistas que emergiram a
partir dos anos 1980. Gostaria de convidá-los a um novo horizonte civilizatório
começando pela Descriminalização da Maconha. Bom debate a todos.
Por Rogelio Casado
Manaus, 16 de dezembro de 2011
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