Dersu Uzala
PICICA: "Kurosawa não filma nada além daquilo que é necessário à fruição dos
laços humanos entre seus dois personagens centrais, todavia não se
envolve numa busca abertamente sentimental sobre eles. O cineasta não
projeta closes para retirar a gama dramática dali: o drama e as
sensações do Capitão e de Dersu afloram a revelia da aproximação de suas
expressões pela câmera, muito pelo contrário. Toda ação de Dersu Uzala
estrutura-se a certa distância, com o olhar apreensivo da câmera
esquadrinhando o espaço e o tempo com a gentileza e a sensibilidade
apropriadas. A amizade, motor do filme, que se cria entre o homem da
cidade e homem da selva é retratada com a pureza que lhe é aprazível,
eis aí sua força."
Filme sem closes
Dersu Uzala é um filme da
memória, do resgate sentimental. O Capitão do exército russo Vladimir
Arseniev retorna ao lugar onde havia enterrado um grande amigo, em busca
de sua sepultura. O filme trata então de relembrar a Arseniev (e de
mostrar ao espectador) não simplesmente as causas daquela morte, mas as
relações que se estabeleceram entre o corpo que agora jaz e o corpo que
lhe vem visitar. Dersu, personagem que dá título um filme (título,
aliás, apropriado, pois Dersu é a força corrente do filme, é o mote
central tanto da história de sua relação com o Capitão – pois não temos
dúvida alguma sobre quem é realmente o líder no grupo em que se
encontram – quanto da história de seu próprio habitat). Os dois se
conhecem na Sibéria, no espaço de domínio de Dersu, e, não raro, na
terra estranha ao Capitão. A exploração empreendia pelo exército russo
se vê complicada pela dificuldade de se manter nas colinas siberianas, o
que, sem o auxílio do estranho natural dali, seria impensável. E de
fato Dersu salva o Capitão da morte algumas vezes, ganhando sua
confiança. Dessa relação, Kurosawa permite irmanar uma amizade muito
verdadeira, sem impor significantes estereotipados a eles, pois o
Capitão não é aquele combatente truculento e insensível, tampouco Dersu
se apresenta como um selvagem sem perspectiva.
Kurosawa não filma nada além daquilo que
é necessário à fruição dos laços humanos entre seus dois personagens
centrais, todavia não se envolve numa busca abertamente sentimental
sobre eles. O cineasta não projeta closes para retirar a gama dramática
dali: o drama e as sensações do Capitão e de Dersu afloram a revelia da
aproximação de suas expressões pela câmera, muito pelo contrário. Toda
ação de Dersu Uzala estrutura-se a certa distância, com o olhar
apreensivo da câmera esquadrinhando o espaço e o tempo com a gentileza e
a sensibilidade apropriadas. A amizade, motor do filme, que se cria
entre o homem da cidade e homem da selva é retratada com a pureza que
lhe é aprazível, eis aí sua força. Kurosawa mantém a precisão do
enquadramento (ângulos quase sempre abertos que captam vários
personagens e também o próprio terreno, a ambiência) para assegurar a
dramaticidade de cada momento, sem com isso abdicar da noção própria de
proximidade entre eles, seja resumida em um abraço apaixonado (e
apaixonante) ou em palavras e até mesmo em pensamento.
Kurosawa é também um articulador de
tensões. Agonia mesmo é quando Dersu está no meio de uma corredeira,
agarrando sua vida a uns galhos no meio dela, e precisa ser resgatado
pelo comando do Capitão. Ele pede que os soldados do Capitão cortem uma
árvore, mas tem de ser a árvore certa. Agonia explode da tela também
quando Dersu se descobre incapaz de acertar um tiro, debulhando-se em
seu sofrimento, pois não consegue mais enxergar seus alvos. Filmadas
sempre com a referida discrição, essas sequências elucidam a essência
mesma da obra de Kurosawa: nada mais importa a não serem os laços
humanos. Dersu Uzala, por isso, é um filme principalmente sobre seres humanos, e não principalmente sobre qualquer outra coisa.
Em dado momento da expedição, Dersu e o
Capitão se separam. O foco permanece com o exército russo, e o Capitão
sente a falta do amigo. Mas eles voltam a se encontrar, e mais do que
isso, após certo tempo, Arseniev leva Dersu para a cidade. Agora é o
camponês que terá de lidar com um ambiente que lhe é estranho, mas no
processo ele questiona alguns valores da sociedade, a burocracia, os
costumes. Inevitavelmente, após certo período de inadaptação, Dersu pede
para voltar para as colinas, e então regressa. Nesse momento, não é
menos que seminal a sequência em que Dersu sofre ao fazer o pedido, no
que o Capitão, sem responder em palavras, apenas deixa a sala (onde
estavam a mulher e o filho), sobe as escadas da antessala e, depois de
alguns segundos, retorna com um rifle. É o presente e a resposta mais
adequada que Dersu poderia receber. Esse ato premonitório, de dar uma
nova arma ao homem, é também uma declaração de amor. A atitude de Dersu
não poderia ter sido diferente, morrer longe de onde fora criado e viveu
décadas, onde aprendeu a se alimentar e a interagir com o mundo, seria
incoerente. Tempos após sua partida, o Capitão recebe um aviso: é um
pedido para fazer um reconhecimento de um corpo no alto da colina. A
câmera, como sempre, mantém distância do rosto do capitão. Os homens que
jogaram a terra por cima da sepultura onde dorme o corpo de Dersu foram
os últimos a deixarem o local. Só então ele se aproxima e se despede do
amigo com um gesto não menos que fulgurante em emoção.
Dersu Uzala (Japão, 1975) De Akira
Kurosawa. Com Maksim Munzuk, Yuri Solomin, Svetlana Danilchenko, Dmitri
Korshikov, Suimenkul Chokmorov, Vladimir Kremena, Aleksandr Pyatkov.
*Publicado originalmente em Cinefilia.
Fonte: Tudo [é] Crítica
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