PICICA: Dois professores amazonenses - ambos doutores - despedem-se da historiadora Maria Yedda Linhares. Primeiro foi o meu considerado José Ribamar Bessa Freire; agora é Patrícia Sampaio, estimada professora de História da Universidade Federal do Amazonas, quem se despede de um dos mitos do ensino dessa magnífica disciplina que é a História: Maria Yêdda Linhares vive na memória dos seus alunos.
Lições de gente imprescindível
Em depoimento emocionante, a pesquisadora Patricia Sampaio
compartilha lembranças da historiadora Maria Yêdda Linhares, falecida no
último dia 29.
Era 1988. Eu havia lhe trazido três delicados lenços bordados de
presente. Esperava que ela gostasse porque vinham de Fortaleza, sua
cidade. Animada, ela abriu a caixa, mas, quando viu o conteúdo, ficou
séria e saiu em busca de algo.
Colocou três moedas na minha mão. Diante do meu espanto, perguntou: “Você não sabe que, quando ganhamos lenços, devemos retribuir com o mesmo número de moedas? Se isso não acontecer, nós vamos brigar!” Não sabia. Era mais uma das lições da elegante professora.
Tinha eu 23 anos e estava no Rio fazendo mestrado. Ela? Era Maria Yêdda Leite Linhares. Uma verdadeira lenda que dispensava apresentação e estava prestes a se aposentar.
Talvez o sortilégio dos lencinhos não possa ser alçado à condição de ‘relevante’, mas era ela quem dizia e, só por isso, já valia muito a pena prestar atenção. Não importava que você discordasse depois.
A lista é interminável. As modulações das memórias dos tempos
duríssimos vividos na ditadura, o gosto pelo café adoçado com rapadura
de um restaurante próximo à sua casa, a crítica precisa a um comentário
fora de compasso, o apreço pelos eletrodomésticos vermelhos, a
extraordinária capacidade de extrair o melhor de seus alunos, sua
energia inacreditável, a aguda compreensão do lugar do historiador nas
lutas de seu tempo, mas, sobretudo para mim, a capacidade de ser uma
professora que não cabe em qualquer adjetivo. A Yêdda que conheci
ensinava assim.
Em texto emocionado, Francisco Carlos Teixeira da Silva a definiu como uma “formadora de gente”. Tenho a honra de dizer que também fui formada por ela.
Àquela altura, era trabalho muito bem-sucedido e forte motivo para que se escolhesse a Universidade Federal Fluminense (UFF) para pós-graduação. Era meu caso e é quase certo que o fato de ter vindo do Amazonas estudar história agrária tenha sido decisivo para que aceitasse me orientar às vésperas da aposentadoria.
Anos de pós-graduação podem ser marcados pela aflição de jovens historiadores. Levei, junto com outros colegas, muitos ‘puxões de orelha’ por conta desses “desesperos injustificados”, como ela chamava. Impaciente, não cansava de repetir: “Não tenham medo de meter a mão na massa. Mergulhem em suas fontes. Se as fontes falam, o trabalho cresce e aparece!”. Hoje, como um mantra, repito D. Yêdda. Desta vez, para acalmar meus orientandos aflitos.
O conselho para ir fundo na documentação evidenciava suas vinculações
à história agrária tal como praticada na França, e todos nós, do Porto
da Folha ao Amazonas, do Rio Grande ao Pará, em todas as direções do
país, éramos estimulados a explorar fontes diversificadas.
Nesse processo, invariavelmente, nos enredávamos na riqueza analítica das séries maciças embalados pelo entusiasmo da Yêdda a cada resultado.
Afinal, ela não participou da minha qualificação, marcada para 14 de julho de 1989, por uma razão simples: era convidada de honra do governo francês para as celebrações do Bicentenário da Revolução Francesa. Ciro Cardoso a substituiu na sessão de arguição.
Em 1989, o Botafogo conquistou o campeonato carioca. No dia seguinte, ostentava meu broche do time porque nasci botafoguense, pela graça de meu pai. Tínhamos um encontro marcado. Ela viu a estrela e disse: “Vamos almoçar para celebrar o Botafogo e depois trabalhamos!” Outra vez, fiquei espantada. No almoço, entre tantas histórias, falou dos “rapazes do Botafogo” e, em especial, de João Saldanha.
Eu a veria muitas vezes até que terminasse a dissertação, que tratou dos processos de acumulação mercantil em Manaus no século 19 com base em inventários. Na véspera da defesa, um susto: ela não havia gostado do título que dera ao trabalho. Era um mal-entendido, mas não pude esclarecê-lo. Não consegui dormir de ansiedade.
No dia seguinte, ela chegou sorridente acompanhada dos outros membros da banca, João Luis Ribeiro Fragoso e Francisco Carlos Teixeira da Silva. A sessão foi longa como era de praxe, mas transcorreu sem problemas. Yêdda estava satisfeita com a arguição e com os resultados. Eu? Orgulhosa, sem dúvida, e aliviada, com certeza!
Auditório repleto, dei-me conta de que, parafraseando samba famoso, era parte do enorme batalhão que aquela extraordinária figura havia formado. Ao abraçá-la, contei-lhe da defesa. Ela respondeu: “Sua responsabilidade no Amazonas aumentou. Agora é sua vez e o trabalho está só começando!” Já se vão 10 anos e o trabalho continua, D. Yêdda.
