dezembro 27, 2011

Crack: de como fabricar uma "epidemia", usar o pânico moral e reforçar a indústria médica da tutela


PICICA: Não é de hoje que o governo federal usa do pânico moral como instrumento de campanha para o "enfrentamento das drogas" - uma metáfora ainda em uso, a despeito do entendimento de que mais do que uma questão policial as drogas devem ser tratadas no âmbito da saúde. Taí o exemplo acima, praticado no governo Lula. Já o governo Dilma se superou. A campanha contra o crack é um desastre em todos os pontos de vista, sobretudo para a luta antimanicomial. Os militantes da luta por uma sociedade sem manicômios, pesquisadores da academia, conselhos de classe e parte da sociedade civil organizada vem chamando atenção para o retrocesso que se desenha no horizonte. A instituição de medidas de internação compulsória e o uso de recursos financeiros públicos para o fortalecimento da rede de serviços privados - eufemisticamente conhecidas como comunidades terapêuticas - é a demonstração de que o poder de polícia será transferido para os setores de saúde aliados do fundamentalismo cristão. No rastro desse iniciativa, devem proliferar a implantação de clínicas para "drogados". Pesquisadores nacionais e internacionais afirmam que esse modelo fracassou aonde foi adotado, e consideram que tais iniciativas reeditam a prática de higienismo social do início do século XX. O PICICA assina embaixo e condena a indústria médica da tutela, tanto quanto governos que dela se serve como instrumento para criar política pública para o setor. A propósito, leia o artigo do ex-deputado federal do PT Paulo Delgado sobre o tema.

A força da tutela

Data de publicação: 08/12/2011


O sofrimento virou doença. Qualquer mal-estar diante do mundo, um distúrbio. A ambição grandiosa da psiquiatria está cada vez mais parecida com o sem limite do mercado financeiro. Querem que todos vivam suas leis de 3 ferro, amedrontados e submissos. Nada melhor para a criação de crises do que um poder sem sociedade, com regras próprias, exercido sobre todas as pessoas, sem que elas tenham direito de reagir ou ficarem indiferentes. Basta dar o nome de diagnóstico para relacionar sintomas e definir como transtorno qualquer manifestação da personalidade.


Quando a prática da medicina, subjugada à indústria de medicamentos, se oferece como cárcere, ficamos diante de uma verdadeira bomba embrulhada como se fosse terapia. Pior quando uma especialidade médica transforma em missão sanitária esconder hábitos e tarefas de uma sociedade indiferente a vida dos outros e que só vê as pessoas de forma binária: com sucesso, ou fracassadas.


A Organização Mundial da Saúde (OMS) anda preocupada com a definição de doença mental que a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doença Mental — universalmente conhecido como DSM-V — anda preparando. A ser lançada em 2013, mas já objeto de tensa polêmica no meio psiquiátrico, especialmente, norte-americano, a nova edição da DSM, transforma o cérebro num disco rígido. Um computador sem alma, intoxicado, num mundo cada vez mais doente e que somente poderá ser salvo por remédios. A OMS alerta que não aceita a desenvoltura da classificação, porque não é doença o que não pode ser caracterizado patologicamente, tem etiologia desconhecida, não possui padrão uniforme, não pode ser confirmado.


Quem não viveu, alguma vez na vida, alguma destas graves "doenças" psiquiátricas: abuso ou abstinência de substâncias, ansiedade, autismo, déficit de atenção, transtorno bipolar, confusão, desatenção, tendência à psicose, transtorno de personalidade, comportamento antissocial, apego reativo, amnésia, esquizofrenia, distúrbios diversos, etc. São tantos os nomes das "doenças do nervo" que agora viraram sinônimos de remédios e comportamentos, que começa a ficar preocupante o convívio humano. A menos que a sociedade perceba a gravidade dessa verdadeira epidemia que é querer tratar pela psiquiatria as dificuldades e problemas que fazem parte da vida. Junte os ritmos cada vez mais velozes e insanos da vida diária a esta forte tradição que tem a medicina de "encaixar um sintoma", prescrever um remédio e mandar para o hospital que vamos todos viver dopados. Qual ê a definição precisa de transtorno mental? Quem pagará pela tragédia que o diagnóstico errado causa na vida das pessoas?


Qualquer coisa malfeita afeta todos. Mas quando é feita na rua aos olhos de todos como se fosse uma acusação, seja pelos despossuídos que usam crack, seja pelas autoridades que usam o arbítrio para fazer a cidade limpa, há aí outra vertente impiedosa dessa epidemia da tutela. Aqui o erro vem na sua forma prática como serviço, depósito de exilados. No mesmo embrulho mistura arbítrio e falsa legalidade e dá o nome de tratamento para o que é abandono. Chama de falha moral a ousadia de esses jovens se desintegrarem nas ruas e praças. O usuário de crack compartilha a única localização no espaço urbano onde o efeito do que ele faz não é insignificante para os outros. Gerador de atenção e afeição momentânea não consegue transformar em sonhos o que está vivendo. Se o judiciário diz que é legal passeata para defender o que é considerado ilegal, de onde sai a ousadia da autoridade para recolher das ruas e retirar direitos de jovens pobres e abandonados? Onde pretende devolvê-los?


Dar o nome de terapia à indiferença social e ao fracasso da política pública — que não tem força para destinar recursos para serviços abertos 24h, descentralizados e multiprofissionais de acolhimento — só confirma a força que a indústria médica da tutela continua a ter sobre a população.


O que só ver aumenta a tragédia que é ver o sofrimento não gerar mais afeição.


Autor: Paulo Delgado*

Fonte: * Sociólogo, foi deputado federal pelo PT-MG e autor da Lei da Reforma Psiquiátrica; artigo publicado no jornal O Globo, em 5/12/2011.
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FONTE: ENSP / Radis - Comunicação e Saúde Pública

Um comentário:

Thaís Cavalcanti disse...

Ótima discussão, especialmente num tempo tão cheio de intolerância.