PICICA: "A escrita é mesmo um exercício de libertação pessoal. Ao escrever fica claro, com frequência desafiador, como cada problema colocado pode ser enfrentado por inúmeras abordagens, segundo vários cortes interpretativos, nas mais inesperadas articulações de temas e assuntos. Há muitas opções contingentes, caminhos a percorrer-se, picadas a abrir-se na selva da cultura. O grau de liberdade na escrita, em última análise, não está condicionado pelas estruturas linguísticas, como poderia se ressentir algum estruturalismo do Grande Outro. Cada problema real excede as soluções que se possam esboçar a partir dele, em todas as perspectivas imagináveis, de forma e conteúdo, tradução e traição, semântica e sintaxe. Por sinal, sempre que se tenta exaurir um problema, traçá-lo de modo definitivo e irrefutável, que se tenta ir a seu âmago, ele acaba fintando o intérprete. Expõe outras faces e expressões, se mostra mais intrincado e barroco."
Retrospectiva QdL 2011
“(…) Este blogue propõe-se a uma prosa-poesia e uma política-arte, em suma, uma crítica imanente à constituição e partilha de mundos pelos seus verdadeiros artistas, isto é, todos nós.” — seção SOBRE, do QdL.
2011 é daqueles que entram para a memória. Daqueles anos que nunca acabam, que se repetem permanentemente, tais como 1789 (revolução francesa, jacobinos), 1871 (comuna de Paris, Marx), 1917 (outubro vermelho), 1922 (Oswald, jazz, samba, Vertov), 1968 (tropicalismo, Gláuber, maio de 68, Vietnã, Hendrix, revolução sexual e cultural, Mao) e 1989 (fracasso do socialismo real), — todos da mesma estirpe. Faço questão de incluir 1989, que não significou uma derrota para as lutas. Ao contrário da narrativa do fim da história, a queda do pano de ferro foi a culminância das revoltas de 1968. Uma revolução contra os muros internos e externos da sociedade, suas disciplinas, divisões sexuais e regimes de trabalho. Se, a partir de 1989, os ideólogos da mesmice deram a entender que esse período de 200 anos de insurgências e utopias teria se encerrado, — que todas as tentativas de ousar e fazer diferente da democracia ocidental liberal-proprietária levaria ao “totalitarismo”, esse grande espantalho do século 20 — 2011 está aí para gritar a sua diferença, para afirmar que o século disparado por 1789 recomeçou no novo milênio.
Intoxicado de tempos tão incríveis, 2011 também foi o ano mais produtivo para o Quadrado dos loucos. Este blogue, lançado em 2009, contou 127 textos durante o ano. Em abril, migrou do antigo blogspot para o atual wordpress, software livre, redimensionado na versão 2.0. Neste ano, dois artigos ultrapassaram as 10.000 visualizações (De que Ana de Hollanda tem medo e Sobre fim dos jornalistas, na acampada), e três as 5.000 (Um mês de OcupaRio, Como a psiquiatria pode destruir a juventude e Revolução na Líbia: nem capitalismo, nem socialismo). Isso pra mim serve como informação estatística mais do que qualquer coisa. Mesmo porque os textos que menos desgosto, — e pelos quais até sofro de alguma nostalgia (mas não revelo quais), — tiveram baixa frequência. No final, deixo para o leitor uma relação mais ou menos aleatória da produção do QdL em 2011.
A escrita é mesmo um exercício de libertação pessoal. Ao escrever fica claro, com frequência desafiador, como cada problema colocado pode ser enfrentado por inúmeras abordagens, segundo vários cortes interpretativos, nas mais inesperadas articulações de temas e assuntos. Há muitas opções contingentes, caminhos a percorrer-se, picadas a abrir-se na selva da cultura. O grau de liberdade na escrita, em última análise, não está condicionado pelas estruturas linguísticas, como poderia se ressentir algum estruturalismo do Grande Outro. Cada problema real excede as soluções que se possam esboçar a partir dele, em todas as perspectivas imagináveis, de forma e conteúdo, tradução e traição, semântica e sintaxe. Por sinal, sempre que se tenta exaurir um problema, traçá-lo de modo definitivo e irrefutável, que se tenta ir a seu âmago, ele acaba fintando o intérprete. Expõe outras faces e expressões, se mostra mais intrincado e barroco.
Como uma pintura de Pollock, uma deriva de intensidades libertas, de velocidades e movimentos frenéticos que ora coagulam numa figura, ora noutra. Como um fractal, a escrita se dobra e desdobra, ao infinito que (se) imagina a mente e (se) afeta o corpo. Há quem acredite que a luta se situe numa investida contra o Castelo, o Processo, a Ilha de Manhattan, o Deus Abscôndito (e seus suboficiais vagamente interessados em seu caso), mas quem sabe essa entidade não passe de uma estratégia para desvalorizar os múltiplos corredores, atalhos, becos, escadarias e passagens secretas da vida, em meio ao que se rasgam tão prementes os antagonismos do real. Sem sofistaria, a problemática é infinita e não adianta persegui-la sem assumir a sua virtualidade inexaurível, onde o Um, sim, se faz Dois, mas se faz Dois flutuantes, contingentes, imprecisos, malandros.