Soube que, além das flores e da bandeira do Botafogo, nada mais foi com ela. E eu aqui, de novo espantada, tentando definir as dimensões do que ficou depois que D. Yêdda passou por nossas vidas. Neste momento, só me vem à memória a voz da Mercedes e o verso do Brecht: “Pero hay los que luchan toda la vida. Estos són los imprescindibles”.
Patricia Melo SampaioDepartamento de História
Universidade Federal do Amazonas
Fonte: Ciência hoje
Colocou três moedas na minha mão. Diante do meu espanto, perguntou: “Você não sabe que, quando ganhamos lenços, devemos retribuir com o mesmo número de moedas? Se isso não acontecer, nós vamos brigar!” Não sabia. Era mais uma das lições da elegante professora.
Tinha eu 23 anos e estava no Rio fazendo mestrado. Ela? Era Maria Yêdda Leite Linhares. Uma verdadeira lenda que dispensava apresentação e estava prestes a se aposentar.
Talvez o sortilégio dos lencinhos não possa ser alçado à condição de ‘relevante’, mas era ela quem dizia e, só por isso, já valia muito a pena prestar atenção. Não importava que você discordasse depois.
Em texto emocionado, Francisco Carlos Teixeira da Silva a definiu como
uma “formadora de gente”. Tenho a honra de dizer que também fui formada
por ela.
Em texto emocionado, Francisco Carlos Teixeira da Silva a definiu como uma “formadora de gente”. Tenho a honra de dizer que também fui formada por ela.
O mergulho nas fontes
Meu interesse pela história da agricultura de alimentos no Amazonas ia ao encontro do projeto que D. Yêdda se dedicava a consolidar desde 1977, após seu retorno ao Brasil. Era a busca do “lado escuro da lua” que tanto rendeu à historiografia brasileira.Àquela altura, era trabalho muito bem-sucedido e forte motivo para que se escolhesse a Universidade Federal Fluminense (UFF) para pós-graduação. Era meu caso e é quase certo que o fato de ter vindo do Amazonas estudar história agrária tenha sido decisivo para que aceitasse me orientar às vésperas da aposentadoria.
Anos de pós-graduação podem ser marcados pela aflição de jovens historiadores. Levei, junto com outros colegas, muitos ‘puxões de orelha’ por conta desses “desesperos injustificados”, como ela chamava. Impaciente, não cansava de repetir: “Não tenham medo de meter a mão na massa. Mergulhem em suas fontes. Se as fontes falam, o trabalho cresce e aparece!”. Hoje, como um mantra, repito D. Yêdda. Desta vez, para acalmar meus orientandos aflitos.
Linhares: “Não tenham medo de meter a mão na massa. Mergulhem em suas fontes. Se as fontes falam, o trabalho cresce e aparece!”
Nesse processo, invariavelmente, nos enredávamos na riqueza analítica das séries maciças embalados pelo entusiasmo da Yêdda a cada resultado.
Afinal, ela não participou da minha qualificação, marcada para 14 de julho de 1989, por uma razão simples: era convidada de honra do governo francês para as celebrações do Bicentenário da Revolução Francesa. Ciro Cardoso a substituiu na sessão de arguição.
Em 1989, o Botafogo conquistou o campeonato carioca. No dia seguinte, ostentava meu broche do time porque nasci botafoguense, pela graça de meu pai. Tínhamos um encontro marcado. Ela viu a estrela e disse: “Vamos almoçar para celebrar o Botafogo e depois trabalhamos!” Outra vez, fiquei espantada. No almoço, entre tantas histórias, falou dos “rapazes do Botafogo” e, em especial, de João Saldanha.
Eu a veria muitas vezes até que terminasse a dissertação, que tratou dos processos de acumulação mercantil em Manaus no século 19 com base em inventários. Na véspera da defesa, um susto: ela não havia gostado do título que dera ao trabalho. Era um mal-entendido, mas não pude esclarecê-lo. Não consegui dormir de ansiedade.
No dia seguinte, ela chegou sorridente acompanhada dos outros membros da banca, João Luis Ribeiro Fragoso e Francisco Carlos Teixeira da Silva. A sessão foi longa como era de praxe, mas transcorreu sem problemas. Yêdda estava satisfeita com a arguição e com os resultados. Eu? Orgulhosa, sem dúvida, e aliviada, com certeza!
As dimensões do que ficou
Anos depois, já no doutorado, vieram outros encontros. Defendi a tese, sob orientação de Hebe Mattos, no último dia do 21º Simpósio Nacional de História, promovido pela Associação Nacional de História (Anpuh). Quando a defesa terminou, nos dirigimos para o auditório da UFF. D. Yêdda faria a conferência de encerramento e seria homenageada. Foi emocionante estar ali.Auditório repleto, dei-me conta de que, parafraseando samba famoso, era parte do enorme batalhão que aquela extraordinária figura havia formado. Ao abraçá-la, contei-lhe da defesa. Ela respondeu: “Sua responsabilidade no Amazonas aumentou. Agora é sua vez e o trabalho está só começando!” Já se vão 10 anos e o trabalho continua, D. Yêdda.
Soube que, além das flores e da bandeira do Botafogo, nada mais foi com ela. E eu aqui, de novo espantada, tentando definir as dimensões do que ficou depois que D. Yêdda passou por nossas vidas. Neste momento, só me vem à memória a voz da Mercedes e o verso do Brecht: “Pero hay los que luchan toda la vida. Estos són los imprescindibles”.
Patricia Melo SampaioDepartamento de História
Universidade Federal do Amazonas
Fonte: Ciência hoje
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