PICICA: Para minha irmã Lilian - doutora em enfermagem, professora universitária, orgulho da família, praticante de aikidô, feminista, mãe do baíndio Gabriel e feminista - que se abalô de Salvador pra passar o Natal com os seus em Manaus em Manaus.
Um texto de Catarina Correa, blogueira feminista que nos faz aguardar ansiosamente seu vôo solo em um post no futuro próximo.
É tão fácil discordar tanto de um quanto de outro. Também é igualmente fácil concordar com ambos, ou alternar-se entre eles. De tempos em tempos, ou em diferentes situações, um pode fazer mais sentido do que outro, falar mais alto ao coração de pessoas que se afirmam com identidades múltiplas, superpostas, contrapostas ou dispostas de qualquer outra maneira.
À parte da clara crítica que a foto divulgada no Facebook faz à cantora Lady Gaga (na minha opinião, uma ofensa à deusa toda poderosa, um pecado quase), a brincadeira nos remete à uma longa e duradoura discussão acerca da formação e manutenção das nossas identidades. Não suponho que exista somente essa dicotomia tão díspar, nem pretendo questionar se temos ou não identidade, ou se tal categoria é ou não tão totalizante que oprime mais do que nos afirma como sujeitos (políticos ou sociais).
Pretendo, no entanto, me focar na afirmação de ambos os contrapostos na imagem e que me são tão caras, em espaços diferentes. Acho mesmo fantástica a observação de Foucault, ainda que a explore apenas superficialmente aqui, sobre como nos conformamos em função das relações de poder da sociedade. Assemelha-se, para mim, ao ‘tornar-se mulher’ de Beauvoir, pois parte da compreensão de que a expressão de cada pessoa está mais relacionada à sua trajetória e contexto social do que às suas características biológicas propriamente ditas. Neste sentido, pode-se nascer do sexo masculino e ser mulher, pode-se nascer do sexo feminino e ser homem, pode-se nascer do sexo feminino e tornar-se mulher, mãe, ou nascer do sexo feminino e tornar-se mulher, trabalhadora, é possível tornar-se ambos, qualificados tanto no sexo feminino, quanto no masculino, ou em qualquer outro que se suponha existir, ou que se queira fazer existir. Concordo, portanto, com Foucault. As relações de poder, a família, escola, trabalho, amigas e amigos, os espaços múltiplos de socialização nos quais estamos imersos fazem de nós mesmos quem somos, não só em termos de gênero, mas de gosto, de preferências políticas, de comportamento, na forma como expressamos nossa sexualidade, etc.
Qual o sentido, então, naquilo que Lady Gaga diz? Por que afirmar que nascemos assim, e como é possível concordar com ambos? Ora, se eu sou mulher, ou homem, se fosse negra ou negro, homossexual, se sou tatuada ou se me visto só com roupas xadrezes e se entendo que tudo isso é parte das relações de poder que me circundam (não necessariamente a condição destas características, mas a forma como as expresso), como dizer que eu nasci assim?
Sendo a própria Lady Gaga um produto que se constrói e reconstrói, que se pensa a partir do pop derivativo, ela mesma compreende o tanto que não nasceu daquele jeito. Ela não nasceu Lady Gaga, sabe disso e expressa-o sempre que é escutada. Não se trata de pensar as categorias identitárias como essência de cada um que as possui, até por que tanto sua posse quanto sua expressão são diferenciadas em cada um.
Ainda assim, existe um processo de marginalização de determinadas identidades, estas que, entendidas como desvio, como erro, como subversão, tendem a ser suprimidas como identidades outras, diferentes, simplesmente aquilo que não é o que deve ser. Assim, numa quase oposição entre maioria e minoria, na qual a maioria seria não só absoluta como também um elemento de opressão e repressão de uma minoria diferente (que alguns tendem a chamar de hegemonia), é preciso pensar como ser minoria, como subverter a ordem e não deixar com que sua identidade seja entendida como desvio, como passível de correção?
Isto é o Born This Way de Lady Gaga, a afirmação de uma identidade marginalizada. A possibilidade de dizer ‘não me corrija, ainda que eu seja, como todas e todos, produto das relações de poder que me circundam’. Deixem-me ser eu mesma, assim como sou. Dizer “eu nasci assim” significa dar invisibilidade a processos de formação dos sujeitos e das preferências, mas significa, também, dizer que estou consciente de quem sou e assim quero ser. Mulher ou homem, homo ou heterossexual, independente da identidade de gênero, da expressão sexual, independente da cor, etnia, raça, religião.
Trata-se de afirmar-se sujeito, afirmar-se capaz num mundo que subalterniza as preferências de grupos e indivíduos minoritários sob o julgo da não informação, da vivência do gueto, marginal, formada a partir de espaços de socialização obscurantizados para a maioria.
É possível, portanto, entender-se a partir de relações sociais, mas afirmar-se, politicamente que seja, como essencialmente do jeito que se é. E, assim, meus desejos feministas para o ano que se inicia (independente do meu não reconhecimento do ano novo como uma data com qualquer relevância energética, mas, sim, meramente formal), é que saibamos cada vez mais afirmar-nos politicamente. Nascidos de uma série de formas, formados por uma série de relações, mas dispostos a ser quem somos essencialmente do jeito que somos, a fim de não termos nossas identidades subalternizadas. Feministas, sempre.
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