Mas impressiona como, apesar disso, há tantas interpretações enlatadas e percepções enrijecidas sempre e sempre sobre os mesmos temas e assuntos. A velhice é um estado de espírito, mas também um corpo encarquilhado de velhas ideias, no lugar demasiado certo de suas certezas. Diante desse quadro tétrico, este blogue conjura o mais-do-mesmo e tenta proliferar sentidos e afetos nas dobraduras, nesse origami imprevisível que os problemas instigam. É o mundo como horizonte para o erro. Não tem pudor em assumir-se um lance de dados, seus riscos e inconsequências. Daí que as obsessões de estilo estejam incluídas nessa (des)preocupação, — aliás tão pungente, epidérmica, que enseja virilidade, delicadeza, ternura e loucura, isso que a dor e os problemas reais do mundo colocam.
O certo é que, embora promíscuo nas relações e encontros criativos, não é preciso professar compromisso com instâncias transcendentes, ideologias, significados-mestres, religiões ou metafísicas — nem mesmo ante o Leitor enquanto entidade, olhar e juízo que transcendem o texto, — pois escrevo como condição de existência. Escrevo porque sim, — de vez em quando porque preciso, mas sobretudo porque quero, posso e consigo, e busco não me separar do que eu posso, senão seria menos do que poderia e anquilosaria. Às vezes funciona, noutras não. Ao leitor cabe apropriar-se como ferramenta ou taça de vinho ou pretexto de suas próprias ilusões e desventuras, — ou então descartar a leitura. Faz parte e não dá medo.
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Uma seleção em retrospectiva de 2011, organizada em seis eixos:
1. Generosidade e crueldade:
Generosidade e revolta, 3 de janeiro
Não estou nem aí para os mortos, 14 de janeiro
Quando o ateísmo é causa desfocada, 15 de fevereiro
Corrupção é sempre da democracia, 1º de março
Como a psiquiatria pode destruir a juventude, 26 de março
Potlatch, 1º de abril
O senhor e o escravo, 2 de outubro
Sobre fim dos jornalistas, na acampada, 23 de outubro
O idiota anticorrupção, 2 de dezembro
2. Personagens excessivos:
Sou anti-anti Battisti, 5 de janeiro
A multidão se faz poeta, resenha sobre Bárbara Szaniecki, 23 de janeiro
A ética de Spinoza, 9 de maio
Amy, suicidada pela sociedade, 3 de agosto
Antonio Negri na Cinelândia, 11 de novembro
Eduardo Viveiros de Castro, 24 de dezembro
3. Conspirações globais:
A nova militância, enxamear é preciso, 9 de janeiro
O devir da revolução árabe, 20 de fevereiro
A revolução árabe sob a ótica da multidão, 3 de março
As revoluções árabes na Espanha, 21 de maio
Que querem vocês, 15-M? viver!, 23 de maio
E agora, 15-M?!, 3 de junho
Marchas, revolta e geração, 19 de junho
Ideologia da crise, 11 de agosto
2011, o ano em que tudo começou, 10 de setembro
Revolução 2.0: da crise ao comum (UniNômade), 26 de setembro
Um caminho para o 15-O no Rio, 15 de outubro
Mao-Tsé Tung caminhava na chuva, 17 de outubro
Queerpunk, além do movimento gay, 20 de outubro
Produzir o dissenso, na acampada, 25 de outubro
O movimento do etcétera, 29 de outubro
OcupaRio é muitos, 3 de novembro
OcupaRio: petróleo para todos, 12 de novembro
Um mês de OcupaRio, 21 de novembro
A crise da economia global, 6 de dezembro
Não é hora de sair do Facebook, 13 de dezembro
4. Tudo é cinema:
Um condenado à morte que escapou (Robert Bresson), 7 de janeiro
A colecionadora (Eric Rohmer), 13 de janeiro
Tio Boonmee (Apichatpong Weerasathakul), 26 de janeiro
Bravura Indômita, (Irmãos Cohen), 18 de fevereiro
Homens e deuses (Xavier Beauvois), 29 de abril
Melancolia (Lars von Trier), 7 de agosto
5. O Brasil da Dilma:
RJ e Dilma, governos do consenso, 25 de fevereiro
De que Ana de Hollanda tem medo, 4 de março
Cidade das mulheres e a omelete de Dilma, 8 de março
Fábrica de Wellingtons, 1 de abril
Os camelôs, a ordem, as lutas da cidade, 1º de junho
Todo o apoio aos vândalos, 7 de junho
A reforma política começa pela mídia, 8 de julho
O mata leão olímpico contra o Rio, 11 de julho
A tal correlação de forças, 18 de julho
A tal vontade política, 19 de julho
Esquerdismo: os puritanos laicos, 29 de julho
O faraó e a represa, 20 de agosto
Consumitariado, 22 de setembro
Por um outro Belo Monte, 24 de novembro
Governo Dilma: um ano, 20 de dezembro
6. Direito do comum:
Da Lei Sinde à Ana de Hollanda: o comum resiste (grupo Direito do Comum), 5 de setembro
O comum organiza o direito, 21 de outubro
Recomeçar o direito no comum, 10 de novembro
O que é direito do comum, 28 de novembro
Imagem: Jackson Pollock
Fonte: Quadrado dos Loucos
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